"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/12/2024

Jurisprudência 2024 (62)


Fase de recurso;
junção de documentos*



1. O sumário de RL 4/4/2024 (1329/20.7T8OER-B.L1-2) é o seguinte:

I) De acordo com o disposto nos artigos 423.º, n.º 3, 425.º e 651.º, n.º 1, do CPC, a junção de documentos na fase de recurso apenas é admissível se: a) Foi impossível a apresentação do documento antes do encerramento da discussão em 1.ª instância; ou b) A junção se tornou necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.

II) A impossibilidade da junção refere-se à superveniência do documento face ao julgamento em primeira instância e pode objetiva (se historicamente ocorreu depois do julgamento em 1.ª instância) ou subjetiva (se só foi conhecido, num quadro de normal diligência, do apresentante posteriormente ao julgamento em 1.ª instância, não podendo ter tido conhecimento da sua existência ou da situação a que o mesmo se refere).

III) A necessidade da junção em virtude do julgamento da 1.ª instância cinge-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objeto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida.

IV) Nos termos do disposto na alínea c) do artigo 736.º do CPC, são classificados como impenhoráveis, por razões de interesse geral, os objetos cuja apreensão é ofensiva dos bons costumes (cfr. artigo 280.º do CC) ou que careçam de justificação económica atendendo ao diminuto valor, não visando a penhora a satisfação do crédito exequendo, mas a humilhação do executado.

V) Por seu turno, com o CPC de 2013, os bens imprescindíveis a qualquer economia doméstica, que antes se encontravam entre os bens absoluta ou totalmente impenhoráveis, passaram a constar no n.º 3 do artigo 737.º do CPC, no elenco de bens relativamente impenhoráveis, devendo tal conceito ("bens imprescindíveis a qualquer economia doméstica") aferir-se, objetivamente, relativamente a qualquer economia doméstica, o que implica o recurso a um padrão mínimo de dignidade social.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

A) Questão prévia – Da admissibilidade da junção de documentos com as alegações de recurso.

Com as alegações de recurso, a apelante junta 7 documentos, sendo 5 cópias de fotografias e 2 documentos referentes ao apoio judiciário requerido.

Nos termos do artigo 651º, nº1, do CPC, “as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância”.

E o artigo 425.º do CPC dispõe que: 

“Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”.

Explicando o modo de conjugação destas normas, referiu-se no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26-09-2016 (Pº 1203/14.6TBSTS.P1, rel. MANUEL DOMINGOS FERNANDES) que, “da articulação lógica entre o artigo 651º, nº 1 do CPC e os artigos 425º e 423º do mesmo Código resulta que a junção de documentos na fase de recurso, sendo admitida a título excepcional, depende da alegação e da prova pelo interessado nessa junção de uma de duas situações: (1) a impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso; (2) ter o julgamento de primeira instância introduzido na acção um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional.

Quanto ao primeiro elemento, a impossibilidade refere-se à superveniência do documento, referida ao momento do julgamento em primeira instância, e pode ser caracterizada como superveniência objectiva ou superveniência subjectiva.

Objectivamente, só é superveniente o que historicamente ocorreu depois do momento considerado, não abrangendo incidências situadas, relativamente a esse momento, no passado. Subjectivamente, é superveniente o que só foi conhecido posteriormente ao mesmo momento considerado.

Neste caso (superveniência subjectiva) é necessário, como requisito de admissão do documento, a justificação de que o conhecimento da situação documentada, ou do documento em si, não obstante o carácter pretérito da situação quanto ao momento considerado, só ocorreu posteriormente a este e por razões que se prefigurem como atendíveis.

Só são atendíveis razões das quais resulte a impossibilidade daquela pessoa, num quadro de normal diligência referida aos seus interesses, ter tido conhecimento anterior da situação ou ter tido anteriormente conhecimento da existência do documento”.

No que tange à impossibilidade de apresentação anterior, referem Lebre de Freitas et al (Código de Processo Civil Anotado, 2º Vol., Coimbra Editora, 2001, p. 426) que: “Constituem exemplos de impossibilidade de apresentação o de o documento se encontrar em poder de terceiro, que só posteriormente o disponibiliza, de a certidão de documento arquivado em notário ou outra repartição pública, atempadamente requerida, só posteriormente ser emitida [superveniência objetiva] ou de a parte só posteriormente ter conhecimento da existência do documento [superveniência subjetiva]. Nos dois primeiros casos, será necessário que se tenham esgotado anteriormente os meios dos arts. 531 a 537 [atuais Artigos 432º a 437º do Código de Processo Civil].» RUI PINTO, Notas ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, 2014, p. 265, afirma que: «Os documentos apresentados referem-se a factos já trazidos ao processo, nos articulados normais ou nos articulados supervenientes (cf. artigos 588º e ss.). Portanto, a regra é a de que os documentos supervenientes não trazem ao processo factos supervenientes”.
 
Quanto à necessidade da junção em virtude do julgamento da primeira instância (artigo 651º, n.º 1, do CPC), “a lei não abrange a hipótese de a parte se afirmar surpreendida com o desfecho da ação (ter perdido, quando esperava obter ganho de causa) e pretender, com tal fundamento, juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em primeira instância. O legislador quis manifestamente cingir-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objeto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida” (cfr. Antunes Varela et al.; Manual de Processo Civil, 2ª Ed., pp. 533-534).

“Podem ainda ser apresentados documentos quando a sua junção apenas se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido, máxime quando este se revele de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo./ A jurisprudência anterior sobre esta matéria não hesita em recusar a junção de documentos para provar factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado” (assim, Abrantes Geraldes; Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, pp. 184-185).

Assim, “(…) a junção de documentos às alegações da apelação só poderá ter lugar se a decisão da 1ª instância criar pela 1ª vez a necessidade de junção de determinado documento, quer quando se baseie em meio probatório não oferecido pelas partes, quer quando se funde em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação as partes não contavam” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-09-2012, P.º n.º 174/08, rel. GONÇALVES ROCHA).

Na permissão normativa incluem-se as situações que - pela fundamentação da sentença ou pelo objeto da condenação - tornaram necessário provar determinados factos, cuja relevância a parte não podia, razoavelmente, ter em consideração antes da decisão ter sido proferida.

Contudo, o regime do artigo 651º, nº 1, do CPC não abrange a hipótese de a parte pretender juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em 1ª instância.

Assim, não é admissível a junção, com a alegação de recurso, de um documento potencialmente útil à causa ab initio e não apenas após a prolação da sentença, dado que, “já era potencialmente útil à apreciação da causa” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa; Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 502).

Conforme se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 05-05-2016 (Pº 788/13.9TBSTR.E1, rel. MANUEL BARGADO), “a impossibilidade de apresentação em momento anterior legitima as partes a utilizar no recurso, juntando-o com a motivação deste, o documento cuja apresentação não tenha sido possível até esse momento, ou seja, até ao julgamento em primeira instância, o que pressupõe aquilo que se refere como superveniência objetiva ou subjetiva do documento pretendido juntar. No caso de superveniência subjetiva é necessário, como requisito de admissão do documento, a justificação de que o conhecimento da situação documentada, ou do documento em si, apesar do carácter pretérito da situação quanto ao momento considerado, só ocorreu posteriormente a este por razões que se afigurem como atendíveis. Só são atendíveis razões das quais resulte a impossibilidade do apresentante, num quadro normal de diligência referida aos seus interesses, ter tido conhecimento anterior da situação ou ter tido anteriormente conhecimento da existência do documento”.

