"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



15/02/2022

Jurisprudência 2021 (133)


Providência cautelar; recurso de revista;
violação das regras de competência


1. O sumário de STJ 20/5/2021 (1584/20.2T8CSC-C.L1.S1é o seguinte:

I. - Nas providências cautelares nos termos do art. 370 nº 2 do CPC, não cabe, em regra, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação, sem embargo das situações previstas nas alíneas a) a d) do nº 2 do art. 629º, do CPC, em que o recurso é sempre admissível.

II. - A violação das regras de incompetências que admitem o recurso nos termos do art. 629 nº 2 al. a) dizem respeito à própria competências do tribunal recorrido para conhecer da acção em razão da nacionalidade da matéria ou da hierarquia e não a outra competência que seja condição prévia a que o tribunal recorrido possa conhecer do mérito substantivo da pretensão deduzida.

III. - Referindo a decisão recorrida que o conhecimento da pretensão de a recorrente de ver canceladas duas inscrições de registo carece de ter sido decidida previamente em processo especial de retificação de registo ou (no caso de ser indeferido o pedido de retificação através de recurso hierárquico ou impugnação judicial) não configura uma violação das regras de competências que possa integrar o fundamento do art. 629 nº 2 al. a) do CPC, porque o tribunal não se declara incompetente mas sim, que há requisitos de apreciação do mérito que não se encontram verificados, qual seja o de não se ter obtido previamente a rectificação do registo.

IV. - A contradição de decisões que admite a revista nos termos do art. 629 nº 2 al. do CPC tem de consistir numa oposição frontal sobre a mesma questão fundamental de direito, e com um núcleo factual idêntico ou coincidente, na perspectiva das normas ali diversamente interpretadas e aplicadas.

V. - Não admite a revista nos termos do art. 629 nº 2 al. d) do CPC a situação em que a apelação foi julgada improcedente com base em não se terem alegados factos concretos para sustentar a pretensão e a recorrente apresenta como acórdão fundamento para contradição de julgados um em que a questão decidida foi aquela cuja pretensão ela queria ver discutida no acórdão recorrido mas que o não foi porque se decidiu a improcedência com fundamento em não terem sido alegados factos que permitissem o conhecimento do pedido.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O conhecimento das questões a resolver, delimitadas pelas conclusões, importa em saber se a decisão recorrida deve ser revogada e julga procedente a providência cautelar.

Começando a análise pela admissibilidade da revista, a recorrente sustenta que a mesma deve conhecida por este STJ, e com o sentido da procedência que protesta, porque nos termos do disposto no art. 671 nº 2 al. b) do CPC existe contradição entre a decisão recorrida e outra proferida pelo STJ; porque nos termos do art. 672 nº 2 al. c) o acórdão recorrido está em contradição com outro já transitado e proferido pelo STJ e, também, por violação das regras de competência e por contradição do acórdão recorrido com outro sobre a mesma questão fundamental de direito - art. 629 nº 2 al. a) e d)  do CPC.

Esclarece-se que de harmonia com o disposto no art. 370 nº 2 do CPC, não cabe, em regra, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação proferido no âmbito de procedimentos cautelares, a não ser que se verifique uma das situações previstas nas alíneas a) a d) do nº 2 do art. 629º, do CPC, em que o recurso é sempre admissível, ou seja, quando estejam em causa violação das regras de competência absoluta, ofensa de caso julgado, decisão respeitante ao valor da causa, com o fundamento de que o mesmo excede a alçada do tribunal recorrido, decisão proferida contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça e contradição de julgados.

Com esta primeira observação fica de imediato afastada a possibilidade de interposição de revista ao abrigo do art. 671 ou 672 do CPC porque as providências cautelares não a admitem, a menos que, como vimos, se verifique um dos casos previstos no art. 629 nº 2 do CPC, motivo para que só nesta perspectiva se possa abordar a eventual possibilidade da revista interposta pela recorrente.  

Neste âmbito, o primeiro fundamento invocado, o de se verificar uma violação das regras de competência, esbarra com a dificuldade de se saber em que consiste essa violação porque a recorrente, mencionando essa violação não a concretiza em que se traduz. Concluiu que o tribunal da Relação decidiu “pela (sua) incompetência do tribunal para conhecer a questão.

Assim, e também, por força da regra geral em que os recursos podem ser admitidos, prevista no artigo 629 nº 2 alínea a), e 672 nº 2 alínea a) do C P C, a recorrente entende ter este fundamento para interpor recurso de revista, tal como supra justifica, aludindo aos nos termos do artigo 671nº 2 alínea b, 672 nº 1 alínea c), ambos do C. P. C. nº 2 do CPC.”, mas não arguiu qualquer concreta violação das regras de competência do tribunal em razão da nacionalidade, da matéria ou da hierarquia, nem retirou quaisquer consequências.

