II. - Realizando o tribunal a subsunção dos factos provados na previsão da responsabilidade civil extracontratual, este conhecimento não exige prévio cumprimento do contraditório porque o mesmo ocorreu nos articulados.
III. - Tendo ficado provado que os réus se apropriaram indevida e consciente de ½ de um que pertencia aos autores e que, tendo-o registado em seu nome, dele desanexaram um outro que venderam, está matéria configura um facto ilícito gerador da obrigação de indemnizar.
Neste âmbito, uma primeira observação vai para a circunstância de os recorrentes protestarem que o tribunal recorrido decidiu fora do pedido e da causa de pedir, isto é, sem atender ao pedido deduzido e à causa de pedir formulada, embora não concluam pela nulidade da decisão por ter havido pronúncia sobre questões que o tribunal não pudesse conhecer ou condenação em objecto diverso do pedido – art. 615 nº 1 al. d) e e) do CPC. Remetendo genericamente para a violação do princípio da estabilidade da instância do art. 260 do CPC, através do qual “citado o réu a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei”, os recorrentes limitam-se a reclamar que não tiveram oportunidade de se defender quanto a essa responsabilidade deixando subentendida, sem no entanto o afirmarem e arguirem que a decisão da Relação é nula por violação do princípio do contraditório.
Em síntese, os recorrentes defendem a revogação da decisão da apelação nesta parte sem indicarem em concreto o vício processual que a determinaria, ou seja, se a nulidade da decisão nos termos do art. 615 nº 1 do CPC, se a nulidade por violação do princípio do contraditório do art. 3 do CPC (que nem sequer é mencionado). Assim, mesmo a aceitar-se que a eventual alusão a este último (ao princípio, que não ao preceito) poderia configurar a invocação dessa nulidade, sempre teríamos de desconsiderar a procedência da invocação.
O princípio do contraditório encontra-se ínsito na garantia constitucional de acesso ao direito consagrada no artigo 20º da Constituição e traduz-se na possibilidade dada às partes de exercerem o seu direito de defesa e exporem as suas razões no processo antes de tomada a decisão, o que constitui um pilar essencial na concretização do princípio da igualdade das partes, encontrando ambos expressão na lei ordinária nos artigos 3º nº 3 e 4º do Código de Processo Civil. Manifestando-se em diversos planos ao longo do processo, (Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, 1999, vol. 1º, págs. 8/9), no domínio das questões de direito, sejam processuais sejam materiais, o princípio do contraditório proíbe as chamadas decisões-surpresa, ou seja, impede que o tribunal tome conhecimento de questões, ainda que de apreciação oficiosa, sem que as partes tenham tido prévia oportunidade de sobre elas se pronunciarem, a não ser que a sua audição se revele manifestamente desnecessária.
A arguição de nulidade de uma decisão por se constituir surpresa ocorre apenas quando a solução escolhida pelo tribunal se desvincule totalmente do alegado pelas partes, na sua substancialidade ou na sua adjectividade. As partes apenas terão direito a insurgir-se contra uma decisão se a via nela seguida não se contiver com um mínimo de relação com o que tenha sido alegado e sufragado pelas partes durante o curso do processo. Assim, se as partes não tiveram hipótese de aportar e debater factos novos e que poderiam trazer alguma luz sobre a via oficiosamente assumida pelo tribunal, então terão o direito de tentar refazer a actividade do tribunal de modo a adequar a estrutura do processo ao resultado decisório.
No caso em decisão observamos sem esforço interpretativo que os autores, na petição inicial, pediram a condenação dos réus no pagamento de uma indemnização no valor de 49.737,275€ (quarenta e move mil setecentos e trinta e sete euros, duzentos e setenta e cinco cêntimos) referente, 7.500,00€ (sete mil e quinhentos euros) à privação de uso e 42.237,275€ (quarenta e dois mil duzentos e trinta e sete euros, duzentos e setenta e cinco cêntimos) de ½ de valor do terreno e ½ do valor do imóvel pré-existente, indicando factos praticados pelos réus de onde decorreria essa condenação e que se podem resumir em terem agido de forma a apropriar-se da parte que correspondia aos autores nesses prédios.
Assim, é evidente que as partes não podiam deixar de perspectivar como solução plausível do litígio a condenação dos réus em indemnização em razão dos factos que se diziam praticados por si. E não podiam deixar de o fazer pela óbvia razão de nem sequer se tratar de configurar a partir do expresso o que seria implícito porque, no caso, esse pedido de condenação fazia parte, quer do pedido, quer da causa de pedir r dos factos descritos que a compunham, era ele mesmo parte do objecto directo do mérito da causa.
Nesta afirmação de que a condenação dos réus em indemnização fazia parte integrante da causa de pedir e do pedido, abordamos o segundo momento da argumentação dos recorrentes quando sustentam que a responsabilidade civil extraprocessual não foi invocada pelos autores.
Próximo dos arts. 3 e 4 do CPC antes citados, o subsequente, o 5º, estabelecendo no nº 3 que “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”, deixa esclarecido que, se às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiem as excepções invocadas - nº 1 -, a liberdade judicativa do juiz não sofre restrição quanto à subsunção da realidade apurada ao direito. Ainda que o demandante não epigrafe os factos que alegue numa designação como a de “responsabilidade civil contratual ou extra contratual”, desde que exponha os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões que servem de fundamento à acção e formule o pedido – art. 552 nº 1 al. d) e e) do CPC, realiza o que é necessário para que o tribunal possa conhecer do mérito.
No caso em decisão, como antes anotámos, é pacifico que os autores deduziram pedido de condenação em indemnização contra os réus e fizeram assentar esse pedido nos factos que articularam na petição inicial, designadamente naqueles de onde decorria uma actuação voluntária e consciente dos réus lesiva dos direitos que queria ver reconhecidos.
Assim, improcedem as conclusões de recurso na parte em que os recorrentes sustentam que o tribunal conheceu de matéria de que não podia conhecer ou que não tiveram os recorrentes oportunidade de se pronunciarem sobre a questão indemnizatória decidida."
[MTS]