Embargos de executado;
decisão-surpresa; nulidade
I - A apreciação da falta de título executivo, em sede de embargos, quando a embargante não fez qualquer referência ao facto do título não se mostrar completo, nem suscitou qualquer inexatidão quanto ao seu conteúdo ou valor em divida, surge como uma “decisão surpresa”, quando não precedida do contraditório, sendo parcialmente nula a sentença nos termos do art. 615º/1 d) CPC.
II - A decisão de julgar extinta a execução por falta de documentos que completam o título executivo, deve ser precedida do despacho de aperfeiçoamento, nos termos do art. 726º/4/5 CPC.
III - Importa a anulação do julgamento, por omissão de factos relevantes para a apreciação do mérito relacionado com a constituição do aval, por constituir a garantia que justifica a demanda da executada.
IV - Assumindo-se os fiadores como principais pagadores não podem recusar o cumprimento das obrigações vencidas, mas não perdem o benefício do prazo em relação às prestações vincendas, estando obrigados a cumprir devido ao incumprimento do devedor, mas no prazo convencionado e por isso, não perdem o benefício do prazo.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"A apelante sem por em causa os fundamentos que sustentam a inexistência de título executivo, considera, que em sede de embargos de executado a decisão viola o princípio do contraditório.
Argumenta a apelante que a exceção não foi suscitada pela embargante e no despacho que define o objeto do litígio não resulta como questão a apreciar e o facto de ser de conhecimento oficioso não dispensa o prévio contraditório, como se prevê no art. 3º/3 CPC.
A questão que se coloca consiste, assim, em saber se estando em causa exceção de conhecimento oficioso e compreendida, ainda, na causa de pedir e no pedido formulado no processo executivo, contra o qual foram deduzidos os presentes embargos de executado, se mesmo assim, devia ser cumprido o contraditório.
Nos termos do art. 3º/3 CPC “[o] juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
Dispõe, por sua vez, o artigo 4.º do mesmo diploma legal: “[o] tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de defesa e na aplicação de cominações ou de sanções processuais”.
Como observa LEBRE DE FREITAS [JOSÉ LEBRE DE FREITAS Introdução ao Processo Civil- Conceito e princípios gerais à luz do novo código, 3ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, Outubro de 2013, pag. 124] a consagração do princípio da proibição das decisões surpresa, resulta de uma conceção moderna e mais ampla do princípio do contraditório, “[…] com origem na garantia constitucional do Rechtiches Gehör germânico, entendido com uma garantia de participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”.
O princípio do contraditório no plano das questões de direito exige que antes da sentença, às partes seja facultada a discussão efetiva de todos os fundamentos de direito em que a decisão se baseie [JOSÉ LEBRE DE FREITAS Introdução ao Processo Civil- Conceito e princípios gerais à luz do novo código, ob. cit., pag. 133].
Conforme resulta do regime legal o juiz deve fazer cumprir o princípio do contraditório em relação às questões de direito, mesmo de conhecimento oficioso, só estando dispensado de o fazer em casos de manifesta desnecessidade.
Pretende-se, por esta via, evitar a formação de “decisões-surpresa”, ou seja, decisões sobre questões de direito material ou de direito processual, de que o tribunal pode conhecer oficiosamente sem que tenham sido previamente consideradas pelas partes.
Dispensa-se a audição da parte contrária em casos de manifesta desnecessidade, o que pode ocorrer quando:
- “as partes embora não a tenham invocado expressamente nem referido o preceito legal aplicável, implicitamente a tiveram em conta sem sombra de dúvida, designadamente por ter sido apresentada uma versão fáctica, não contrariada, que manifestamente não consentia outra qualificação;
- quando a questão seja decidida favoravelmente à parte não ouvida; ou
- quando seja proferido despacho que convide uma das partes a sanar a irregularidade ou uma insuficiência expositiva” [JOSÉ LEBRE DE FREITAS. ISABEL ALEXANDRE Código de Processo Civil Anotado, ob. cit., pag. 10].
