"Quanto ao objecto do recurso que remete para a interpretação do art. 14 nº 1 da NRAU, este dispõe que “O contrato de arrendamento quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente às rendas, aos encargos ou às despesas que corram por conta do arrendatário” e a discussão suscitada é a de saber se o título executivo complexo assim formado abrange, ou não, o fiador do arrendatário que teve intervenção pessoal no contrato de arrendamento, subscrevendo-o.
A questão já foi objecto de abundante análise doutrinária e jurisprudencial, com diferentes respostas.
Em termos doutrinários, Fernando Gravato de Morais, embora advertindo para dúvidas quanto à interpretação do preceito, propende para que perante o texto do artigo 15º, nº 2 do NRAU (antes da alteração introduzida pelo actual artigo 14º-A), apenas se pode afirmar uma tendência no sentido da não aplicabilidade ao fiador, dado ter sido pensado apenas para o arrendatário, argumentando com o risco da fiança; o eventual desconhecimento pelo fiador da situação de mora; a especial fragilidade da posição do garante e a possibilidade de multiplicação de acções noutros casos previstos no NRAU. E desenvolvendo esses items, refere que o nº 2 do artigo 15º do NRAU insere-se num normativo destinado, essencialmente, a proteger os interesses do senhorio perante o arrendatário, sendo esse o contexto da lei expresso no amplo leque de casos do nº 1; a não multiplicação de acções judiciais não pode ser feita à custa (apenas) do fiador e que o regime do NRAU compreende muitos casos de multiplicação de acções - sendo este apenas mais um; se o senhorio actuar logo, e observados todos os prazos, pode ser confrontado com a acção executiva, na melhor das hipóteses, treze a catorze meses após o incumprimento do afiançado. Em resumo, sustenta que não se forma título executivo contra o fiador porque a norma não é clara no sentido de incluir o fiador, havendo elementos literais que indiciam que o quis excluir. Se o fiador se encontra numa posição mais débil, não lhe deve corresponder um regime mais agravado do ponto de vista processual, como sucede se inclusivamente se prescindir da notificação dele - in “Falta de pagamento de renda no arrendamento urbano”, pags. 77 a 81; Cadernos de Direito Privado, nº 27, pags. 57 a 63, e in “A jurisprudência no triénio posterior à entrada em vigor do NRAU”, publicado na revista “Direito e Justiça – Estudos dedicados ao Professor Doutor Luís Alberto Carvalho Fernandes”, pags. 512 a 513.
No mesmo sentido, Rui Pinto - in “Manual de Execução de Despejo”, a páginas 1164 a 1165 - exclui o fiador do âmbito e alcance do artigo 14º-A do NRAU, afirmando a natureza restritiva das normas que prevêem categorias de títulos executivos, limitados em relação a uma interpretação não literal. A norma (art.14-A nº 1) não prevê a formação de título executivo contra o fiador e, por força do princípio da taxatividade dos títulos executivos e da natureza restritiva das normas que os prevêem, não é possível fazer interpretações extensivas da norma; o título executivo é complexo e pressupõe a reunião conjunta de dois documentos, pelo que se o fiador não consta de um deles não existe título executivo contra ele; a alteração do NRAU pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto deixou intocado o texto quando a questão já se discutia, num sinal de que o legislador não pretendeu tomar claro que o fiador também pode ser executado; o Decreto-Lei n.º 1/2013, de 7 de Janeiro, denuncia essa intenção legislativa ao consagrar expressamente que só o arrendatário pode ser objeto do procedimento especial de despejo quando nele está compreendido a execução das rendas em dívida.
Também Miguel Teixeira de Sousa - Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, Almedina, 2014, p. 406 - defende que a norma o preceito (art. 14-A nº 2) apenas admite que a comunicação seja realizada ao arrendatário, certamente porque somente esta parte está em condições de controlar a veracidade do seu conteúdo e de deduzir alguma eventual oposição. Por isso, o título executivo só se pode formar contra o próprio arrendatário, o que significa que o mesmo não se estende ao fiador que seja responsável pelo pagamento das rendas em dívida.