Ou seja: Não é admissível a junção de documentos para provar factos que já antes da decisão a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado.

Por outro lado, uma vez que a junção de documentos tem em vista a prova de factos que hajam sido alegados, a possibilidade de junção de documentos, em sede de recurso, não poderá ter como objetivo ou finalidade a prova de factos que não hajam sido alegados.

Em síntese, pode concluir-se que “[d]a leitura articulada dos artigos 651.º, n.º 1, 425.º do CPC decorre que as partes apenas podem juntar documentos em sede de recurso de apelação, a título excepcional, numa de duas hipóteses: superveniência do documento ou necessidade do documento revelada em resultado do julgamento proferido na 1.ª instância. No que toca à superveniência, há que distinguir entre os casos de superveniência objectiva e de superveniência subjectiva: aqueles devem-se à produção posterior do documento; estes ao conhecimento posterior do documento ou ao seu acesso posterior pelo sujeito. Quando o acesso ao documento está ao alcance da parte, a instrução do processo com a sua apresentação é um ónus, devendo desconsiderar-se a inacessibilidade que seja imputável à falta de diligência da parte, sob pena de se desvirtuar a relação entre a regra e a excepção ditada, nesta matéria, pelo legislador. No que toca à necessidade do documento, os casos admissíveis estão relacionados com a novidade ou imprevisibilidade da decisão, não podendo aceitar-se a junção de documentos quando ela se revele pertinente ab initio, por tais documentos se relacionarem de forma directa e ostensiva com a questão ou as questões suscitadas nos autos desde o primeiro momento” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30-04-2019, Pº 22946/11.0T2SNT-A.L1.S2, rel. CATARINA SERRA).

Da conjugação do n.º 1 com o n.º 2 do artigo 651.º do CPC resulta evidente que, a junção de prova documental em sede de recurso admitida no n.º 1 do preceito apenas poderá ter lugar até ao momento de apresentação de alegações, não prevendo a lei a possibilidade da sua apresentação em momento ulterior a tal apresentação, o que já não sucederá com os pareceres dos jurisconsultos que, nos termos do n.º 2, podem ser juntos aos autos até ao início de elaboração do projeto de acórdão.

Revertendo estas considerações para o caso dos autos, verifica-se que a apelante vem juntar dois documentos atinentes ao apoio judiciário que requereu, documentos que, não sendo impertinentes e respeitam ao aludido benefício, deverão ser admitidos.

Já, assim, não sucede quanto aos demais documentos (cópias fotográficas), pois, de facto, não demonstra a recorrente qualquer necessidade na junção ou alguma superveniência na respetiva apresentação.

A junção das cinco cópias fotográficas, no momento em que ocorreu mostra-se, pois, contrária ao disposto nos mencionados artigos 425.º e 651.º do CPC, não devendo ser admitida.

Pode sobre esta questão concluir-se, em síntese, que:

- De acordo com o disposto nos artigos 423.º, n.º 3, 425.º e 651.º, n.º 1, do CPC, a junção de documentos na fase de recurso apenas é admissível se:

a) Foi impossível a apresentação do documento antes do encerramento da discussão em 1.ª instância; ou

b) A junção se tornou necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância;

- A impossibilidade da junção refere-se à superveniência do documento face ao julgamento em primeira instância e pode objetiva (se historicamente ocorreu depois do julgamento em 1.ª instância) ou subjetiva (se só foi conhecido, num quadro de normal diligência, do apresentante posteriormente ao julgamento em 1.ª instância, não podendo ter tido conhecimento da sua existência ou da situação a que o mesmo se refere);

- A necessidade da junção em virtude do julgamento da 1.ª instância cinge-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objeto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida.

Atenta a impertinência na apresentação dos referidos cinco documentos e visto o disposto nos artigos 423.º e 443.º do CPC, conjugados com o disposto no artigo 27.º, n.º 1, do RCP, deverá condenar-se a apresentante em multa, que, se deverá fixar no mínimo (0,5 U.C.).

De acordo com o exposto, não se admite a junção das cinco cópias fotográficas, juntas com as alegações. "

*3. [Comentário] O enunciado de que

"A necessidade da junção em virtude do julgamento da 1.ª instância cinge-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objeto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida"

não é indiscutível. Se a parte é surpreendida na sentença final com algo com que "não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida", é enorme a probabilidade de essa sentença conter uma decisão-surpresa (art. 3.º, n.º 3, CPC).

MTS

 

03/12/2024

A prática do acto preclude a sua repetição durante a pendência do prazo?


1. Este pequeno apontamento pretende dar resposta ao seguinte problema: em que condições a prática de um acto pela parte preclude a repetição do acto durante a pendência do prazo de que essa parte dispõe para a sua realização?

Esta pergunta pressupõe que se trata de um acto que integra um procedimento e, portanto, para o qual a lei fixa um prazo para a sua realização. Como é claro, não importa cuidar de saber se a parte pode repetir um acto que, por não pertencer a um qualquer procedimento, nunca devia ter sido realizado e cuja prática constitui uma nulidade processual (art. 195.º, n.º 1, CPC). 

A resposta à pergunta acima formulada merece uma resposta distinta para duas diferentes situações.

2. Uma primeira situação a considerar é esta: o acto foi regularmente praticado e produziu efeitos em processo (acto constitutivo) ou foi deferido pelo tribunal (acto postulativo), mas a parte ainda dispõe de prazo para a sua prática. Nesta hipótese, a pergunta que se coloca é a seguinte: pode a parte voltar a praticar o acto, revogando assim o acto anterior? Num caso mais concreto: a parte que não esgotou o prazo de contestação pode voltar a apresentar uma nova contestação no prazo que a lei lhe concede para o efeito?

Não é impossível dar uma resposta positiva a esta questão -- o direito comparado demonstra-o (Rosenberg/Schwab/Gottwald, Zivilprozessrecht (2018), § 71, 22) --, mas essa resposta contradiria uma orientação que se julga estar bem assente na prática forense portuguesa. Por isso a resposta é a seguinte: se a parte praticou regularmente um acto processual, não pode voltar a praticar o acto, mesmo que ainda dispusesse de prazo para o efeito e mesmo que visasse apenas completar, corrigir ou alterar o acto praticado. Assim, por exemplo, a parte que contestou ou que apresentou as alegações de recurso não pode voltar a apresentar nova contestação (mesmo que pretenda agora formular uma reconvenção que antes não deduzira) ou novas alegações (ainda que pretenda diminuir as decisões impugnadas).

3. Para além da situação anterior, há que considerar uma outra: a parte praticou o acto, mas o mesmo não produziu efeitos (acto constitutivo) ou não pôde ser deferido pelo tribunal (acto postulativo) por padecer de uma irregularidade ou da falta de um pressuposto subjectivo ou objectivo. Nesta hipótese, a pergunta é a mesma que acima se colocou: depois de sanar a irregularidade ou a falta do pressuposto do acto, a parte pode voltar a praticar o acto dentro do prazo de que ainda dispõe?