Na interpretação do conceito de “decisão-surpresa” o Supremo Tribunal de Justiça tem defendido que “[o] princípio do contraditório, na vertente proibitiva da decisão surpresa, não determina ao tribunal de recurso que, antes de decidir a questão proposta pelo recorrente e/ou recorrido, o alerte para a eventualidade de o fazer com base num quadro normativo distinto do por si invocado, desde que as normas concretamente aplicadas não exorbitem da esfera da alegação jurídica efetuada (Ac. STJ 11 de fevereiro de 2015, Proc. 877/12.7TVLSB.L1-A.S1, www.dgsi.pt).
Por outro lado, considera-se que o cumprimento do contraditório não significa “[…] que o tribunal «discuta com as partes o que quer que seja» e que alivie as mesmas «de usarem a diligência devida para preverem as questões que vêm a ser, ou podem vir a ser, importantes para a decisão»”(Ac. STJ 09 novembro de 2017, Proc. 26399/09.5T2SNT.L1.S1, Ac STJ 17 de junho de 2014, Proc. 233/2000.C2.S1 www.dgsi.pt).
Considera-se, ainda, que: “[h]á decisão surpresa se o Juiz, de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico, envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeque a uma correta e atinada decisão do litígio. Ou seja, apenas estamos perante uma decisão surpresa quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever” (Ac. STJ 19 de maio de 2016, Proc. 6473/03.2TVPRT.P1.S1,
www.dgsi.pt).
LOPES DO REGO defende que “[…] na audição excecional e complementar das partes, fora dos momentos processuais normalmente idóneos para produzir alegações de direito, só deverá ter lugar quando se trate de apreciar questões jurídicas suscetíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão e quando não for exigível que a parte interessada a houvesse perspetivado durante o processo, tomando oportunamente posição sobre ela”[CARLOS FRANCISCO DE OLIVEIRA LOPES DO REGO Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 1999, pag. 25].
O exercício do contraditório dependerá sempre da verificação de uma nova abordagem jurídica da questão, que não fosse perspetivada pelas partes, mesmo usando da diligência devida.
A apreciação da existência de título executivo, que constitui um dos pressupostos específicos da ação executiva, constitui matéria de conhecimento oficioso (art. 726º/2 a) conjugado com o art. 734º CPC). Mas no caso concreto, tal circunstância não dispensava o tribunal do exercício do prévio contraditório, ao abrigo do art.3º/3 CPC.
Conforme se prevê no art. 734º/1CPC “o juíz pode conhecer oficiosamente, até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados, das questões que poderiam determinar, se apreciadas nos termos do artigo 726º, o indeferimento liminar ou o aperfeiçoamento do requerimento executivo”.
O nº 2 do mesmo preceito prevê:”[r]ejeitada a execução ou não sendo o vício suprido ou a falta corrigida, a execução extingue-se, no todo ou em parte”.
De acordo com o disposto no art. 726º/2/a) CPC:[o] juiz indefere liminarmente o requerimento executivo quando seja manifesta a falta ou insuficiência do título”.
A exceção de falta de título executivo não foi apreciada no processo executivo, após entrada do requerimento executivo e em sede de despacho liminar (art. 726º/1CPC).
A embargante não suscitou a exceção na oposição que deduziu à execução.
Em sede de despacho saneador, ainda que tabelar, também não foi abordada tal matéria. Definiu-se o objeto do litígio como sendo a “Responsabilidade contratual da executada perante a exequente” e circunscreveram-se os temas de prova à seguinte questão: ”Comunicações efetuadas entre exequente e executada”. Estavam em causa as comunicações respeitantes ao contrato de cessão de posição contratual e interpelação para o cumprimento.