Em sentido contrário, ou seja, no de que existindo fiadores estes também poderão ser demandados, pronunciam-se Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo - A acção executiva Anotada e Comentada, págs. 147 – e a maior parte da jurisprudência que defende ser admissível o contrato de arrendamento como título executivo contra o fiador, podendo ver-se por amostragem abrangente os acórdãos do STJ de 26/11/2014 no proc. 1442/12.4TCLRS-B.L1.S1 e de 17/11/2020 no proc. 3794/18.3T8SNT-A.L1.S1 in dgsi.pt; da R.L. de 07/07/2016 (rel, Maria do Rosário Morgado) no proc. nº 13257/15.3T8LSB-A.L1-7, acórdão de 07/06/2016 (rel. Luís Espírito Santo), proc. nº 5356/12.0TBVFX-B.L1-7 todos is dgsi.pt; da R.E. e de 21 de Março de 2013 (rel. Bernardo Domingos) publicado in Col. Jur. Ano XXXVIII, Tomo II, pags. 251 a 254, da R.L de 1 de Março de 2012 (rel. Ilídio Sacarrão Martins) in Col.Jur. Ano XXXVII, Tomo II, página 301 e ainda da R.C. de 21 de Abril de 2009 (rel. Sílvia Pires) dgsi.pt.
Os argumentos de todos estes acórdãos, que sufragamos, resumem-se em que a norma em análise – o artigo 14º-A do NRAU (bem como o antecedente artigo 15º, nº 2, do mesmo diploma legal) - não identifica concretamente o sujeito contra o qual se formou o título executivo, não aludindo à pessoa do arrendatário ou à do fiador, referindo apenas que “o contrato de arrendamento, acompanhado do comprovativo da notificação ao arrendatário do montante em dívida, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente às rendas (…)”. Assim sendo, porque o contrato de arrendamento é um documento a que, por disposição especial, é atribuída força executiva, nos termos da alínea d) do nº 1, do artigo 703º do CPC, no contexto de especialidade e excepcionalidade de que se reveste o art. 10º nºs 4 e 5 - ao estabelecer que o título executivo constitui a base que determina o fim e os limites da acção executiva - está o exequente legitimado a obter, nessa sede, a realização de uma obrigação que lhe é devida, sem necessidade de prévia instauração de acção declarativa.
Efectivamente, o argumento do numerus clausus dos títulos executivos assenta no art. art. 703 nº1 que apresenta uma enumeração taxativa de títulos executivos que podem servir de fundamento a uma acção executória, sendo a doutrina unânime quanto a este carácter taxativo - cf. Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, Lex, pág. 67 e seg.; Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo Executivo, &ª edição, pág. 19 e seg.; Eurico Lopes-Cardoso, Manual da Acção Executiva, 3ª edição, pág. 22 e seg.; Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, 2ª edição, pág. 55 e seg.; Lebre de Freitas, A Ação Executiva, 6ª edição, pág. 46 e seg.; Rui Pinto, A Ação Executiva, pág. 145. E essa taxatividade não admite alargamento por interpretação extensiva e muito menos por analogia - Teixeira de Sousa, A acção Executiva Singular, cit., pág. 67 e seg.; Rui Pinto, A Ação Executiva, cit., pág. 145.
A fiança tem como características principais a acessoriedade e a subsidiariedade aparecendo a primeira referida no artigo 627º, n.º 2, que nos elucida que “a obrigação do fiador é acessória da que recai sobre o principal devedor”. Tal característica significa que a obrigação do fiador se apresenta na dependência estrutural e funcional da obrigação do devedor, sendo determinada por essa obrigação em termos genéticos, funcionais e extintivos. Por virtude da acessoriedade, a fiança tem o conteúdo da obrigação principal e cobre as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor (artigo 634º), daqui resultando que o credor pode exercer perante o fiador os mesmos direitos que tem perante o devedor. Por seu turno, a subsidiariedade reconduz-se à possibilidade de o fiador invocar o benefício da excussão, conforme resulta do artigo 638º, impedindo o credor de executar o património do fiador enquanto não tiver tentado sem sucesso a execução através do património do devedor (artigo 745 do CPC).
Do exposto, aceita-se sem obstáculo que o credor possa exercer perante o fiador, que renunciou ao benefício da prévia excussão, os mesmos direitos que tem perante o devedor, pois nenhum sentido faria que pudesse instaurar execução contra o arrendatário e já quanto ao fiador tivesse de instaurar uma acção declarativa para, por essa via, obter um título executivo. Aliás, irreleva como impedimento a invocação da posição de debilidade do fiador relativamente ao arrendatário para afastar o contrato como título executivo, porque não aceitamos que seja dispensável quanto a ele (fiador) a notificação determinada no art. 14-A nº1 para o arrendatário, ou que a taxatividade dos títulos executivos não permita a sua formação contra o fiador, mas só contra o arrendatário. Este princípio da taxatividade e natureza restritiva das normas cremos que aponta, em primeiro lugar, aos próprios documentos/títulos e não, ou pelo menos, não principalmente, à subjectividade da qualidade com neles os sujeitos intervenientes se configurem, desde que resulte para ambos referidos no título uma mesma e directa obrigação de pagamento da prestação devida.