Para uma situação distinta impõe-se uma resposta também distinta. Nesta última circunstância, nada impede que a parte repita o acto. No fundo, o que prevalece é a faculdade de a parte sanar a irregularidade ou a falta do pressuposto sobre a preclusão da repetição do acto. Se a parte tem prazo para a prática do acto, nada pode impedir que a parte o repita depois de sanar o vício de que o mesmo padecia. 
Por exemplo: (i) suponha-se que, na audiência final, a parte não apresenta o articulado superveniente de forma oral (art. 589.º, n.º 2, CPC); enquanto a audiência final não estiver encerrada, a parte pode apresentar, de novo, esse articulado respeitando o disposto neste preceito; (ii) admita-se que a parte requereu a prova por declarações (art. 466.º, n.º 1, CPC), embora sem indicar os factos sobre os quais a prova vai incidir (art. 466.º, n.º 2, e 452.º, n.º 2, CPC); enquanto a parte dispuser de prazo para o fazer (art. 466.º, n.º 1, CPC), a parte pode requerer, de novo, a prova por declarações.

A regra que importa enunciar é, pois, esta: durante o prazo para a realização de um acto, a parte pode repetir o acto, se a parte aproveitar a repetição para sanar uma irregularidade ou a falta de um pressuposto do acto. A solução é equilibrada, dado que não permite a repetição do acto com base num mero arrependimento da parte, mas aceita essa repetição se esta servir para sanar uma irregularidade ou a falta de um pressuposto do acto. Para procurar ser ainda mais claro: a justificação para a repetição do acto durante a pendência do prazo não é a mudança da vontade da parte, mas antes a criação das condições para que o acto possa produzir efeitos ou possa ser deferido. Se estas condições estiverem preenchidas, a repetição do acto é admissível e a parte pode, além de sanar o vício, completar, corrigir ou alterar o acto praticado; se essas condições não estiverem preenchidas, a repetição não é admissível e o que releva é o acto anterior.

Pode compreender-se que um acto que produziu efeitos (perante a contraparte e o tribunal) ou que foi deferido pelo tribunal não possa ser repetido. Mais difícil é compreender que um acto que não produziu efeitos, que não foi deferido ou que não está em condições de o ser por uma irregularidade ou pela falta de um pressuposto não possa ser repetido durante o prazo de que a parte dispõe para a sua prática.

MTS

Jurisprudência 2024 (61)


Processo de inventário;
cabeça-de-casal; designação


1. O sumário de RP 22/2/2024 (725/23.2T8PVZ-A.P1) é o seguinte:

O testamenteiro só é chamado a exercer o cargo de cabeça de casal não havendo cônjuge sobrevivo, não separado judicialmente de pessoas e bens, que seja herdeiro ou meeiro nos bens do casal.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A questão jurídica suscitada prende-se com a definição de pessoa que deve exercer o cargo de cabeça de casal nos casos em que por testamento o inventariado nomeou testamenteiro e não o excluiu do exercício do cargo de cabeça de casal: se o cônjuge meeiro e herdeiro do inventariado ou antes o herdeiro que por testamento outorgado no Brasil, onde tinha residência, o inventariado nomeou testamenteiro e «inventariante».

As regras legais a que deve obedecer a atribuição do cargo de cabeça de casal encontram-se definidas no artigo 2080.º do Código Civil. A sua redacção é a seguinte:

«1. O cargo de cabeça-de-casal defere-se pela ordem seguinte:
a) Ao cônjuge sobrevivo, não separado judicialmente de pessoas e bens, se for herdeiro ou tiver meação nos bens do casal;
b) Ao testamenteiro, salvo declaração do testador em contrário;
c) Aos parentes que sejam herdeiros legais;
d) Aos herdeiros testamentários.
2. De entre os parentes que sejam herdeiros legais, preferem os mais próximos em grau.
3. De entre os herdeiros legais do mesmo grau de parentesco, ou de entre os herdeiros testamentários, preferem os que viviam com o falecido há pelo menos um ano à data da morte.
4. Em igualdade de circunstâncias, prefere o herdeiro mais velho.»

Esta norma estabelece de modo expresso uma ordem hierárquica entre os critérios de designação, de modo que só se a designação não for possível por aplicação do primeiro critério se passa ao segundo, e assim sucessivamente.

No caso, sucedem ao inventariado a viúva e cônjuge sobrevivo, não separada judicialmente de pessoas e bens, e os filhos, sendo que por testamento outorgado no Brasil pelo inventariado uma das filhas, a interessada CC, foi nomeada e constituída «testamenteiro e inventariante».

A primeira situa-se no primeiro grau da ordem fixada na norma, os outros no segundo (a testamenteira) e no terceiro grau (os restantes filhos) da mesma ordem, razão pela qual, nos termos da norma citada, aquela prefere a qualquer destes na designação para o exercício do cargo.

Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Volume VI, Coimbra Editora, 1998, página 137, em anotação ao artigo 2080.º do Código Civil que estabelece a ordem a observar na designação do cabeça-de-casal, escrevem que este preceito 

«… corresponde ao artigo 2068.º do Código de 1867, sem esquecer o diferente enquadramento sistemático da figura do cabeça de-casal nos dois diplomas legislativos.

Já no Anteprojecto de Galvão Telles (artigo 57.º) se propunham algumas alterações à escala de preferências fixada no Código de 1867, às quais outras se substituíram na primitiva redacção deste artigo 2080.º do novo Código.

A mais importante das alterações introduzidas pelo Código de 1966, em relação ao Código anterior, foi a da atribuição das funções de cabeça-de-casal, com os amplos poderes de administração de toda a herança, aos testamenteiros, salvo declaração do testador em contrário (cfr. al. b) do n.º 1).

O testamenteiro, que até à entrada em vigor do novo Código tinha a sua função, dentro do fenómeno sucessório, apertadamente limitada ao papel de agente da execução, total ou parcial, do testamento, saltou (decerto por inspiração do sinal de confiança que revela a sua designação por parte do testador) para o expressivo segundo lugar que passou a ocupar no artigo 2080.º (n.º 1, al. b)), dentro da lista dos possíveis cabeças-de-casal, logo a seguir ao cônjuge sobrevivo.

Este, que já na lista do Código de 1867 (artigo 2068.º) ocupava o 1.º lugar, continua a manter essa posição, salvo na hipótese de não partilhar nos bens a inventariar e de não serem herdeiros do inventariado descendentes seus. E, nesse ponto, houve também uma relativa alteração das coisas, apesar de o cônjuge sobrevivo continuar a figurar no 1.º lugar do rol das pessoas a quem, em princípio, compete o cargo de cabeça-de-casal.». [...]

Os mesmos autores, na anotação ao artigo 2326.º do Código Civil, loc. cit., página 509-510, afirmam ainda o seguinte:

«Confrontando agora o texto do artigo 2326.º do Código actual com o disposto no artigo 1899.º do Código anterior, duas conclusões saltam imediatamente à vista do leitor.

A primeira é a de que, quando lhe não couberem as funções de cabeça-de-casal, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 2080.º, as atribuições do testamenteiro limitam-se a bastante pouco, tal como sucedia, aliás, na vigência do Código de 1867 (…).

A segunda – que engloba as duas grandes inovações do Código de 1966 no regime da testamentaria – desdobra-se nesta dupla solução:

Por um lado, reconhece-se ao testador, nos termos introdutórios do artigo 2320.º, a faculdade de atribuir ao testamenteiro amplos poderes de execução do testamento. Por outro lado, chama-se o testamenteiro na alínea c) deste artigo 2326.º a exercer supletivamente, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 2080.º, as funções de cabeça-de-casal, com todos os poderes de administração dos bens da herança, que a lei genericamente reconhece a essa entidade.