Não se promoveu a junção de documentos ou qualquer esclarecimento sobre os títulos executivos que constavam do processo de execução. No processo de execução apenas se solicitou junto da exequente a junção dos contratos de cessão de créditos, por se mostrarem ilegíveis os que se encontravam nos autos.
Não foi proferido despacho a convidar as partes a pronunciarem-se sobre a exceção da falta de título executivo.
A apreciação da exceção, apesar de constituir matéria de conhecimento oficioso, tal como se prevê no art. 3º/3 CPC não dispensa o prévio contraditório, por não se mostrar desnecessário.
A apreciação da exceção em sede de embargos constitui uma questão nova, pois a embargante não fez qualquer referência ao facto do título não se mostrar completo, nem suscitou qualquer inexatidão quanto ao seu conteúdo ou valor em divida e a decisão surge como uma “decisão surpresa”, por nada fazer supor que seria apreciada nesta sede, sendo certo que a sua apreciação contendia com a definição do direito, sendo desfavorável para uma das partes, o que necessariamente impunha a sua audição.
A omissão do exercício do contraditório constitui uma nulidade processual.
As nulidades processuais “[…] são quaisquer desvios do formalismo processual prescrito na lei, e a que esta faça corresponder – embora não de modo expresso – uma invalidade mais ou menos extensa de aspetos processuais“ [MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, Limitada, 1993, pag. 156].
Atento o disposto nos art. 195º e seg. CPC, as nulidades processuais podem consistir na prática de um ato proibido, omissão de um ato prescrito na lei ou realização de um ato imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido.
Porém, como referia o Professor ALBERTO DOS REIS há nulidades principais e nulidades secundárias, que presentemente a lei qualifica como “irregularidades“, sendo o seu regime diverso quanto à invocação e quanto aos efeitos [JOSÉ ALBERTO DOS REIS Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, pag. 357].
As nulidades principais estão previstas, taxativamente, nos art. 186º a 194º e 196º a 198º do CPC e por sua vez as irregularidades estão incluídas na previsão geral do art. 195º CPC e cujo regime de arguição está sujeito ao disposto no art. 199º CPC.
A omissão do exercício do contraditório não constitui uma nulidade principal, pois não consta do elenco das nulidades previstas nos art. 186º a 194º e 196º a 198º do CPC.
Representa, pois, a omissão de um ato ou formalidade que a lei prescreve, que cai na previsão do art. 195º CPC e por isso, configura uma irregularidade que só determina a nulidade do processado subsequente àquela omissão se influir no exame e decisão da causa, estando o seu conhecimento dependente da arguição, nos termos previsto no art. 199º CPC.
Neste sentido se pronunciaram, entre outros, o Ac. STJ 02 de julho de 2015, Proc. 2641/13.7TTLSB.L1.S1, Ac. STJ 29 de janeiro de 2015, Proc. 531/11.7TVLSB.L1.S1 (todos acessíveis em
www.dgsi.pt).
A lei não fornece uma definição do que se deve entender por “irregularidade que possa influir no exame e decisão da causa.
No sentido de interpretar o conceito o Professor ALBERTO DOS REIS tecia as seguintes considerações: “[o]s atos de processo têem uma finalidade inegável: assegurar a justa decisão da causa; e como a decisão não pode ser conscienciosa e justa se a causa não estiver convenientemente instruída e discutida, segue-se que o fim geral que se tem em vista com a regulação e organização dos actos de processo está satisfeito se as diligências, atos e formalidades que se praticaram garantem a instrução, a discussão e o julgamento regular do pleito; pelo contrário, o referido fim mostrar-se-á prejudicado se se praticaram ou omitiram atos ou deixaram de observar-se formalidades que comprometem o conhecimento regular da causa e portanto a instrução, a discussão ou o julgamento dela“ [JOSÉ ALBERTO DOS REIS Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, ob. cit., pag. 486].
Daqui decorre que uma irregularidade pode influir no exame e decisão da causa, se comprometer o conhecimento da causa, a instrução, discussão e julgamento.
