"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



25/02/2022

Jurisprudência 2021 (141)


Cônjuges; dívida comum; 
legitimidade passiva; "solidariedade patrimonial"*


1. O sumário de RC 29/6/2021 (888/20.9T8ACB-D.C1) é o seguinte:

I) Apesar da dissolução do casamento por divórcio o património comum subsiste até à partilha, não passando os bens comuns a pertencer aos cônjuges em compropriedade.

II) Dissolvido o casamento, o direito reconhecido ao titular do património comum a dele retirar a sua meação não é um direito a metade de cada um dos bens que integram o património comum do casal ou, sequer, a dele retirar, sem mais, bens que preencham metade do respectivo valor

III) O direito à meação referido em II) tem de ser concretizado mediante a liquidação e partilha do património comum.

IV) O direito do cônjuge ou ex-cônjuge a separar a sua “meação nos bens comuns”, por via do procedimento previsto no artigo 141.º, n.º 1, alínea b) do CIRE, consiste no direito atribuído ao cônjuge ou ex-cônjuge de fazer separar a sua meação do património comum, com a consequente suspensão da liquidação relativamente aos bens comuns apreendidos, separação essa que será exercitada posteriormente mediante o procedimento de inventário previsto no n.º 1 do artigo 1135.º do CPC.

V) Não é possível a penhora ou apreensão da meação de cada um dos concretos bens que fazem parte do património comum.

VI) Tratando-se de dívida da responsabilidade de ambos os cônjuges, o credor pode accionar qualquer um deles pela sua totalidade, respondendo pela mesma, em primeiro lugar, os bens comuns do casal e, na falta ou insuficiência destes, solidariamente, os bens próprios de qualquer um deles.

VII) O credor de uma dívida da responsabilidade comum dos ex-cônjuges, com garantia real sobre um bem comum apreendido para a massa insolvente, pode reclamá-la na sua totalidade, ainda que a insolvência respeite unicamente a um deles.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Quanto ao argumento, invocado pela Apelada/ex-cônjuge nas suas alegações de recurso a favor da manutenção da decisão recorrida, de que a credora reclamante só poderia reclamar metade da dívida, razão pela qual também só deveria ter sido apreendido metade do imóvel, não tem qualquer apoio no regime de dívidas dos cônjuges nos regimes de comunhão.

Tratando-se de dívida da responsabilidade de ambos os cônjuges, o credor pode acionar qualquer um deles pela sua totalidade: existindo aqui uma responsabilidade pessoal de cada um dos cônjuges, com dois devedores únicos [Catarina Serra, “Falências Derivadas e Âmbito Subjectivo da Falência”, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, p.171], pela mesma respondem, em primeiro lugar, os bens comuns do casal e na falta destes, solidariamente, os bens próprios de qualquer um deles (artigo 1695º, nº1, CC), falando-se aqui de solidariedade patrimonial [Cristina M. Araújo Dias, “Do Regime da Responsabilidade por Dívidas dos Cônjuges, Problemas, Críticas e Sugestões”, Coimbra Editora, FDUC, Centro de Direito da Família, pp.20-21].

O nº 1 do artigo 46º do CIRE – segundo o qual a massa insolvente abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo[...] –, terá de ser interpretado no sentido de que a esta massa pertencerão aqueles bens que, por determinação substantiva, possam ser chamados a responder pelas suas dívidas (artigo 601º do CC) [Neste sentido, Paula Costa e Silva, “A Liquidação da massa insolvente”, ROA, Ano 65, Vol. III – Dezembro de 2005].

Sendo o insolvente casado num dos regimes de comunhão, ou, sendo divorciado, não tenha havido lugar à partilha, a par dos seus bens próprios existe uma massa de bens comuns afeta ao cumprimento de determinadas obrigações.

E se, no processo foi declarada unicamente a declaração de um dos cônjuges, tratando-se de um processo concursal, a declaração de insolvência chamará ao processo todos os seus credores – não só detentores de garantia real, mas também os credores comuns, e não só por créditos da exclusiva responsabilidade do insolvente, mas igualmente por créditos de responsabilidade comum do casal.

A massa ativa deverá, assim, incluir os bens comuns, uma vez que estes responderão sempre pelos créditos reclamados: na sua totalidade tratando-se de dívidas comuns, ou até ao valor da sua meação, no caso de dívidas da responsabilidade pessoal do insolvente [...].