Na verdade, de harmonia com o disposto na alínea b) do n.º 1 desse citado artigo 2080.º, na falta de cônjuge sobrevivo, herdeiro ou meeiro dos bens do casal, é o testamenteiro a pessoa chamada a exercer as funções de cabeça-de-casal (a menos que o testador a exclua desse chamamento), cabendo-lhe nesse caso todos os direitos referidos no artigo 2079.º, bem como nos artigos 2087.º e seguintes.» [...]

Capelo de Sousa, in Lições de Direito das Sucessões, II, 2.ª edição, 1986, página 56 e seguintes, depois de indicar que o artigo 2080.º do Código Civil prevê para a herança a que concorram herdeiros «uma escala hierarquizada segundo a qual se defere, «ex lege» e sem necessidade de um acto jurídico de aceitação, o cargo de cabeça-de-casal», razão pela qual «estas funções recaem, pela ordem seguinte, sobre uma das seguintes pessoas: (1.º) cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens, se for herdeiro ou tiver meação nos bens do casal; (2.º) testamenteiro, salvo declaração do testador em contrário», coloca a questão de saber se o de cuius «poderá por testamento indicar sem reservas o cabeça-de-casal» e responde deste modo:

«Oliveira Ascensão entende que sim. Não nos parece líquido. Se é certo que o testamenteiro nomeado pelo de cuius pode vir a ser cabeça-de-casal, o certo é que ele vem em 2.º lugar após o cônjuge, o que se justifica sobretudo pela tutela dos interesses do cônjuge, que normalmente é meeiro, e pela sua maior probidade presumida. Ora, não nos parece que estes objectivos, de matiz público, possam ser prejudicados por decisão unilateral do de cuius. Por outro lado, se é certo que no artigo 2084.º se diz que «as regras dos artigos precedentes não são imperativas», todavia a ratio do preceito não nos parece abranger a designação do cabeça-de-casal por testamento, o que se espraia desde logo na epígrafe do artigo em causa onde se refere que se regula a «designação por acordo». (…). Finalmente, não deixaria de ser estranho que a lei que regulou tão detalhadamente a matéria, que até colocou os herdeiros testamentários após os legais (artigo 2080.º) e que inclusivamente considerou em várias disposições o cabeçalato exercido pelo testamenteiro, admitisse tal forma de designação pelo de cuiús sem reservas, pelo que não é de presumir tal intenção no legislador (cfr. art. 9.º, n.º 3, do CCiv). Opinamos assim, que as possibilidades de designação testamentária do cabeça-de-casal pelo autor da sucessão se circunscrevem ao espaço legal deixado em aberto para o testamenteiro, sem embargo de o de cuius poder qualificar este apenas como um cabeça-de-casal (arts. 2325.º e 2326.º, al. c), do CCiv).».

Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, volume I, 4.ª edição, Almedina, 1990, página 295, após assinalar que os artigos 2080.º e segs. do Código Civil estabelecem a ordem do deferimento do cargo de cabeça-de-casal, e que nessa ordem o cônjuge sobrevivo ocupa a primeira posição e o testamenteiro a segunda, escreveu a propósito deste que:

«… o testador pode nomear uma ou mais pessoas que fiquem encarregadas de vigiar o cumprimento do seu testamento ou de o executar, no todo ou em parte; é o que se chama testamentaria (..). Tem o testamenteiro as atribuições que o testador lhe conferir, dentro dos limites da lei (…) e, na falta de especificação por sua parte, compete-lhe, além do mais, «exercer as funções de cabeça-de-casal nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 2080.º.°» (…). Daí que, na falta do cônjuge sobrevivo com direito a ser cabeça-de-casal, o encargo se defira, em primeira linha, «ao testamenteiro, salvo declaração do testador em contrário» (Cód. Civil, art. 2080.º-1-b). (…). Pois que a nomeação do testamenteiro só pode ter lugar em testamento, segue-se que ao testador fica lícito excluí-lo do cabeçalato, certo que, à míngua de declaração por sua parte, ele o exercerá; isto, bem entendido, desde que não proceda a regra da alínea a), n.º 1, do artigo 2080.º (…).» [...].

Cremos não haver como dissentir destes autorizados autores.

A redacção do artigo 2080.º do Código Civil é, cremos bem, clara: o testamenteiro só é chamado a exercer as funções de cabeça de casal verificando-se duas condições cumulativas. A primeira é o testador não ter disposto em contrário (leia-se, não ter estabelecido expressamente no testamento que a pessoa que nomeou testamenteiro não exercerá as funções de cabeça de casal, o que ocorre quando nada diz a esse respeito como quando diz que o testamenteiro exercerá ainda tais funções); a segunda é não haver cônjuge sobrevivo, não separado judicialmente de pessoas e bens, se for herdeiro ou tiver meação nos bens do casal.

A redacção do artigo 2326.º do Código Civil não só não contraria o enunciado do artigo 2080.º, como confirma-o de modo expresso.

Nos termos daquela norma, o testador pode especificar as atribuições do testamenteiro (naturalmente dentro dos limites legais); se não fizer essa especificação, competirá ao testamenteiro, entre outras coisas, «c) exercer as funções de cabeça-de-casal, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 2080.º».

Por outras palavras, a norma não diz que nessa situação caberá ao testamenteiro exercer as funções de cabeça de casal, diz que lhe caberá esse cargo «nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 2080.º», ou seja, se e na medida em que o cargo for deferido à pessoa dessa alínea, ou ainda, se e na medida em que não houver pessoa que de acordo com a ordem das alíneas do artigo 2080.º esteja à frente do testamenteiro para o cargo, rectius, se situe na previsão da alínea a).

Se o artigo 2326.º do Código Civil pretendesse operar uma atribuição do cargo à margem da ordem do artigo 2080.º do mesmo diploma certamente não incluiria a ressalva «nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 2080.º» ou então a remissão seria feita estritamente para o artigo 2079.º que é a disposição que define o âmbito dos poderes do cabeça de casal, não para a norma que estabelece a ordem de atribuição do cargo e na qual o testamenteiro está colocado apenas no segundo grau.

Na mesma lógica, se fosse essa a intenção do legislador, então o artigo 2080.º do Código Civil deveria colocar no primeiro lugar da ordem de preferência «o testamenteiro, havendo-o, excepto se o inventariado dispuser o contrário» e só no segundo lugar «o cônjuge…».

Manifestamente não é isso que a lei determina, sendo certo que o Código Civil é ainda de um tempo (infelizmente longínquo) em que a redacção das normas era, em regra, rigorosa e precisa, fruto de um bom uso das regras gramaticais e linguísticas. A história da lei no tocante à introdução da possibilidade de o testamenteiro exercer as funções de cabeça de casal descrita pelos primeiros autores atrás citados, não deixa qualquer dúvida sobre isso. [...]

Nessa medida, parece inevitável concluir que a correcta interpretação das normas legais conduz a que no caso quem deve exercer o cargo de cabeça de casal é a cônjuge sobreviva e herdeira, não a testamenteira.

Para contrariar essa interpretação é totalmente debalde invocar a natureza não imperativa do disposto no artigo 2080.º do Código Civil, a qual nem foi o que parece, nem existe actualmente.

Lopes Cardoso, in loc. cit., página 290, escreveu que «os arts. 2080.º e segs. do Cód. Civil estabelecem a ordem do deferimento do cargo de cabeça-de-casal mas tais preceitos ou regras não são imperativas, pois, por acordo de todos os interessados e do M.º P.º se houver lugar a inventário obrigatório, podem entregar-se a administração da herança e o exercício das demais funções de cabeça-de-casal a qualquer outra (art. 2084.º)». Este autor logo assinalava que «não era este o entendimento comum na vigência do Cód. Civil de 1867, nem mesmo a doutrina propugnada no Anteprojecto das Sucessões», informando que a redacção do preceito provinha do artigo 2137.º do Projecto das Sucessões.

