"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/02/2022

Jurisprudência 2021 (132)


Qualificação jurídica;
contraditório


1. O sumário de STJ 20/5/2021 (81/14.0TBORQ.E2.S1) é o seguinte:

I. - Tendo os autores deduzido pedido de indemnização e articulado os factos em que baseiam esse pedido não carecem de configurar juridicamente esses factos como inclusivos da responsabilidade civil contratual ou extracontratual uma vez que “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” – art. 5º nº 3 do CPC.

II. - Realizando o tribunal a subsunção dos factos provados na previsão da responsabilidade civil extracontratual, este conhecimento não exige prévio cumprimento do contraditório porque o mesmo ocorreu nos articulados.

III. - Tendo ficado provado que os réus se apropriaram indevida e consciente de ½ de um que pertencia aos autores e que, tendo-o registado em seu nome, dele desanexaram um outro que venderam, está matéria configura um facto ilícito gerador da obrigação de indemnizar.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Alegam os recorrentes que os autores não apresentaram causa de pedir nem pedido para fundamentarem a responsabilidade civil extracontratual dos RR. e que, como assim, nunca tiveram oportunidade de se defender de uma ação de responsabilidade civil extracontratual, que foi configurada "ex novo" pelo Tribunal da Relação violando o princípio da estabilidade da instância do artigo 260º do Código de Processo Civil.

Neste âmbito, uma primeira observação vai para a circunstância de os recorrentes protestarem que o tribunal recorrido decidiu fora do pedido e da causa de pedir, isto é, sem atender ao pedido deduzido e à causa de pedir formulada, embora não concluam pela nulidade da decisão por ter havido pronúncia sobre questões que o tribunal não pudesse conhecer ou condenação em objecto diverso do pedido – art. 615 nº 1 al. d) e e) do CPC. Remetendo genericamente para a violação do princípio da estabilidade da instância do art. 260 do CPC, através do qual “citado o réu a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei”, os recorrentes limitam-se a reclamar que não tiveram oportunidade de se defender quanto a essa responsabilidade deixando subentendida, sem no entanto o afirmarem e arguirem que a decisão da Relação é nula por violação do princípio do contraditório.

Em síntese, os recorrentes defendem a revogação da decisão da apelação nesta parte sem indicarem em concreto o vício processual que a determinaria, ou seja, se a nulidade da decisão nos termos do art. 615 nº 1 do CPC, se a nulidade por violação do princípio do contraditório do art. 3 do CPC (que nem sequer é mencionado). Assim, mesmo a aceitar-se que a eventual alusão a este último (ao princípio, que não ao preceito) poderia configurar a invocação dessa nulidade, sempre teríamos de desconsiderar a procedência da invocação.

O princípio do contraditório encontra-se ínsito na garantia constitucional de acesso ao direito consagrada no artigo 20º da Constituição e traduz-se na possibilidade dada às partes de exercerem o seu direito de defesa e exporem as suas razões no processo antes de tomada a decisão, o que constitui um pilar essencial na concretização do princípio da igualdade das partes, encontrando ambos expressão na lei ordinária nos artigos 3º nº 3 e 4º do Código de Processo Civil. Manifestando-se em diversos planos ao longo do processo, (Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, 1999, vol. 1º, págs. 8/9), no domínio das questões de direito, sejam processuais sejam materiais, o princípio do contraditório proíbe as chamadas decisões-surpresa, ou seja, impede que o tribunal tome conhecimento de questões, ainda que de apreciação oficiosa, sem que as partes tenham tido prévia oportunidade de sobre elas se pronunciarem, a não ser que a sua audição se revele manifestamente desnecessária.

A arguição de nulidade de uma decisão por se constituir surpresa ocorre apenas quando a solução escolhida pelo tribunal se desvincule totalmente do alegado pelas partes, na sua substancialidade ou na sua adjectividade. As partes apenas terão direito a insurgir-se contra uma decisão se a via nela seguida não se contiver com um mínimo de relação com o que tenha sido alegado e sufragado pelas partes durante o curso do processo. Assim, se as partes não tiveram hipótese de aportar e debater factos novos e que poderiam trazer alguma luz sobre a via oficiosamente assumida pelo tribunal, então terão o direito de tentar refazer a actividade do tribunal de modo a adequar a estrutura do processo ao resultado decisório.

No caso em decisão observamos sem esforço interpretativo que os autores, na petição inicial, pediram a condenação dos réus no pagamento de uma indemnização no valor de 49.737,275€ (quarenta e move mil setecentos e trinta e sete euros, duzentos e setenta e cinco cêntimos) referente, 7.500,00€ (sete mil e quinhentos euros) à privação de uso e 42.237,275€ (quarenta e dois mil duzentos e trinta e sete euros, duzentos e setenta e cinco cêntimos) de ½ de valor do terreno e ½ do valor do imóvel pré-existente, indicando factos praticados pelos réus de onde decorreria essa condenação e que se podem resumir em terem agido de forma a apropriar-se da parte que correspondia aos autores nesses prédios.

Assim, é evidente que as partes não podiam deixar de perspectivar como solução plausível do litígio a condenação dos réus em indemnização em razão dos factos que se diziam praticados por si. E não podiam deixar de o fazer pela óbvia razão de nem sequer se tratar de configurar a partir do expresso o que seria implícito porque, no caso, esse pedido de condenação fazia parte, quer do pedido, quer da causa de pedir r dos factos descritos que a compunham, era ele mesmo parte do objecto directo do mérito da causa.

Nesta afirmação de que a condenação dos réus em indemnização fazia parte integrante da causa de pedir e do pedido, abordamos o segundo momento da argumentação dos recorrentes quando sustentam que a responsabilidade civil extraprocessual não foi invocada pelos autores.

Próximo dos arts. 3 e 4 do CPC antes citados, o subsequente, o 5º, estabelecendo no nº 3 que “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”, deixa esclarecido que, se às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiem as excepções invocadas - nº 1 -, a liberdade judicativa do juiz não sofre restrição quanto à subsunção da realidade apurada ao direito. Ainda que o demandante não epigrafe os factos que alegue numa designação como a de “responsabilidade civil contratual ou extra contratual”, desde que exponha os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões que servem de fundamento à acção e formule o pedido – art. 552 nº 1 al. d) e e) do CPC, realiza o que é necessário para que o tribunal possa conhecer do mérito.

No caso em decisão, como antes anotámos, é pacifico que os autores deduziram pedido de condenação em indemnização contra os réus e fizeram assentar esse pedido nos factos que articularam na petição inicial, designadamente naqueles de onde decorria uma actuação voluntária e consciente dos réus lesiva dos direitos que queria ver reconhecidos.

Assim, improcedem as conclusões de recurso na parte em que os recorrentes sustentam que o tribunal conheceu de matéria de que não podia conhecer ou que não tiveram os recorrentes oportunidade de se pronunciarem sobre a questão indemnizatória decidida."

[MTS]