A insolvência de um dos cônjuges casado num dos regimes de comunhão (ou, sendo divorciado, não tenha sido ainda efetuada a partilha dos bens comuns do casal [Embora a dissolução, a declaração de nulidade ou anulação do casamento ou a separação de pessoas e bens impliquem o fim das relações patrimoniais entre os cônjuges, a comunhão no património comum mantém-se até à partilha – cfr., entre outros, Cristina Manuela Araújo Dias, “Do Regime da Responsabilidade por Dívidas dos Cônjuges, Problemas, Críticas e Sugestões”, FDUC – Centro de Direito da Família, Coimbra Editora, p. 886 e 922-923]) envolverá, assim, a apreensão de todos os bens do insolvente, neles se incluindo não só os bens próprios do cônjuge/insolvente, mas também os próprios bens comuns do casal [No sentido de que o que é objeto de apreensão são os bens comuns do casal e não a meação do insolvente nos bens comuns, cfr., José Lebre de Freitas, “Apreensão, separação, restituição em venda”, pág. 237. Em sentido contrário, Luís Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência”, Almedina, pág. 91 e 92, e Jorge Duarte Pinheiro, “Efeitos Pessoais da Declaração de Insolvência”, Estudos em Memória do Prof. Dr. José Dias Marques, Almedina, pág. 219].

Quanto ao passivo, serão reclamáveis, não só, todos os créditos da responsabilidade do insolvente como, ainda, os créditos garantidos por bens integrantes da massa insolvente, nos termos do artigo 47º do CIRE [Cfr., Maria João Areias, Insolvência de Pessoa Casada num dos Regimes de Comunhão – Sua Articulação com o Regime da Responsabilidade por Dívidas dos cônjuges”, Revista de Direito da Insolvência, Nº1 – 2017, Almedina, pp.113-114].

Ou seja, dúvidas não restarão de que o crédito da Caixa …, sempre seria reclamável na sua totalidade, quer por se tratar de crédito da responsabilidade do insolvente, quer por se tratar de crédito garantido por bem integrante da massa."

*3. [Comentário] Salvo o devido respeito, é surpreendente a afirmação de que "tratando-se de dívida da responsabilidade de ambos os cônjuges, o credor pode acionar qualquer um deles pela sua totalidade: existindo aqui uma responsabilidade pessoal de cada um dos cônjuges, com dois devedores únicos [...], pela mesma respondem, em primeiro lugar, os bens comuns do casal e na falta destes, solidariamente, os bens próprios de qualquer um deles (artigo 1695º, nº1, CC), falando-se aqui de solidariedade patrimonial".

Sendo a dívida comum e respondendo por ela, em primeira mão, bens comuns (art. 1695.º, n.º 1, CC), não se pode aceitar que a acção possa ser proposta apenas contra um dos cônjuges e que o outro possa vir a ver o seu património comum agredido para pagamento dessa dívida. A justificação é simples: dessa forma não está garantido o contraditório do cônjuge que não é demandado na acção e, que, ainda assim suportaria as consequências da decisão nela proferida. Isto não é, naturalmente, aceitável.

Como bem se diz no acórdão, o art. 1695.º, n.º 1, CC estabelece uma "solidariedade patrimonial". Mas esta solidariedade -- precisamente porque é "patrimonial", ou seja, entre patrimónios -- sucede apenas quanto à responsabilidade subsidiária dos bens próprios de qualquer dos cônjuges e significa, portanto, que, a título subsidiário perante a responsabilidade dos bens comuns, respondem os bens próprios de qualquer dos cônjuges. Em suma: a responsabilidade pelas dívidas comuns não é uma responsabilidade solidária nos termos do art. 512.º, n.º 1, CC. 

Cabe ainda referir que, na óptica do acórdão, o disposto nos art. 741.º e 742.º CPC é uma  verdadeira inutilidade. Se, afinal, a dívida comum não exige a presença de ambos os cônjuges na acção e, por isso, a formação de título executivo contra ambos os cônjuges, então para quê haver alguma preocupação quando, quanto a uma dívida comum, há um título extrajudicial apenas em relação a um deles?

MTS