Pires de Lima e Antunes Varela, in loc. cit., página 142, também manifestavam que «a forma genérica como o artigo 2084.º - quer na primitiva, quer na actual redacção – afirma o carácter supletivo das «regras dos artigos precedentes» (sem abrir qualquer excepção, nomeadamente a escala quadripartida de prioridades do artigo 2080.º) revela, em termos inequívocos, que a lei pretende realmente deixar as portas francamente abertas aos interessados na herança para a escolha da pessoa que, em cada caso concreto, melhor possa defender os seus interesses. Observe-se, no entanto, a esse propósito, que logo na epígrafe do artigo se fala na designação – do cabeça-de-casal ou, pelo menos, do administrador dos bens da herança – por acordo; e que, no texto da disposição se vai ainda mais longe, ao aludir-se ao «acordo de todos os interessados, para que as tarefas de administração da herança e as demais funções de cabeça-de-casal sejam entregues a qualquer outra pessoa».

No mesmo sentido, Capelo de Sousa, in loc. cit., página 64/65, escreveu que «o que poderá acontecer nos termos do artigo 2084.º, é que por acordo de todos os interessados (..) e do Ministério Público, nos casos de inventário obrigatório (artigo 2053.º do CCiv), se entregue a administração da herança a uma pessoa não abrangida nas categorias previstas nos arts. 2080.º a 2083.º ou que, embora abrangida, não goze das preferências aí referidas.

A doutrina retirava assim do preceito, entre outras, a conclusão de que a ordem de preferência dos artigos 2080.º e seguintes não era imperativa. Todavia, esta posição encontra-se hoje prejudicada pelas alterações que a redacção do artigo 2084.º do Código Civil sofreu no entretanto.

Na redacção do Decreto-Lei n.º 47.344/66, de 25 de Novembro, o preceito estabelecia:

As regras dos artigos precedentes não são imperativas; por acordo de todos os interessados, e do Ministério Público, se houver lugar a inventário obrigatório, podem entregar-se a administração da herança e o exercício das demais funções de cabeça-de-casal a qualquer outra pessoa.

Na redacção do Decreto-Lei n.º 227/94, de 8 de Setembro, o preceito passou a estabelecer:

As regras dos artigos precedentes não são imperativas; por acordo de todos os interessados, e do Ministério Público, nos casos em que tenha intervenção principal, podem entregar-se a administração da herança e o exercício das demais funções de cabeça-de-casal a qualquer outra pessoa.

Na redacção da Lei n.º 29/2009, de 29 de Junho, a norma converteu-se na seguinte:

As regras dos artigos precedentes não são imperativas, podendo, por acordo de todos os interessados, entregar-se a administração da herança e o exercício das demais funções de cabeça-de-casal a qualquer outra pessoa.

Porém, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 23/2013, de 05 de Março, presentemente em vigor e aplicáveis ao caso, a norma assumiu a seguinte redacção:

Por acordo de todos os interessados pode entregar-se a administração da herança e o exercício das funções de cabeça de casal a qualquer outra pessoa.

Até à Lei n.º 23/2013, a norma manteve a primeira parte na qual dispunha expressamente que as regras dos artigos precedentes, relativas às preferências para a designação do cabeça de casal, não eram imperativas; somente foi mudando a segunda parte da norma, tendo as alterações introduzidas consistido apenas na precisão do papel do Ministério Público nos inventários e na necessidade ou não da sua participação no acordo dos interessados sobre a designação do cabeça de casal.

A redacção que a Lei n.º 23/2013 introduziu no artigo 2084.º, contudo, eliminou a primeira parte da norma, a qual deixou de estabelecer que as regras dos artigos antecedentes não são imperativas, passando a consagrar somente a possibilidade de os interessados por acordo designarem para o exercício do cargo outra pessoa que não uma das indicadas nos artigos anteriores.

Independentemente do mérito da escolha feita pelo legislador, uma vez que nenhuma outra questão se colocava a propósito da norma e/ou havia divisões na sua interpretação, não podemos deixar de considerar esta evolução da redacção da norma como uma evidência de que o legislador decidiu repor a natureza imperativa das normas legais relativas à ordem pela qual os diversos herdeiros preferem na designação para o exercício do cargo.

Acresce, ex abundanti, que no caso nem essa questão se podia colocar, porque não está em causa uma nomeação por acordo de todos os interessados (acordo que não existe sequer) mas sim uma nomeação por acto unilateral do inventariado, mais especificamente a designação de testamenteiro. Para esta situação não existe norma legal que permita ao inventariado designar de forma definitiva o cabeça de casal ou afastar por acto unilateral a ordem legal do artigo 2080.º do Código Civil, o qual, repete-se, mesmo na hipótese de haver cônjuge sobrevivo e testamenteiro (ou seja, o legislador teve presente também a hipótese de o inventariado nomear testamenteiro e regulou-a de modo expresso), dá, entre os dois, preferência ao primeiro."

[MTS]

02/12/2024

Jurisprudência 2024 (60)


Competência internacional;
regime interno; princípio da causalidade*


1. O sumário de STJ 14/3/2024 (4488/20.5T8ALM-A.L1.S1) é o seguinte:

Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes, nos termos do artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil, para decidirem uma ação em que um jogador profissional de futebol que exerceu, predominantemente, a sua atividade em Portugal, pede uma indemnização pelos danos causados pela utilização, não consentida, do seu nome e imagem nos videojogos FIFA, produzidos nos E.U.A. e divulgados por todo o mundo.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Está em discussão neste recurso a competência internacional dos tribunais portugueses para apreciar o mérito da presente ação.

Com a sua propositura, o Autor pretende que a Ré seja condenada a pagar-lhe uma indemnização, invocando a violação dos seus direitos de personalidade ao nome e à imagem.

Para tanto, invoca que a Ré, que tem sede no Estado da Califórnia, dos Estados Unidos da América, utiliza, sem a sua autorização, o seu nome e a sua imagem, que inclui as suas características pessoais e profissionais, nos videojogos de que é produtora, denominados FIFA, nas edições 2006, 2007, 2008, 2009, 2010, 2011, 2014, 2015, 2016, 2017, FIFA MANAGER, nas edições de 2007, 2008, 2009, 2010, 2011, 2012, 2013 e 2014, FIFA ULTIMATE TEAM – FUT, nas edições de 2010, 2011, 2012, 2013, 2014, 2015, 2016, 2017, os quais são produzidos pela Ré nos Estados Unidos e comercializados em todo o mundo por empresas “subsidiárias” da Ré (destacando-se na Europa a EZ Swiss Sarl que assume a responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão), resultando dessa atuação a ofensa do direito ao nome e à imagem do Autor.

O dano invocado pelo Autor é unicamente a exposição do seu nome e da sua imagem sem a sua autorização.

A causa de pedir invocada pelo Autor é plurilocalizada, uma vez que tem contactos com diferentes ordenamentos jurídicos.

Na versão do Autor, este tem nacionalidade portuguesa e tem residência em Portugal, a Ré tem a sua sede nos Estados Unidos da América (no Estado da Califórnia), a produção dos jogos ocorreu precisamente nesse local, a difusão comercializada do nome e da imagem do Autor, sem consentimento deste, verificou-se por todo o mundo, incluindo Portugal, e este foi futebolista profissional nos seguintes clubes: [...]

