"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



09/02/2022

Jurisprudência 2021 (129)


Divórcio sem consentimento de um dos cônjuges;
convolação; requisitos


1. O sumário RL 8/6/2021 (19673/20.1T8LSB.L1-7) é o seguinte:

I - Não obsta à convolação do divórcio sem consentimento em divórcio por mútuo consentimento a circunstância de os cônjuges não terem formulado acordo de regulação das responsabilidades parentais (requerendo aquando do pedido que o acordo quanto a tais responsabilidades “seja decidido conforme as consequências do Artigo 1778º-A do Código Civil”) num contexto em que, alguns minutos depois e no apenso de regulação das responsabilidades parentais, os progenitores acordaram num regime provisório, o qual foi homologado, sendo ordenado o prosseguimento de tal apenso.

II - O que importa é que haja um regime de regulação das responsabilidades parentais vigente e que acautele o superior interesse das crianças. Condicionar o decretamento do divórcio por mútuo consentimento ao trânsito em julgado da decisão a proferir no apenso de regulação das responsabilidades parentais consubstancia, no caso, uma restrição desproporcional e desnecessária do direito dos cônjuges a convolarem o divórcio sem consentimento em divórcio por mútuo consentimento (cf. Artigos 1779º, nº 2, do Código Civil, 931º, nº4, do Código de Processo Civil e 18º, nº2, da Constituição), acautelado que se mostra o interesse dos menores com a vigência de um regime provisório e prosseguindo a regulação das responsabilidades parentais tendo em vista a prolação de uma decisão que fixe um regime definitivo.

III - A circunstância de o regime ser provisório em nada bole com o que fica dito, porquanto o mesmo vigora até que seja fixado um regime definitivo e, mesmo quando o acordo sobre as responsabilidades parentais é apresentado como definitivo pelas partes, tal não obsta a que o mesmo seja objeto de alteração posterior se circunstâncias supervenientes o justificarem.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Convolação do divórcio sem consentimento em divórcio por mútuo consentimento.

Em 25.9.2020, o autor BB intentou esta ação de divórcio sem consentimento contra CC.

Na tentativa de conciliação (cf. Artigo 931º, nº 3, do Código de Processo Civil), as partes requereram a convolação do divórcio sem consentimento em divórcio por mútuo consentimento, formulando acordos com exceção da matéria atinente às responsabilidades parentais. Quanto a estas, as partes requereram que, na impossibilidade de chegarem a um acordo, «que o mesmo seja decidido [as responsabilidades parentais sejam decididas] conforme as consequências do artigo 1778º-A do Código Civil».

Nos termos do Artigo 1779º, nº 2, do Código Civil, «Se a tentativa de conciliação não resultar, o juiz procurará obter o acordo dos cônjuges para o divórcio por mútuo consentimento; obtido o acordo ou tendo os cônjuges, em qualquer altura do processo, optado por essa modalidade do divórcio, seguir-se-ão os termos do processo de divórcio por mútuo consentimento, com as necessárias adaptações» [...].

A propósito desta norma, refere Eva Dias Costa in Clara Sottomayor (coord.), Código Civil Anotado, Livro V, Direito da Família, Almedina, 2020, p. 538, que «o legislador manifesta preferência pelo divórcio por mútuo consentimento, baseado apenas no acordo dos cônjuges quanto ao divórcio, podendo o juiz decidir as questões que devem constar nos acordos complementares ao divórcio por mútuo consentimento, no caso dos cônjuges nelas não conseguirem acordar (…)».

E, de facto, a menção «às necessárias adaptações» (Artigo 1779º, nº 2, do Código Civil) implica uma remissão para o Artigo 1778º-A, nº3, do Código Civil, nos termos do qual: «O juiz fixa as consequências do divórcio nas questões referidas no nº 1 do artigo 1775º sobre que os cônjuges não tenham apresentado acordo, como se se tratasse de um divórcio sem consentimento de um dos cônjuges.» E, prosseguem os nos. 4 e 5 do mesmo Artigo 1778º-A do Código Civil:

«4. Tanto para a apreciação referida no nº 2 como para fixar as consequências do divórcio, o juiz pode determinar a prática de atos e a produção da prova eventualmente necessária. 
5. O divórcio é decretado em seguida, procedendo-se ao correspondente registo.»

Por sua vez, o Artigo 931º, nº4, do Código de Processo Civil, dispõe que: «Estabelecido o acordo referido no número anterior [acordo no divórcio por mútuo consentimento], seguem-se no próprio processo, com as necessárias adaptações, os termos dos artigos 994º e seguintes (…)».