Tentando perceber melhor a situação, o tribunal recorrido, em determinado momento da decisão, depois de assinalar os argumentos para a improcedência da apelação, coincidentes com a decisão de primeira instância, refere, sem que disso houvesse necessidade, que a questão de saber se pode ser convertido em definitivo um registo provisório que caducou pelo decurso do tempo, carece de ser discutida previamente em processo especial de retificação de registo e que só no caso de ser indeferido o pedido de retificação pode, então, interpor-se recurso hierárquico ou impugnação judicial, razão para que, sem antes solicitar tal pedido, o tribunal não pudesse dele conhecer. Esta consideração não constitui nenhuma decisão do tribunal quanto à sua competência ou incompetência para conhecer do mérito da providência cautelar, significando somente que, se porventura fossem conhecidas as questões de direito da providência (que não foram) haveria um obstáculo que impediria a procedência substantiva dessa pretensão. Com maior clareza, o tribunal recorrido sublinha que, independentemente da providência cautelar dever sempre ser julgada improcedente pelas razões reunidas na decisão em primeira instância e consistentes em não ter a recorrente alegado factos consubstanciadores do fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito, mesmo que tal não sucedesse, sempre a providência improcederia por existir um pressuposto do mérito, e não da competência do tribunal, que se oporia ao provimento da pretensão, qual seja o de o registo não se encontrar rectificado nos termos em que a recorrente pretendia que fosse entendido.

A delimitação precisa do objecto do recurso, isto é, saber o que foi decidido e do que se recorre, impõe-se como importante uma vez que parte da argumentação expendida no acórdão recorrido constitui um obiter dictum sem vinculação e de natureza acessória, cuja supressão não prejudicaria o fundamento da decisão que se manteria inalterada para se ter determinado que que a providência tivesse improcedido. E o fundamento desta improcedência resume-se em ter sido considerado que “Inexistindo alegação de matéria que sustente o justo e fundado receio de que os requeridos causem lesão grave e dificilmente reparável aos interesses da requerente e, consequentemente, sendo o dano decorrente do decretamento desproporcional ao dano que (não clarificado no requerimento inicial) a requerente pretende acautelar, conclui-se, sem necessidade de outras considerações, que não se mostram verificados os pressupostos de decretamento das providências requeridas, sendo inútil a produção das provas requeridas”.

Sem a alegação dessa matéria de facto que era essencial soçobrou a pretensão da recorrente e, por assim ser, temos por irrelevantes e inócuas quanto ao sentido da decisão as reflexões quando aborda a conversão em definitivo um registo provisório que caducou pelo decurso do tempo, ou se o direito a pedir que “se intime os seis Requeridos a abandonarem os cargos”, cabe à administração como órgão social e não à apelante.

No sentido de responder à questão suscitada na apelação, a decisão recorrida acabou por aludir a algumas razões ou argumentos invocados ou sugeridos pelas conclusões da recorrente e que não constituem a questão objecto do recurso definida pela sentença de primeira instância e apelação, questão essa que por dizer respeito à não alegação de matéria de facto capaz de fundar o pedido, se situa em momento anterior ao da aplicação do direito substantivo para julgar o mérito.  É sobre esta distinção entre questões e razões ou argumentos que unanimemente a jurisprudência deste STJ refere a propósito da nulidade da sentença do art. 615 nº 1 al. d) do CPC que “a expressão «questões» prende-se com as pretensões que os litigantes submetem à apreciação do tribunal e as respectivas causas de pedir e não se confunde com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os fundamentos, os motivos, os juízos de valor ou os pressupostos em que as partes fundam a sua posição na controvérsia. É em face do objecto da acção, do conteúdo da decisão impugnada e das conclusões da alegação do recorrente que se determinam as questões concretas controversas que importa resolver.” – ver por todos ac. STJ de 3-10-2017 no proc. n.º 2200/10.6TVLSB.P1.S1 in dgsi.pt.

Perante o que a recorrente enquanto recorrente configurou na acção como causa de pedir e pedido, as instâncias decidiram que não era possível prosseguir com o processo porque a ausência de matéria de facto que pudesse sustentar a pretensão deduzida determinava que a providencia fosse julgada improcedente por, em face daquela razão não se poderem certificar os pressupostos de que dependia a procedência. E se a decisão da primeira instância se assume como mais enxuta quanto à indicação dos motivos do não provimento, a decisão da Relação, no sentido de dar resposta a todas as razões que a recorrente suscitou na apelação não só confirmou a decisão recorrida, com base nos mesmos fundamentos, como acabou por se pronunciar sobre matérias que no caso eram irrelevantes. Assim é que, depois afirmar que nas conclusões da apelação não eram indicados os concretos meios probatórios constantes do processo que imponham a decisão pretendida aditar e que não se mostrava verificado o condicionalismo previsto no n.º 1, do art. 662º, do CPCivil, e que não se podia proferir sobre a matéria de facto impugnada porque a matéria pretendia continha matéria de direito, eram conclusivos, irrelevantes, ou versavam matéria nova, a decisão recorrida realiza considerações sobre a conversão em definitivo um registo provisório que caducou pelo decurso do tempo.

Na conformidade com o que antes afirmámos, temos por evidente essas observações contidas na decisão recorrida sobre o registo, sendo matéria de direito destinada ao conhecimento do mérito da pretensão da recorrente apenas teriam importância e relevo se tivessem sido alegados e provados os factos destinados a demonstrar os pressupostos da providência.  Se a questão do recurso é a de terem sido ou não alegados factos fundadores dos pressupostos da providência, inexiste razão para admitir o recurso nos termos do art. 629 nº 2 al. a) do CPC com base na competência do tribunal uma vez que nenhuma questão a este propósito foi suscitada ou decidida na apelação."

[MTS]