O acórdão recorrido seguiu a linha de raciocínio do Supremo Tribunal de Justiça que em vários acórdãos, em casos idênticos, sustentou a competência dos tribunais portugueses para decidir sobre o mérito deste tipo de ações [---] e que segue o seguinte raciocínio, conforme se explicitou no acórdão proferido em 13.10.2022, cuja fundamentação, por comodidade, se vai passar a transcrever.

Repetindo a fundamentação que consta do Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 24-05-2020, no processo n.º 3853/20, da autoria dos subscritores do presente acórdão:

“O artigo 37.º, n.º 2, da Lei Orgânica do Sistema Judiciário, incumbe a lei de processo de fixar os fatores de que depende a competência internacional dos tribunais judiciais, dispondo o artigo 59.º do Código de Processo Civil que, sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º do mesmo diploma.

O Regulamento Europeu que rege a competência judiciária em matéria cível e comercial é o denominado Regulamento Bruxelas I bis (Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012). Com exceção das ações previstas nos artigos 18.º, n.º 1, 21.º, n.º 2, 24.º e 25.º deste Regulamento, onde não se inclui a presente ação, é condição de aplicabilidade das regras nele contidas que o demandado tenha domicílio num Estado Membro. Se este requisito não se verificar, como sucede na presente ação, dado que a Ré tem a sua sede nos Estados Unidos da América, o referido Regulamento determina que a competência dos tribunais dos Estados Membros seja a definida pelas leis internas destes (artigo 6.º, n.º 1, do Regulamento Bruxelas I bis).

Como não existe nenhum instrumento internacional que vincule o Estado Português em matéria de competência judiciária aplicável à presente ação, é, portanto, à luz do disposto nos artigos 62.º e 63.º do Código de Processo Civil, por remissão do artigo 6.º, n.º 1, do Regulamento Bruxelas I, bis, que deve ser determinada a competência dos tribunais portugueses para decidir a presente ação.

No artigo 62.º do Código de Processo Civil são enunciados os três critérios autónomos de atribuição da competência internacional, com origem legal, aos tribunais portugueses – o da coincidência (alínea a), o da causalidade (alínea b) e o da necessidade (alínea c). A escolha destes critérios visou corresponder à exigência de uma tutela efetiva dos direitos e interesses legalmente protegidos, conferindo competência aos tribunais portugueses quando, pela sua proximidade com as partes e com as provas, se encontrem em condições de melhor dirimirem os litígios que necessitam de uma intervenção jurisdicional.

Segundo o critério da coincidência, que recorre a uma técnica legislativa de remissão intrasistemática [---], os tribunais portugueses são competentes sempre que a ação possa ser proposta em Portugal, segundo as regras específicas da competência territorial, estabelecidas na lei portuguesa (artigo 70.º e seguintes do Código de Processo Civil), atribuindo-se, assim, a estas regras a funcionalidade suplementar de determinarem a competência internacional dos tribunais portugueses, para além de definirem a competência territorial interna. A ideia que inspira a adoção deste critério é a de que os elementos de conexão utilizados para estabelecer a competência territorial interna traduzem um elo suficientemente forte entre a causa e o Estado português para fundamentar a competência internacional dos seus tribunais.

No presente caso, estamos perante uma ação em que se pretende efetivar a responsabilidade civil extracontratual, pela violação, por ato ilícito, de direitos de personalidade, dispondo o artigo 71.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, que se a ação se destinar a efetivar a responsabilidade civil baseada em facto ilícito ou fundada no risco, o tribunal competente é o correspondente ao lugar onde o facto ocorreu.

ALBERTO DOS REIS [---] justificou a opção por este critério instrumental, no Código de Processo Civil de 1939, por ser no lugar onde o facto foi praticado que devem encontrar-se as melhores provas da ocorrência e dos danos por ele produzidos. É a proximidade do tribunal com as provas dos factos que integram os diferentes elementos da causa de pedir de uma ação de responsabilidade extracontratual que é determinante da escolha do forum delicti comissi.

No entanto, a aplicação deste critério para aferir a competência territorial interna revela algumas dificuldades e divergências quando a ação ofensiva decorre em local diferente onde se produzem os danos, uma vez que, nesse caso, as provas dos factos que integram a causa de pedir se encontrarão espacialmente dispersas, registando-se opiniões no sentido de que, em caso de dissociação entre o lugar do facto causal e o lugar onde o dano se produziu, o lesado pode propor a ação respetiva em qualquer um destes lugares [---], à semelhança do que ocorre quando a ação se desenvolve plurilocalizadamente, em contraponto com posições menos flexíveis que sustentam que, nessas situações, releva apenas o local onde ocorreu o comportamento do agente violador de direitos do lesado [---].

Cremos, no entanto, que essas dificuldades não se colocam quando o artigo 71.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, funciona como norma ad quam, das regras definidoras da competência internacional, uma vez que, segundo o critério da causalidade (artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil), os tribunais portugueses têm competência para decidir os litígios em que algum dos factos que integram a sua causa de pedir ocorra em território português [---]. Sendo o dano um dos elementos essenciais da causa de pedir nas ações de responsabilidade extracontratual, não se pode deixar de admitir que o local onde este se verificou possa conferir competência aos tribunais portugueses para decidirem as ações em que o dano aconteceu em Portugal, uma vez que as provas desse importante elemento da causa de pedir se localizarão em território português, sem prejuízo dessa competência também poder ser determinada pela localização de outros elementos relevantes da causa de pedir [---].

No entanto, nestas situações, deve exigir-se, de modo a evitar que a competência determinada por este critério possa ser considerada exorbitante, que esses elementos da causa de pedir traduzam uma conexão suficientemente forte entre o caso e o Estado Português, justificativa da intervenção dos seus tribunais, designadamente que um significativo acervo das provas a produzir presumivelmente se situe em Portugal, numa aplicação da teoria do forum non conveniens [---].

É essa, aliás, a leitura que também tem sido feita pelo Tribunal de Justiça da União Europeia das normas gémeas do artigo 7.º, 2), do Regulamento Bruxelas I bis, e dos artigos 5.º, n.º 3, dos anteriores instrumentos legais europeus que tiveram por objeto o estabelecimento de regras comuns de competência judiciária em matéria cível e comercial, a Convenção de Bruxelas, de 27.09.1968, a Convenção de Lugano de 16.09.1988, a Convenção de Lugano II, de 30.10.2007, e o Regulamento n.º 44/2001, do Conselho, de 22.12.2000, tendo, nesses casos, o Tribunal aplicado, com temperança, a regra da ubiquidade [---].