Nos termos do Artigo 994º do Código de Processo Civil:

«1 - O requerimento para a separação judicial de pessoas e bens ou para o divórcio por mútuo consentimento é assinado por ambos os cônjuges ou pelos seus procuradores e instruído com os seguintes documentos:
a) Certidão de narrativa completa do registo de casamento;
b) Relação especificada dos bens comuns, com indicação dos respetivos valores;
c) Acordo que hajam celebrado sobre o exercício das responsabilidades parentais relativamente aos filhos menores, se os houver;
d) Acordo sobre a prestação de alimentos ao cônjuge que careça deles;
e) Certidão da convenção antenupcial e do seu registo, se os houver;
f) Acordo sobre o destino da casa de morada da família.
2 - Caso outra coisa não resulte dos documentos apresentados, entende-se que os acordos se destinam tanto ao período da pendência do processo como ao período posterior.»

Por sua vez, o Artigo 996º, nº 2, dispõe que: «No caso contrário [inexistência de desistência do pedido de divórcio por mútuo consentimento], é exarado em ata o acordo dos cônjuges quanto à separação ou divórcio, bem como as decisões tomadas quanto aos acordos a que se refere o artigo 1775º do Código Civil.»

Na eventualidade dos cônjuges não alcançarem um dos acordos pressupostos para o divórcio por mútuo consentimento – sendo esse o caso porquanto não formalizaram aquando do pedido de convolação o acordo de regulação das responsabilidades parentais, requerendo em ata que «o mesmo seja decido conforme as consequências do artigo 1778º-A do Código Civil» (fls. 24) – haverá que articular os regimes dos Artigo 1778º-A do Código Civil com os Artigos 931º, nº4, 994º e 996º, nº2, do Código de Processo Civil.

No que tange a esta articulação, acolhemos a análise de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, II Vol., 2020, Almedina, pp. 449-450:

«Este art. 1778º-A, nº 3, do CC, tem suscitado interpretações díspares. Assim, por exemplo, faltando o acordo sobre a casa de morada de família, em RE de 10-11-10, 1069/08, entendeu-se que o tribunal tem de seguir a tramitação processual própria da resolução da questão da atribuição da casa de morada de família no contexto de uma ação de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges (em sentido confluente, cf. RL 11-7-13, 3546/10), o que implica a dedução do pedido por apenso à ação de divórcio (art. 990º, nº 4) e a sua tramitação nos termos dos demais números dessa disposição legal. Todavia, opõe-se a esta interpretação e à própria letra do nº 3 do art. 1778º-A o argumento de que não faz sentido remeter para o regime do divórcio sem consentimento (cf. arts. 931º e 932º) porquanto neste processo o juiz não aprecia nem decide as questões referidas no nº 1 do art. 1775º, não constituindo tais questões objeto do divórcio sem consentimento (Tomé Ramião, O Divórcio e as Questões Conexas - Regime Jurídico Atual, p. 60).

Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, vol. I, p. 713, pronunciam-se sobre a questão nestes termos: “parece razoável afirmar que a solução mais adequada não é a de cumprir uma tramitação própria e autónoma relativamente à atribuição da casa de morada de família, à regulação das responsabilidades parentais ou à fixação de alimentos. A solução que parece mais conforme com as intenções da lei e o princípio da adequação formal (art. 547º) é a de fixar os regimes necessários como uma questão incidental, através da forma de jurisdição voluntária.” Rita Lobo Xavier, em Recentes Alterações ao Regime Jurídico do Divórcio e das Responsabilidades Parentais, p. 21, defende que “na situação em que o juiz terá de fixar as consequências do divórcio, parece evidente que não o poderá fazer sem que sejam alegados e provados factos que sirvam de fundamento à sua decisão. Será necessário que os cônjuges tragam ao processo tais factos e proponham os respetivos meios de prova, para que possa ser marcada uma audiência final para a produção da mesma, tal como acontece no divórcio sem consentimento de um dos cônjuges”.

A falta de acordo dos cônjuges quanto às consequências do divórcio não converte o processo de divórcio num divórcio sem consentimento dos cônjuges. Assim, faz mais sentido aplicar os princípios gerais da jurisdição voluntária (arts. 986º a 988º), na medida em que o divórcio por mútuo consentimento se insere no âmbito desses procedimentos, bem como aplicar os arts. 994º a 997º e 999º. Nesta senda, as questões sobre as quais as partes não lograram acordo constituem incidentes da ação de divórcio por mútuo consentimento judicial, devendo ser tramitadas nos próprios autos, podendo o juiz determinar a prática de atos e a produção de prova considerada necessária (art. 1778º-A, nº 4, do CC) com observância dos princípios processuais, designadamente do contraditório e da igualdade (RG 15-3-16, 259/14).