Entendemos, assim, que o legislador quis consagrar um título a que, em especial, atribuiu força executiva, conferindo-lhe uma específica e inconfundível natureza e alcance, e este mesmo título, de natureza complexa, é composto pelo contrato de arrendamento e pela notificação ao arrendatário (e ao fiador) quanto aos montantes em dívida. Também, a pretensa fragilidade da posição jurídica do fiador não obriga, por si só, à opção por um regime menos agravado (a acção declarativa em vez da executiva) do ponto de vista processual. De resto, a própria constituição da fiança constitui, na maior parte das situações, a melhor e mais sólida garantia concedida ao senhorio no sentido da salvaguarda da efectivação do direito básico neste relacionamento negocial: o recebimento pontual da renda – ac. RL de 7 de Julho de 2016 (rel. Luís Espírito Santo) no proc. 5356/12.0TBVFX-B.L1-7 in dgsi.pt
A situação do fiador, enquanto executado, é neste contexto precisamente similar à do próprio arrendatário: ambos figuram no contrato de arrendamento; ambos são responsáveis pelo pagamento das rendas vencidas; de ambos pode o credor senhorio exigir tal pagamento. Logo, o título executivo criado ex novo, com foros de especialidade, protegendo primordialmente o interesse do senhorio, deve valer contra ambos, a tal não se opondo o regime substantivo da fiança antes enunciado e que, nos termos do artigo 634º do Código Civil, prevê que a responsabilidade do fiador cubra as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor, indiciando a própria desnecessidade da sua interpelação. No essencial dos efeitos contratados a obtenção da realização da obrigação devida ao senhorio – o pagamento das rendas vencidas – por força do contrato de arrendamento pode resultar do conjunto dos responsáveis pelo incumprimento e que se assumiram, enquanto tais, no próprio título exequendo: o arrendatário e o seu garante, que nessa mesma específica qualidade aceitou e subscreveu o documento agora dado à execução, sendo nisto que assentamos o entendimento de ser extensível ao fiador como titulo executivo como o é para o arrendatário.
Ora, como ficou provado, no aludido contrato de arrendamento os executados intervieram como terceiros contraentes e declararam-se solidariamente como principais pagadores de todas as obrigações emergentes do referido contrato, renunciando ao benefício de excussão prévia o que faz emergir para eles do próprio contrato de arrendamento, a dívida exequenda porque se obrigaram a pagar as rendas em dívida – vd. ac. STJ 17/11/2020 no proc. 3794/18.3T8SNT-A.L1.S1 in dgsi.pt.
Decidida esta, uma segunda questão se apresenta, qual é a de determinar se a comunicação aos fiadores, como a lei exige no art. 14-A nº 1 para os arrendatários, é exigível para que se forme o título executivo quanto àqueles. E também neste âmbito existe controvérsia porque há quem sustente haver título executivo contra fiador sem necessidade de comunicação do montante em dívida – Ac. TRL de 17/03/2016, proc. 16777-13.0T2SNT-A.L1-6,; Ac. TRL de 07-11-2019, proc. 1866/17.0T8ALM-A.L1-6, Ac. TRL de 14-03-2019, proc. 4957/18.7T8SNT-B.L1-6 – havendo outro entendimento que defende que a interpelação é necessária (podendo ou não obrigar apenas ao pagamento das rendas).
Sustentam os primeiros que, se nos termos do artigo 627º do CC, “o fiador garante a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado perante o credor”, sendo esta obrigação dos fiadores uma obrigação com prazo certo, que dispensa interpelação, conforme disposto no artigo 805º nº 2 a) do mesmo código, estabelecendo ainda o artigo 634º que “a fiança tem o conteúdo da obrigação principal e cobre as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor”, não há qualquer relevância ou necessidade de comunicação prévia da dívida ao fiador, que já este está obrigado pela mora do devedor principal, o arrendatário. E não exigindo a lei expressamente a necessidade da comunicação prévia dos fiadores na formação do título executivo não se concebe que não tenha sido intenção do legislador a possibilidade de executar o fiador juntamente com o devedor principal, apesar de não considerar necessária a sua prévia notificação prévia, à semelhança do que sucede com este – ver por todos o ac. STJ de 17/11/2020 no proc. 3794/18.3T8SNT-A.L1.S1 in dgsi.pt.