Mas, o Tribunal de Justiça da União Europeia tem também uma importante jurisprudência precisamente em matéria de competência internacional, relativa a ações de responsabilidade civil extracontratual por violações de direitos de personalidade, como os direitos ao nome, à imagem e à honra, através de meios de exposição globais, aplicando o artigo 7.º do Regulamento Bruxelas I bis e as normas que lhe antecederem contidas nos artigos 5.º, n.º 3, da Convenção de Bruxelas, de 27.09.1968, da Convenção de Lugano de 16.09.1988, da Convenção de Lugano II, de 30.10.2007, e do Regulamento n.º 44/2001, do Conselho, de 22.12.2000 [---]

O artigo 6.º, n.º 1, do Regulamento Bruxelas I bis, nas situações em que o demandado não tenha domicílio num Estado-Membro, como ocorre no presente caso, ao determinar uma remissão para as regras do direito processual civil do Estado Membro cujo tribunal é chamado a pronunciar-se, em matéria de competência internacional, sendo estas as normas aplicáveis nessas situações, denuncia que essas regras internas também fazem parte de um mesmo sistema de regras de conflito de competências instituído pelo Regulamento, que se pretende global e coerente [---]. Não deixamos, pois, de estar também aqui perante uma remissão intrasistemática, apesar da sua aparência extrasistemática [---]. Este convívio, por efeito desta remissão, no nosso ordenamento jurídico das regras de direito europeu sobre a competência internacional dos tribunais dos Estados Membros da União Europeia, incluindo os tribunais portugueses (neste caso, o Regulamento Bruxelas I bis), e as regras do direito processual civil português sobre a mesma matéria, embora com um âmbito de aplicação distinto, exige a preservação da coerência sistémica do nosso ordenamento jurídico. Não só o conteúdo das normas internas sobre competência internacional não deve conduzir a soluções díspares com os princípios que regem o direito europeu nessa matéria, o que tem sido objeto de preocupação do legislador nacional, como a sua interpretação deve ter em consideração a leitura que o Tribunal de Justiça da União Europeia tem efetuado das normas europeias que estabeleçam critérios idênticos às normas de direito interno. A harmonia do ordenamento jurídico pede que critérios idênticos na definição da competência internacional dos tribunais, apesar de provirem de fontes distintas, tenham uma aplicação coincidente, sendo certo que a jurisprudência do TJUE tem um papel fundamental na interpretação do direito europeu”.

Na jurisprudência desse Tribunal [---], tal como se refere no mais recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça em ação idêntica [---], nesta matéria “as questões inerentes à especificidade do evento danoso resultante da violação dos direitos de personalidade através de meios de divulgação global têm encontrado resposta normativa no sentido de uma configuração desse tipo de dano e da determinação da sua localização ajustadas aos novos meios tecnológicos através dos quais se propagam os efeitos lesivos potenciados pelos comportamentos ilícitos e veiculados em dimensões virtuais até se materializarem onde podem ser concretamente verificados e mais facilmente provados.

Assim, a opção preferencial pelo centro de interesses do lesado como local da materialização do dano resultante da violação dos direitos de personalidade através de meios de divulgação global, nomeadamente por meios audiovisuais, é a que se afigura mais consentânea com a viabilidade prática da prova desse dano, por parte do lesado, posto que é aí que este, em regra, disporá dos meios de prova tendentes a demonstrar os efeitos danosos na sua personalidade e para a sua condição de vida.

Daí decorre uma relevante conexão entre o centro de interesses do lesado e o órgão jurisdicional mais vocacionado para dirimir o litígio, como fator de atribuição de competência internacional, seja manifestamente em sede do critério da causalidade constante da alínea b) do artigo 62.º do CPC, seja ainda, de certo modo, em sede do critério da coincidência estabelecido na alínea a) daquele artigo com referência ao n.º 2 do artigo 71.º do mesmo diploma. Uma tal conexão não ficará desmerecida pela eventual competência concorrente de jurisdições estrangeiras situadas em territórios por onde o facto ilícito se tenha dispersado ou distendido”.

Tal como já se havia referido no nosso anterior acórdão proferido em 24.05.2022:

« (…) Sendo o dano um dos elementos essenciais da causa de pedir nas ações de responsabilidade extracontratual, não se pode deixar de admitir que o local onde este se verificou possa conferir competência aos tribunais portugueses para decidirem as ações em que o dano aconteceu em Portugal, uma vez que as provas desse importante elemento da causa de pedir se localizarão em território português, sem prejuízo dessa competência também poder ser determinada pela localização de outros elementos relevantes da causa de pedir [---].

No entanto, nestas situações, deve exigir-se, de modo a evitar que a competência determinada por este critério possa ser considerada exorbitante, que esses elementos da causa de pedir traduzam uma conexão suficientemente forte entre o caso e o Estado Português justificativa da intervenção dos seus tribunais, designadamente que um significativo acervo das provas a produzir presumivelmente se situe em Portugal, numa aplicação da teoria do forum non conveniens [---]»

E ainda:

“ (…) a valorização do local onde se situa o centro de interesses do lesado, como um dos elementos de conexão que poderá determinar a competência internacional dos tribunais desse país, não significa que se despreze o denominado centro de gravidade do conflito, uma vez que a aplicação daquele critério poderá ser afastada sempre que se verifique que a maioria dos danos alegados não ocorreram nesse local, não sendo aí que se encontram as provas dos factos que fundamentam a pretendida responsabilização”.

Note-se, sossegando as preocupações reveladas pela Ré na sua resposta às alegações de recurso, que não estamos a aplicar (mesmo por interpretação extensiva ou integração analógica) à resolução da questão objeto do presente recurso o direito da União Europeia nem a sua jurisprudência. Fomos apenas lê-la e, por concordarmos com o seu iter argumentativo, adotámos igual critério na interpretação do nosso direito interno, com a vantagem de obtermos soluções coerentes com aquelas que seguimos em Portugal quando aplicamos o Regulamento Bruxelas I bis. Isto é, a jurisprudência do TJUE não é a fonte do direito aplicado na resolução deste caso, mas apenas uma inspiração do modo como interpretámos e aplicámos o nosso direito interno para resolver a questão da competência internacional dos tribunais portugueses aqui colocada, tendo sido seguido igual critério normativo.

Tal como se afirmou no nosso anterior acórdão de 24.05.2022:

“Na resolução da questão que é colocada neste recurso, designadamente na aplicação do critério da causalidade constante do artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil, iremos seguir de perto a linha definida por esta jurisprudência, não só porque a isso aconselha a preservação da coerência e harmonia do nosso ordenamento jurídico, mas também porque reconhecemos nessa linha um equilíbrio ponderado da valorização dos critérios a adotar na determinação do(s) tribunal(ais) que se encontra(m) em melhores condições para administrar a justiça, numa situação de violação de direitos de personalidade através de meios de divulgação global. Note-se que a valorização do local onde se situa o centro de interesses do lesado, como um dos elementos de conexão que poderá determinar a competência internacional dos tribunais desse país, não significa que se despreze o denominado centro de gravidade do conflito, uma vez que a aplicação daquele critério poderá ser afastada sempre que se verifique que a dimensão dos danos localizados no país do foro é diminuta, não sendo aí que previsivelmente se encontra um número significativo das provas dos factos que fundamentam a pretendida responsabilização.

O facto daquela jurisprudência se debruçar, na maioria das situações, sobre violações de direitos de personalidade, através da Internet, não desaconselha a sua transposição para o presente caso, em que o instrumento da ofensa a esses direitos são videojogos mundialmente comercializados, em larga escala, uma vez que também a exposição dos seus conteúdos se carateriza pela ubiquidade, não tendo uma divulgação circunscrita a um território. Eles são visionados e operados por um número indefinido de jogadores, espalhados por todo o mundo, fora de qualquer controle do seu produtor, pelo que as ponderações efetuadas pelo TJUE, tendo em consideração a divulgação mundial de conteúdos ofensivos dos direitos de personalidade pela Internet, são aplicáveis a este caso”.

Antes de iniciarmos a aplicação deste critério normativo ao caso concreto, convém frisar que, consoante já afirmava Manuel de Andrade [---], citando o processualista italiano Enrico Redenti, a competência internacional afere-se pelo quid disputatum, isto é, pelos termos como o autor configura a relação jurídica controvertida, e não, pelo que, mais tarde, será o quid decisum.