Tal omissão tinha de ser arguida logo que conhecida, e no prazo previsto no art. 149º/1 CPC, ou seja, a partir da data em que as partes foram notificadas da sentença.
O recurso de apelação não constitui o meio processual próprio para conhecer das infrações às regras do processo quando a parte interessada não arguiu a nulidade perante o tribunal onde aquela alegadamente ocorreu, conforme resulta do regime previsto nos art. 196º a 199º CPC.
A nulidade processual é distinta da nulidade da sentença, uma vez que a nulidade por falta de pronúncia, a que alude o art. 615º/1 d) CPC está diretamente relacionada com o comando do art. 608º/2 do mesmo Código, reportando-se ao não conhecimento das questões (que não meros argumentos ou razões) relativas à consubstanciação da causa de pedir e do pedido [Neste sentido Ac. STJ 30.09.2010 – Proc. 3860/05.5 TBPTM.E1.S1 –
www.dgsi.pt].
Nos termos do art. 615º 1 / d) CPC a sentença é nula, quando “[o]o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento“.
O vício em causa está relacionado com a norma que disciplina a “ ordem de julgamento “ – art. 608º/2 CPC.
Com efeito, resulta do regime previsto neste preceito, que o juiz na sentença: “deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras“.
Não ignoramos, contudo, que dentro de certa linha de entendimento [ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES Recursos no Novo Código de Processo Civil, ob. cit., pág. 21 a 23] se tem considerado que a “omissão de uma formalidade de cumprimento obrigatório, como ocorre com o respeito pelo princípio do contraditório destinado a evitar decisões-surpresa”, configura a nulidade da sentença/despacho, por omissão de pronúncia. Nestas circunstâncias o juiz está a tomar conhecimento de questão não suscitada pelas partes, sem prévio exercício do contraditório.
Esta interpretação revela-se coerente com a atual conceção do princípio do contraditório, entendido como “garantia de participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”[12]. O direito de influir no êxito da ação, mais não será do que mais uma emanação do principio da tutela jurisdicional efetiva, previsto no art. 20º Constituição da República Portuguesa.
No caso presente verificando-se a omissão do prévio exercício do contraditório, perante uma questão de direito, suscitada oficiosamente e que ditou o fim (ainda que parcial) da execução, a sentença é nula, nos termos do art. 615º/1 d) CPC.
A nulidade afeta apenas parte da decisão e incide apenas sobre a verificação da existência de título executivo, quanto ao documento que consubstancia a operação nº …………………….
As circunstâncias que determinam a nulidade da sentença impedem que no caso o tribunal de recurso faça uso da regra da substituição, prevista no art. 665º CPC.
Declarando-se parcialmente nula a sentença devem os autos baixar ao tribunal de 1ª instância, para se cumprir o contraditório em relação à concreta questão da exceção por falta de título executivo, após o que será proferida nova sentença, sem embargo do que a seguir se vai decidir."
3. [
Comentário] Acompanha-se -- sem surpresa (clicar
aqui) -- a conclusão do acórdão quanto à nulidade da decisão-surpresa.
O problema está no conteúdo da sentença (é por isso mesmo que se trata de uma nulidade de um acto processual), pelo que será sempre impossível subsumir a situação ao disposto no art. 195.º, n.º 1, CPC, que nada nada refere quanto ao conteúdo dos actos processuais. Não pode deixar se ser assim, se não se quiser misturar indevidamente nulidades de actos processuais com nulidades processuais. O vício é, pois, da própria decisão-surpresa.
Aliás, a solução do problema decorre de uma resposta simples a uma pergunta simples: onde está o vício da decisão-surpresa? A resposta só pode ser: no seu conteúdo. Logo: se o vício é de conteúdo, então só pode ser um dos vícios regulados no art. 615.º, n.º 1.
MTS