Não se justifica autonomizar do processo de divórcio por mútuo consentimento judicial a apreciação de tais questões, porquanto a fixação das consequências do divórcio constitui um pressuposto necessário da homologação do divórcio por mútuo consentimento, ou seja, o juiz não pode decretar o divórcio por mútuo consentimento sem fixar as consequências desse tipo de divórcio.

Em suma e no que tange à fixação das consequências do divórcio (art. 1778º-A, nº 3, do CC), haverá que aplicar os arts. 292º (provas, prazo de oposição), 294º (limite de testemunhas), 295º (alegações orais e decisão), ex vi art. 986º, nº 1, sendo os parâmetros substantivos da decisão os decorrentes dos arts. 1793º do CC (casa de morada de família), 1905º e 1906º (regulação das responsabilidades parentais) e 2016º e 2016º-A do CC (alimentos). O juiz deve atuar o princípio da adequação formal, sobretudo na fase liminar, esclarecendo as partes sobre a tramitação que será seguida e convidando os cônjuges a aduzirem a concreta factualidade que estriba os pedidos formulados.»

Daqui decorre que, inexistindo acordo dos cônjuges quanto à regulação das responsabilidades parentais, e em regra, cabe ao juiz efetuar tal regulação com aplicação das normas e princípios enumerados na citação que antecede, constituindo a decisão assim a proferir condição sine qua non do subsequente decretamento do divórcio por mútuo consentimento.

Todavia, no caso em apreço, existe uma situação particular: no mesmo dia em que os cônjuges requereram a conversão do divórcio sem consentimento em divórcio por mútuo consentimento, decorreu (quinze minutos depois) Conferência de Pais no apenso B de regulação de responsabilidades parentais, tendo os progenitores (ora apelante e apelado) acordado na fixação de um regime provisório, o qual foi homologado por despacho, ordenando-se o prosseguimento dos autos (fls. 45-47).

A Mma. Juíza a quo não atentou neste circunstancialismo fáctico quando proferiu a decisão impugnada.

Ora, tendo sido firmado subsequentemente ao pedido de convolação (alguns minutos depois) um acordo quanto ao regime provisório de regulação das responsabilidades parentais (homologado por despacho), prosseguindo este processo para uma decisão definitiva, estão inerentemente fixadas as consequências do divórcio por mútuo consentimento quanto à regulação das responsabilidades parentais, nada obstando a que seja decretado o divórcio por mútuo consentimento. Num contexto desta índole, não faz sentido atuar o princípio da adequação formal tendo em vista produzir prova para prolação de uma decisão quanto às responsabilidades parentais porquanto já existe um regime acordado e homologado. A circunstância do regime ser provisório em nada bole com o que fica dito porquanto o mesmo vigora até que seja fixado um regime definitivo (cf. regime equivalente do nº2 do Artigo 994º do Código de Processo Civil, bem como o Artigo 28º do RGPTC) e, mesmo quando o acordo sobre as responsabilidades parentais é apresentado como definitivo pelas partes (cf. Artigos 994º, nº1, al. c), do Código de Processo Civil), tal não obsta a que o mesmo seja objeto de alteração posterior se circunstâncias supervenientes o justificarem (cf. Artigo 42º do RGPTC). Ou seja, o acordo sobre a regulação das responsabilidades parentais está sempre sujeito às mutabilidades decorrente da cláusula rebus sic stantibus.

O que importa é que haja um regime de regulação das responsabilidades parentais vigente e que acautele o superior interesse das crianças. Condicionar o decretamento do divórcio por mútuo consentimento ao trânsito em julgado da decisão a proferir no apenso de regulação das responsabilidades parentais consubstancia, no caso, uma restrição desproporcional e desnecessária do direito dos cônjuges a convolarem o divórcio sem consentimento em divórcio por mútuo consentimento (cf. Artigos 1779º, nº 2, do Código Civil, 931º, nº4, do Código de Processo Civil e 18º, nº2, da Constituição), acautelado que se mostra o interesse dos menores com a vigência de um regime provisório e prosseguindo a regulação das responsabilidades parentais tendo em vista a prolação de uma decisão que fixe um regime definitivo. Note-se que o decretamento do divórcio por mútuo consentimento não interfere na prossecução do apenso B de regulação das responsabilidades parentais, o qual prosseguirá os seus termos.

A fundamentação autónoma da condenação em custas só se tornará necessária se existir controvérsia no processo a esse propósito (cf. art. 154º, nº1, do Código de Processo Civil; Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 303/2010, de 14.7.2010, Vítor Gomes, e 708/2013, de 15.10.2013, Maria João Antunes)."

[MTS]