"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/06/2019

Jurisprudência 2019 (34)


Embargos de executado;
preclusão; caso julgado* 


1. O sumário de STJ 19/3/2019 (751/16.8T8LSB.L2.S1) é o seguinte:

I - Na oposição à execução o embargante tem o ónus de concentrar na sua petição todos os fundamentos que podem justificar o pedido por ele formulado (isto é, que podem justificar a concreta exceção deduzida). A inobservância deste ónus de concentração implica a preclusão dos fundamentos não alegados nessa petição.

II - Porém, deixando de invocar um qualquer fundamento (exceção) contra a execução, não poderá falar-se de um efeito preclusivo para além do próprio processo executivo, de modo que nada impedirá que o executado venha depois a invocar num outro processo o fundamento (a exceção) omitido e que sempre podia ter invocado na oposição.

III - Tendo o réu proposto ação executiva contra os autores com base em certa livrança e tendo estes deduzido oposição à execução, mas não tendo invocado como fundamento dessa oposição qualquer simulação ou qualquer reserva mental subjacentes à sua vinculação como avalistas, nada impede, à luz da figura da preclusão, que venham agora discutir a simulação e a reserva mental com vista a verem-se livres da responsabilidade de avalistas que justificou a sua demanda na execução.

IV - O mesmo se diga dos fundamentos/pedidos da ação relativos à nulidade do aval prestado por violação do disposto no n.º 2 do art. 75.º da LULL, à resolução do negócio jurídico de aval por alteração das circunstâncias e à redução do aval, que não constituíram, em si mesmos, fundamento de oposição à execução.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Como relatado supra, a 1ª instância decidira que se registava erro forma do processo (com a consequente absolvição dos Réus da instância por nulidade total do processo), com o argumento de que era na oposição à execução que o Réu EE, S.A. instaurou contra os ora Autores e contra a Ré FF, Lda. que tinha que ser apresentada “toda a defesa”.

Embora numa óbvia confusão entre erro na forma de processo e preclusão, na visão (implícita) da 1ª instância as pretensões que os Autores vieram deduzir na presente ação equivaleriam a uma defesa que apenas em sede de oposição à execução podia ter tido lugar, tendo por isso precludido a possibilidade de discutirem agora o que não discutiram naquela oposição. Embora se trate de pormenor irrelevante, observe-se que o assim decidido pela 1ª instância partiu da atividade puramente oficiosa do tribunal (embora tenha sido respeitada a prévia audição das partes), pois que os Réus – a começar precisamente pelo ora Recorrente, que nos vem falar de preclusão - não invocaram nas respetivas contestações (ou sequer fora delas) a ocorrência de qualquer preclusão.

Diferente foi o entendimento do tribunal ora recorrido, para quem “os autores não estão impedidos de reeditar na presente ação a discussão que tencionaram travar na oposição, não se podendo falar neste caso em preclusão”.

É contra este entendimento que reage agora o Réu EE, S.A., embora, e se bem se entende (ver conclusão G)), fazendo-o exclusivamente com referência às questões da simulação e da reserva mental invocadas pelos Autores. Portanto, o que está em causa no recurso é tão-somente saber se os Autores, não o tendo feito na oposição à execução, podem agora suscitar as questões da simulação e da reserva mental que fundam um dos seus pedidos (em boa verdade, apenas a invalidade por simulação, e não também por reserva mental, faz parte do petitório). Tudo isto com reporte à figura da preclusão.

A nosso ver o Recorrente carece de razão.

Justificando:

