Acidente de viação;
direito de regresso; nexo de causalidade
1. O sumário de STJ 7/2/2017 (29/13.9TJVNF.G1.S1) é o seguinte:
I - No domínio do DL n.º 291/2007 (com referência ao respetivo art. 27.º, n.º 1, al. c)), tendo o condutor de veículo automóvel dado causa ao acidente de viação, a seguradora goza automaticamente do direito de regresso quando aquele seja portador de uma TAS superior à legalmente admitida.
II - Assim, não é exigível ou indispensável para a procedência desse direito que a seguradora alegue e prove a existência de um nexo de causalidade entre a alcoolemia e a produção do acidente.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Dos factos provados decorre que o Réu, com a sua descrita conduta, violou as normas de proteção estabelecidas nos art.s 24º, 103º, nº 2 e 145º, nº 1 alínea i) do Código da Estrada, bem como o disposto no art. 61º do Regulamento de Sinalização de Trânsito (Decreto Regulamentar nº 22-A/98) referente à marca transversal M11, indicativa da passagem para peões. Perante a demonstração objetiva destas infrações, passa a impender sobre o Réu uma presunção de culpa na produção do acidente, na certeza de que é entendimento pacífico na jurisprudência (v. por todos os acórdãos do supremo Tribunal de Justiça de 05-02-1998, processo nº 97A1002, e de 28-11-2013, processo nº 372/07.6TBSTR.S1, disponíveis em www.dgsi.pt) que as contravenções causais ao Código da Estrada fazem presumir (presunção juris tantum, a ilidir pelo transgressor) a culpa do transgressor. De observar, a propósito, que no seu recurso de apelação nem o Réu sequer pôs em causa a sua culpa, limitando-se a contestar especificamente (impugnando o julgamento dos factos dos pontos 22 e 23 da sentença) a existência de qualquer nexo de causalidade entre a TAS de que era portador e o acidente.
Assente que está tal culpa, por isso que a presunção não foi ilidida, e assente que também está que a ora Recorrente despendeu em favor dos lesados (em decorrência dos danos a estes advindos como causa adequada do acidente) a quantia cujo reembolso pede, a questão que se põe é a de saber se o direito de regresso que a ora Recorrente veio exercer ao abrigo da alínea c) do nº 1 do art. 27º do DL nº 291/2007 assume ou não carácter automático, no sentido de ser ou não ser desnecessária a prova de um nexo de causalidade entre a condução do Réu enquanto portador de uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida (recorde-se que era portador de uma TAS de 0,57 g/l).
Estabelece tal norma que:
“Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso: (…)
c) Contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolémia superior à legalmente admitida (…)".
Sobre a interpretação desta norma, deram as instâncias respostas diferentes.
A 1ª instância entendeu que a Autora não tinha que provar que foi por causa da alcoolemia e da influência da mesma nas capacidades psico-motoras do Réu que o acidente aconteceu, mas apenas que no momento do acidente este acusava uma concentração de álcool no sangue superior à permitida por lei. O tribunal ora recorrido, por seu turno, entendeu que se impunha a demonstração de que o acidente se ficou em concreto a dever à etilização do Réu, prova que não foi feita (face à modificação da matéria de facto que fez operar).
Que dizer?
Estamos perante matéria controvertida na jurisprudência.
Assim, e para citar apenas alguma, sustenta-se nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 28-11-2013 (processo nº 995/10.6TVPRT.P1.S1) e de 9-10-2014 (processo nº 582/11.1TBSTB.E1.S1), ambos disponíveis emwww.dgsi.pt, que na referida alínea c) do nº 1 do art. 27º do DL nº 291/2007 se atribui à entidade seguradora o direito de regresso contra o condutor do veículo culpado pela eclosão do sinistro, sempre que a condução se tenha operado com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, e sem necessidade de comprovar o nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente. Em igual sentido se posiciona (incidentalmente) o acórdão ainda do Supremo de 24-11-2016 (processo nº 96/14.8TBSPS.C1.S1), disponível também em www.dgsi.pt. Este entendimento é partilhado por inúmera jurisprudência das Relações (por exemplo nos acórdãos da Relação do Porto de 16-12-2015, processo nº 4678/13.7TBVFR.P1, da Relação de Lisboa de 04-02-2016, processo nº 2559-13.3TBMTJ.L1-8, e da Relação de Évora de 05-05-2016, processo nº 82/14.8T8STC.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Diferente visão jurídica se evidencia no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-07-2011 (processo nº 129/08.7TBPTL.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt), embora sem qualquer influência decisória no caso ali apreciando. De acordo com este aresto, o artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 291/2007 deveria ser interpretado de modo a continuar o entendimento de que o direito de regresso da seguradora, nos casos de condução sob o efeito do álcool, só surge se tiver havido uma relação causal entre a etilização e a produção do evento. Este entendimento é secundado por alguma jurisprudência das Relações, como é o caso do acórdão da Relação de Guimarães de 12-11-2015 (processo nº 1720/13.5TBGMR.G1, disponível em www.dgsi.pt).