Voltando a reproduzir o que anteriormente afirmámos no acórdão proferido em 24.05.222, que analisou uma pretensão semelhante à deduzida nos presentes autos “dado estarmos perante uma ação com uma causa de pedir complexa, do ponto de vista da competência jurisdicional, nos termos do artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil, podem constituir critérios de vinculação quer o lugar do evento causal, quer o lugar onde o dano se materializou, podendo cada um deles, segundo as circunstâncias, revelar-se especialmente útil, do ponto de vista da prova e da organização do processo, para se determinar qual é o tribunal ou tribunais que se encontram em melhores condições para proferir uma decisão de mérito informada.

Relativamente ao lugar onde ocorreu a ação causal do dano, há que ter em consideração, que a ação violadora do direito ao nome e à imagem, através de um conteúdo divulgado de forma difusa por todo o mundo, compreende não só a produção dos videojogos em causa, processo em que se inclui o nome e se representa a imagem num determinado suporte físico ou digital, mas também a sua exposição pública através da comercialização mundial generalizada desses suportes [---]. Apesar de na petição inicial se dizer que essa comercialização era efetuada por empresas “subsidiárias” da Ré, designadamente por EZ Swiss Sarl, que assumia a responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão, não deixa o Autor de imputar a divulgação pública apenas à Ré, responsabilizando-a por todos os danos resultantes desses atos. Não devendo, neste momento, efetuar-se qualquer juízo sobre a imputabilidade da ação ilícita alegada pelo Autor para dele retirar a competência do tribunal, há que apenas relevar a perspetiva do Autor, apresentada na petição inicial, de que a Ré é a responsável pela produção, lançamento no mercado e divulgação por todo o mundo dos videojogos FIFA e FIFA Manager.

Assim, a ação causal imputada à Ré, pelo Autor, nesta ação, ocorre inicialmente nos Estados Unidos da América (a produção dos videojogos) e desenvolve-se, posteriormente, em todo o mundo (a comercialização dos videojogos), uma vez que a lesão deste tipo de bens de personalidade ocorre com a divulgação pública não autorizada do nome e da imagem do lesado [---](...).

Os danos causados pela ofensa aos direitos de personalidade ao nome e à imagem são realidades distintas do ato lesivo, claramente diferenciados na parte que se traduz na atividade criadora do suporte que contém o conteúdo lesivo, mas coincidente com a atividade de divulgação púbica generalizada do nome e da imagem do Autor sem o seu consentimento.

Neste processo, o Autor limita-se a alegar como prejuízo a divulgação da sua imagem e nome para fins lucrativos pela Ré sem o seu consentimento, o que coincide com essa dimensão do ato lesivo, ou seja a divulgação do seu nome e imagem com finalidades lucrativas, sem o consentimento do Autor.

Apesar deste localizar o prejuízo invocado em todo mundo, uma vez que que a divulgação do seu nome e imagem é relativa à sua vida profissional de futebolista, ele ganha maior expressão no local onde o Autor, no momento, exerce essa profissão.

Tem-se entendido que, nos casos em que os danos se prolongam no tempo e o centro de interesses do lesado vai variando ao longo desse tempo, localizando-se em diferentes Estados, a ação em que se reclame o pagamento de uma indemnização pela lesão do direito à imagem e nome do lesado poderá ser intentada em qualquer uma das jurisdições desses Estados, desde que se verifique um elo suficientemente forte entre a causa e o foro escolhido para fundamentar a competência internacional dos seus tribunais, evitando-se, com esta exigência, os inconvenientes do denominado “forum shopping." [---]. Não merece acolhimento a tese de que deveria ser proposta uma ação em cada um dos Estados por onde o Autor exerceu a sua profissão, relativamente aos danos que este sofreu em cada um dos países por onde passou (neste caso, Portugal, ..., ..., ... e ...), como aparenta sugerir a respeitável opinião de Miguel Teixeira de Sousa, numa página do Blog do IPPC (Instituto Português de Processo Civil), num artigo datado de 6 de fevereiro de 2023, com o título “Futebolistas, videojogos e competência internacional”, e que a Recorrente apresenta como “parecer”, por tal sugestão não atender ao princípio da economia processual, segundo o qual se deve procurar obter o máximo resultado processual, através do mínimo de atividade possível, e se revelar insuportavelmente onerosa para o lesado, ignorando as exigências constitucionais de um processo equitativo.

Ora, relativamente à escolha do foro português pelo Autor, constata-se a alegação na petição inicial de diversos elementos que revelam a existência de um elo de ligação suficientemente forte entre a alegada violação dos direitos de personalidade do Autor e o Estado português que justificam essa escolha:

- o Autor tem domicílio em Portugal (identificação do Autor no cabeçalho da petição inicial);

- o Autor é português (identificação do Autor no cabeçalho da petição inicial);

- o país onde maioritariamente o Autor exerceu a sua profissão foi em Portugal - cerca de metade do tempo da sua actividade futebolística foi desenvolvida em clubes portugueses (artigo 9.º da petição inicial);

-os videojogos são difundidos e vendidos em Portugal (artigo 26.º da petição inicial);

- os jogos são utilizados em torneios realizados em Portugal (artigos 29.º e 30.º da petição inicial).

Perante a alegação destes elementos fácticos, a competência dos tribunais portugueses não constitui de forma alguma o reconhecimento de uma competência exorbitante, uma vez que releva uma conexão suficientemente forte entre o caso e o Estado Português, justificativa da intervenção dos seus tribunais, assim como não fere qualquer interesse legítimo da empresa demandada, uma vez que, atenta a comercialização global dos videojogos por si produzidos, é expetável que possam ocorrer litígios com eles relacionados em qualquer parte do globo, em que sejam chamados a intervir os órgãos jurisdicionais locais, além de que a sua estrutura organizacional, atenta a sua dimensão, sempre lhe permitirá, sem excessivas dificuldades, produzir as provas que entenda necessárias em Portugal.

Acolhem-se, pois, as razões que o acórdão recorrido convocou para concluir pela competência dos tribunais portugueses, face à factualidade alegada pelo Autor na petição inicial, não se tendo recorrido à utilização da qualquer raciocínio presuntivo factual para relevar factos não alegados pelo Autor e tendo a determinação da competência dos tribunais portugueses resultado unicamente da aplicação do critério da causalidade adotado no artigo 62.º, n.º 1, b), do Código de Processo Civil, pelo que não há que conhecer das questões de constitucionalidade colocadas pela Recorrente nas alegações de recurso, uma vez que as interpretações normativas por ela arguidas de inconstitucionais, quanto à utilização de raciocínios presuntivos, aplicação de regras de direito europeu e consideração de factos não alegados na petição inicial não se verificam, pretendendo-se apreciações de constitucionalidade de interpretações ficcionadas pelo Recorrente que não integram a ratio decidendi do acórdão recorrido e que também não são aqui perfilhadas.

Por estas razões, deve o recurso interposto ser julgado improcedente, confirmando-se o decidido pelo acórdão recorrido.


*3. [Comentário] O acórdão segue uma orientação absolutamente consolidada no STJ. Continua, no entanto, a ter-se as mesmas reservas que se enunciaram aqui.

É muito provável que venha a ocorrer nos Estados Unidos (e, mais em concreto, no Estado da Califórnia) uma verdadeira "batalha jurídica" de elevados custos quanto ao reconhecimento da decisão portuguesa (sobre a matéria clicar aqui).

MTS