Parafraseando aqui o que já houve oportunidade de se deixar escrito no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 4 de abril de 2017 (proferido no processo n.º 1329/15.9T8VCT.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt, relatado pelo relator do presente acórdão e sendo adjuntos os Exmos. Conselheiros Nuno Cameira e João Camilo), com referência ao que se aduz no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-12-2016 (processo nº 1129/09.5TBVRL-H.G1.S2, relator Fonseca Ramos) - que, por seu turno, transcreve um escrito de Miguel Teixeira de Sousa - aceitamos que a preclusão pode ser definida como a inadmissibilidade da prática de um ato processual pela parte depois do prazo perentório para a sua realização, sendo que uma das funções que realiza é a de estabilização: uma vez inobservado o ónus de praticar o ato, estabiliza-se a situação processual decorrente da omissão do ato, não mais podendo esta situação ser alterada ou só podendo ser alterada com um fundamento específico. Quando referida a factos, a preclusão é correlativa não só de um ónus de alegação, mas também de um ónus de concentração: de molde a evitar a preclusão da alegação do facto, a parte tem o ónus de alegar todos os factos relevantes no momento adequado. A correlatividade entre o ónus de concentração e a preclusão significa que, sempre que seja imposto um ónus de concentração, se verifica a preclusão de um facto não alegado, mas também exprime que a preclusão só pode ocorrer se e quando houver um ónus de concentração. Se não for imposto à parte nenhum ónus de concentração, então a parte pode escolher o facto que pretende alegar para obter um determinado efeito e, caso não o consiga obter, pode alegar posteriormente um facto distinto para procurar conseguir com base nele aquele efeito. Na oposição à execução, o embargante têm o ónus de concentrar na petição todos os fundamentos que podem justificar o pedido por ele formulado. A inobservância deste ónus de concentração implica a preclusão dos fundamentos não alegados naquela petição [...]. 

Aqui chegados, pergunta-se: o executado está submetido a um ónus de concentrar nos embargos à execução toda e qualquer defesa (todo e qualquer o fundamento/exceção, deduzido e deduzível), de modo que jamais poderá discutir em ação posterior um fundamento que sempre podia ter suscitado na oposição à execução mas que não suscitou?

Cremos que se impõe a resposta negativa.

Continuando a parafrasear o supra citado acórdão de 4 de abril de 2017, diremos, em torno deste assunto, o seguinte:

“De acordo com entendimento doutrinário corrente (assim, Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 4ª ed., pp. 190 e 191; Anselmo de Castro, A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 3ª ed., pp. 303 a 305; e, de certa forma, Castro Mendes, Acção Executiva, p. 54), o executado não está sujeito a qualquer ónus de oposição à execução (aliás, não é citado ou notificado sob qualquer cominação para o caso de não deduzir oposição), e daqui que, não deduzindo oposição, tal não acarreta uma cominação, mas tão só a preclusão, no processo executivo, de um direito processual cujo exercício se poderia revelar vantajoso, mas sem que se possa falar de caso julgado a impor-se noutra ação posterior ou de um efeito preclusivo para além do próprio processo executivo. Nesta medida, será de entender (e é o que, no fundo, significam os dois supra citados autores) que deixando o executado de deduzir oposição, nada impedirá que venha depois a invocar em outro processo (isto com vista à restituição da quantia injustamente recebida pelo exequente na execução) os fundamentos (exceções) que podia ter invocado na oposição. É esta também a visão, entre outra vária jurisprudência, do acórdão da RP de 6 de fevereiro de 2007 (processo nº 0720269, relator Vieira e Cunha, disponível em www.dgsi.pt), onde se sustenta que o decurso do prazo para a oposição à execução tem apenas efeitos dentro do processo, não existindo fundamento legal para que se possa entender que a respetiva preclusão produz efeitos fora do mesmo, e daqui que a não dedução de oposição à execução não impede o executado de propor ação declarativa que vise a repetição do indevido (no mesmo sentido a doutrina e jurisprudência aí citadas). Este ponto de vista assume toda a lógica desde que, como parece dever ser o caso, se encare a oposição à execução, não como uma contestação ao pedido executivo (e, assim, não se lhe aplica a regra do n.º 1 do art. 573.º do CPCivil), mas como uma petição de uma ação declarativa autónoma cujo objeto é definido pelo executado (valendo cada um dos fundamentos materiais invocados como verdadeiras causa de pedir).

Diferentes serão as coisas se o executado enveredar pela dedução de oposição à execução, e a oposição for objeto de decisão de mérito. Pois que nos termos do n.º 5 do art. 732.º do CPCivil atual (que veio consagrar um princípio que já correspondia a uma corrente de opinião bem estabelecida; v. a propósito Jorge de Almeida Esteves, Themis, nº 18, pp. 47 e seguintes), a decisão de mérito proferida na oposição constituirá, nos termos gerais, caso julgado quanto à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda (…).