Concluem, portanto, que a exequente não precisava de fazer a comunicação prévia aos fiadores, sendo eficaz contra estes como título executivo o contrato de arrendamento e a comunicação feita ao executado arrendatário – vd. para lá dos já citados a decisão singular no TRL de 12/12/2008 (Tomé Gomes), em www.dgsi.pt. e ainda Menezes Leitão (Arrendamento Urbano, 6ª edição (2013), pág. 234.
Num sentido diferente e que acolhemos, temos por necessária a notificação do fiador para assim ser obtido, contra ele, título executivo indo neste sentido Laurinda Gemas, Albertina Pedroso, João Caldeira Jorge - Arrendamento Urbano, 2ª edição, pág. 52); Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo, A acção executiva Anotada e Comentada, p. 147 e na jurisprudência os acs. STJ de 26/11/2014, da RL de 17/11/2020 de 07/07/2016 de 07/06/2016 de 21 de Março de 2013 e de 1 de Março de 2012, todos já antes citados.
A afirmação da desnecessidade da prévia notificação ao inquilino dos valores em dívida não a vemos apenas como a exigência de liquidação da obrigação exequenda por as obrigações ilíquidas não poderem ser realizadas coactivamente (artº 716º e 10º nº 1) ou que, por esta razão, tal exigência já não se estende ao fiador (é este o sentido da decisão singular proferida em 12/12/2008 no TRL (relator Tomé Gomes). Estando o garante vinculado pelo regime geral da fiança que decorre do contrato de arrendamento e podendo saber que o vencimento da obrigação é a termo certo e cobre as consequências contratuais da mora do devedor, a necessidade de interpelação cremos que se mantém para o fiador em igual que a lei exige para o arrendatário, por imperativos de equilíbrio e proporcionalidade, atendendo à natureza das próprias obrigações tripartidas e ao facto de se tratar da criação de um título executivo cuja norma refere esse requisito.
Colocada a problemática no âmbito da formação do título executivo que emerge do contrato de arrendamento e incumprimento, julgamos manter actualidade o decidido no ac. do STJ de 26/11/2014 onde se expressou que “emergindo do próprio contrato de arrendamento, a dívida exequenda tem como sujeito passivo quem nele se obrigou a pagar as rendas em dívida, no caso, não só a arrendatária, mas também os seus fiadores que naquele acordo se vincularam perante o senhorio, nos termos descritos no facto nº 3 – artigos 627º, nº 1, 634º e 640º, alínea a), todos do Código Civil” e “apesar de o artigo 15º, n.º 2 da Lei 6/2006, se referir apenas à comunicação ao arrendatário, consideramos que, por identidade de razão, a comunicação também deverá ser feita aos fiadores”. - no proc. 1442/12.4TCCLRS-B.L1.S1, publicado no site da dgsi,
Assim sendo, estando demonstrado que os exequentes comunicaram o incumprimento aos fiadores, ora executados, interpelando-os para o pagamento na qualidade como principais pagadores, o contrato de arrendamento acompanhado do comprovativo da comunicação constitui título executivo não só em relação aos arrendatários, mas também em relação às pessoas que no dito contrato tenham assumido a obrigação de fiadores. Como acolhe Miguel Teixeira de Sousa “Da mesma forma que a arrendatário tem o direito a saber, na comunicação do senhorio, como foi liquidada a obrigação exequenda, também o fiador tem esse direito, até porque pode querer pagar a quantia em divida sem que lhe seja instaurada a execução.” - anotação do ac. do TRL 7/11/2020 no 1866/17.0T8ALM-A.L1-6. Embora o acórdão anotado tivesse decidido que “O título executivo para ação executiva de pagamento de rendas de um contrato de arrendamento, constituído pelo contrato de arrendamento e pela comunicação da quantia em dívida ao arrendatário, é também título executivo contra os fiadores, sem que seja necessário comunicar-lhes previamente o montante em dívida como acontece com o arrendatário”, a anotação de acolhimento de Miguel Teixeira de Sousa repete o voto de vencido deixado expresso, acrescentando que esta admissão não resulta tanto de “o fiador dever ter conhecimento prévio da execução (se assim fosse, seria difícil aceitar a forma sumária da execução para o pagamento de quantia certa que se encontra estabelecida no art. 550.º, n.º 2, al. d), CPC), mas antes por um argumento a fortiori: se a comunicação tem de ser realizada ao arrendatário (parte contratante), então, por maioria de razão, tem de ser feita ao fiador.” - https://blogippc.blogspot.com /2020/ 04/ jurisprudencia-2019-212.html."
[MTS]