Concordantemente, aduz-se no acórdão da Relação de Lisboa de 7 de fevereiro de 2013 (processo nº 4279/10.1TBVFX.L1-6, relatora Fernanda Isabel Pereira, disponível em www.dgsi.pt) que o executado pode defender-se em ação declarativa, visando a restituição do indevido, mediante a invocação do que podia ter sido fundamento de oposição, sendo que só as decisões transitadas que incidam sobre o mérito da causa (ou seja, que apreciem a relação material controvertida que se discute na ação) adquirem a força de caso julgado material e têm a virtualidade de poder ter força obrigatória fora do processo em que foram proferidas (…).

E no acórdão da Relação de Coimbra de 21 de janeiro de-2014 (processo nº 1117/09.1T2AVR.C1, relator Barateiro Martins, disponível em www.dgsi.pt) aduz-se, e concorda-se também com tal ponto de vista, que o resultado de um processo executivo não goza, via de regra, da irrevogabilidade análoga à do caso julgado material, não obstando, em princípio, à propositura pelo executado de uma ação de restituição do indevido, uma vez que, não representando a oposição à execução uma contestação da ação executiva (e não estando por isso sujeita aos ónus de contestação, de impugnação especificada e de preclusão), esta (a ação de restituição do indevido) se deve ter sempre como admissível e acessível ao executado que, mesmo por negligência, não deduziu qualquer oposição. Só assim não poderá ser, mais se diz no acórdão, se a falta de causa da deslocação patrimonial (produzida na execução) invocada na ação de restituição do indevido tiver a ver com a mesma situação jurídica que foi invocada na oposição deduzida à execução, que aí foi alvo de decisão de mérito (naturalmente, de improcedência) e que por isso fez caso julgado material e que não pode voltar a ser discutida entre as partes.

Dentro desta linha, tem-se entendido que nada impede que o executado que deduziu oposição à execução com determinado fundamento material mas que improcedeu, possa, em ação subsequente, neutralizar o enriquecimento do exequente, mediante a invocação de um outro fundamento material distinto (neste sentido, v., por exemplo, Lebre de Freitas, ob. cit., p. 191; Lebre de Freitas, Cadernos de Direito Privado, nº 26, p. 43; Carlos Soares, Themis, nº 7, pp. 241 a 259; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de fevereiro de 2012, processo nº 286/07.0TVLSB.L1.S1, relator Serra Batista, disponível em www.dgsi.pt; acórdão da Relação do Porto de 13 de março de 2014, processo nº 2997/11.6TBMTS.P1, relator Pedro Martins, disponível em www.dgsi.pt).”

No caso vertente não estamos, é certo, perante qualquer causa de pedir e pedido tendentes á restituição do enriquecimento indevido, mas a argumentação que vem de ser exposta vale inteiramente para o que aqui se discute. A conclusão a retirar é que na oposição à execução o embargante tem o ónus de concentrar na sua petição todos os fundamentos que podem justificar o pedido por ele formulado nos embargos (isto é, que podem justificar a concreta exceção deduzida). A inobservância deste ónus de concentração implica a preclusão dos fundamentos não alegados nessa petição. Porém, deixando de invocar um qualquer fundamento (exceção) contra a execução, não poderá falar-se de um efeito preclusivo para além do próprio processo executivo, de sorte que nada impedirá que o executado venha depois a invocar num outro processo o fundamento (a exceção) omitido e que sempre podia ter invocado na oposição.

Ora, como resulta dos factos acima transcritos, o ora Réu EE, S.A. propôs ação executiva contra os ora Autores (e contra a ora Ré FF Lda.) com base na livrança em questão nos presentes autos. Os Autores (e a FF Lda.) deduziram oposição à execução, mas não invocaram como fundamento dessa oposição qualquer simulação ou qualquer reserva mental subjacentes à sua vinculação como avalistas. Deste modo, nada impede, à luz da figura da preclusão, que venham agora discutir a simulação e a reserva mental com vista a verem-se livres da responsabilidade de avalistas que justificou a sua demanda na execução.

E embora, como sobredito, o Recorrente se centre aparentemente apenas no fundamento atinente à nulidade do negócio de aval por simulação e reserva mental, sempre acrescentamos que a conclusão a que chegámos se impõe de igual forma quanto aos demais fundamentos/pedidos da presente ação, isto é, ao da nulidade do aval prestado por violação do disposto no n.º 2 do art. 75.º da LULL, ao da resolução do negócio jurídico de aval por alteração das circunstâncias e ao da redução do aval. Pois que, percorrendo o articulado da oposição à execução em causa (processo n.º 273/14.1TBTVR), que consta de fls. 196 e seguintes dos autos (e que os Autores voltam a juntar com a sua contra-alegação), vemos que, conquanto nessa oposição se tenham alegado factos que também são alegados na presente ação (tendentes a significar a inexistência de incumprimento definitivo), os supra mencionados fundamentos/pedidos não constituíram, em si mesmos, fundamento de oposição à execução.

Não concordamos, assim, como o que o Recorrente afirma nas conclusões A) a G) e J).

E o que se contém nas conclusões H) e I) está certo, mas não conduz, na situação vertente, a qualquer preclusão.

Improcede, deste modo, o presente recurso."

*3. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, discorda-se, sem reservas, do decidido pelo STJ.

Existem sólidos argumentos jurídicos que impõem uma solução distinta daquela que foi propugnada pelo STJ e que evitam que se possa chegar a uma solução que se traduz, primeiro, num pagamento do executado ao exequente e, depois, numa restituição por este do que anteriormente tinha recebido daquele mesmo executado. Supõe-se que qualquer leigo teria enorme dificuldade em aceitar que esta solução possa corresponder a um bom e normal funcionamento da justiça.

Segundo se crê, a solução para o problema em análise resulta do disposto no art. 732.º, n.º 5, CPC, no qual se estabelece que a decisão de mérito proferida nos embargos à execução constitui caso julgado (material) quanto à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda. Este regime só pode significar isto: enquanto não for invocado um facto subjectiva ou objectivamente superveniente ao encerramento da discussão nos embargos de executado não pode pôr-se em causa a existência, a validade ou a exigibilidade da obrigação exequenda que foi reconhecida na decisão proferida nos embargos de executado. Aliás, foi esta a razão pela qual em 2013 se introduziu (de forma inovatória, passe a redundância) no actual CPC o n.º 5 do art. 732.º.

Qualquer outra solução -- nomeadamente a que entende que não há nenhuma preclusão dos fundamentos de defesa do executado -- é, naturalmente, incompatível com o regime do caso julgado estabelecido no art. 732.º, n.º 5, CPC. É exactamente porque está precludida a invocação em processo posterior de qualquer meio de defesa que podia ter sido invocado nos embargos que há caso julgado sobre a existência, a validade ou a exigibilidade da obrigação exequenda. Entender o contrário -- isto é, aceitar que essa preclusão não existe -- implica naturalmente concluir que, afinal, não há caso julgado material sobre a existência, a validade e a exigibilidade da obrigação exequenda.

É precisamente neste ponto que reside o equívoco do STJ (para além de, quiçá esquecendo o regime inovatório constante do art. 732.º, n.º 5, CPC, se socorrer de jurisprudência e de doutrina anteriores a esse preceito). Não é possível compatibilizar o disposto no art. 732.º, n.º 5, CPC com o entendimento de que o executado não tem nenhum ónus de alegar, nos respectivos embargos, todos os fundamentos de oposição e, por isso, de que a falta da alegação de algum destes fundamentos não produz nenhum efeito preclusivo. O efeito de caso julgado só é compatível com um efeito preclusivo, dado que a falta deste efeito permite destruir o caso julgado.

Note-se que a solução que decorre do art. 732.º, n.º 5, CPC nada tem de incomum no panorama do processo civil português. Essa solução é exactamente a que decorre do estabelecido no art. 619.º, n.º 1, CPC: é porque ficam precludidos quaisquer fundamentos de defesa não oportunamente invocados na contestação pelo réu que qualquer decisão de procedência tem força de caso julgado material. Sem essa preclusão não se poderia dizer que a sentença de procedência tem força de caso julgado material, porque sem essa preclusão nem sequer estão preenchidas as condições para que essa sentença possa ter força de caso julgado material.

b) Em suma: 

-- Ou há preclusão e, por isso, há caso julgado; ou não há preclusão e, então, também não há caso julgado;

-- Dado que o art. 732.º, n.º 5, CPC estabelece o consequente -- que é o caso julgado da decisão de improcedência dos embargos --, então também tem de se verificar o antecedente -- que é a preclusão dos fundamentos de defesa do executado que não tenham sido alegados nos embargos.
 
MTS