A nosso ver, é o primeiro ponto de vista jurisprudencial que goza de respaldo legal.
Desde logo porque a letra da lei (citada alínea c) do nº 1 do art. 27º do Decreto-Lei n.º 291/2007) não distingue para o efeito entre causas do acidente, e daqui que, causado ou não o acidente (exclusivamente em regime de concausalidade) por motivo relativo à etilização do condutor, sempre o direito de regresso existe, posto que o condutor seja portador de uma TAS superior à legalmente permitida. Como se aponta no supra citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-11-2013, a interpretação da lei exige que se parta do elemento literal e tendo-se sempre em conta que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e que soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art.º 9.º n.º 3 do C.C.), e sendo que esse elemento é também um elemento irremovível de toda a interpretação. Deste modo, remata-se no mesmo acórdão, e subscrevemos, “O elemento filológico de exegese tirado do teor das locuções que integram o texto do preceituado no artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 291/2007 - apenas tem direito de regresso contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de superior à legalmente admitida (…) - cinge o intérprete a discorrer que, no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil, o direito de regresso conferido à seguradora ser-lhe-á irrestritamente concedido sempre que o condutor, julgado culpado pela eclosão do acidente, conduza a viatura com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida”. Dentro da mesma linha, cite-se aqui o que se mostra exarado no AUJ nº 11/2015, inciso que vale inteiramente para o caso: “ (…) o intérprete apenas deve avançar para uma interpretação drasticamente redutora do âmbito da norma, implicando a reconstrução do pensamento legislativo através da atribuição de um sentido normativo que se afasta profundamente da literalidade e do sentido normal que as expressões e conceitos utilizados comportam, se o elemento racional da interpretação impuser cabal e inequivocamente essa verdadeira redução teleológica da norma”. Não é, manifestamente, o que se passa na situação vertente.
Ainda convém dizer - e como se observa no também supra citado acórdão deste Supremo de 9-10-2014 - que o legislador não podia ignorar a controvérsia que a propósito desta temática fora travada na vigência da alínea c) do art. 19º DL nº 522/85 (resolvida depois pelo AUJ nº 6/2002), e se acaso fosse seu propósito manter a solução que veio a ser definida na jurisprudência uniformizada, significá-lo-ia implícita ou expressamente, ora mantendo a redação do anterior texto ora introduzindo uma redação compatível com a interpretação defendida no AUJ, mas não o fez. Antes, curou de alterar o texto legal, expurgando-o da expressão (deveras ambígua) “tiver agido sob a influência do álcool” e substituindo-a por outra, objetiva e clara: “conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida”.
De outro lado - e discorrendo agora em torno do elemento racional e teológico da interpretação - é de ver que a lei trabalha com situações típicas, nem sempre dando relevância à idiossincrasia do caso concreto. Nesta medida presume [...] (e, a nosso ver, trata-se de uma presunção iuris et de iure) que um condutor que apresente uma TAS igual ou superior à legalmente admitida se encontra sob a influência do álcool (v. o art. 81º do Código da Estrada) e, como assim, assume toda a lógica que simplesmente por essa razão o vincule (posto que tenha causado o acidente) ao direito de regresso no confronto do segurador. Afinal, estamos perante uma circunstância que implica per se um sensível agravamento dos normais riscos de circulação, e cuja cobertura deve considerar-se excluída do normal e cumutativo equilíbrio do contrato de seguro.
Subscrevemos, dentro desta linha, o que se aduz no citado acórdão deste Supremo Tribunal de 9-10-2014, e passamos a transcrever: «A “desconsideração” do nexo de causalidade no art. 27º do DL nº 291/2007 deve ser compreendida, perspectivando o direito de regresso da seguradora como de natureza contratual e não extra-contratual; quer dizer, a previsão legal do direito de regresso integra o chamado estatuto legal imperativo do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel. O risco assumido pela seguradora em tal contrato não cobre nem poderia cobrir os perigos acrescidos que a condução sob a influência do álcool envolve. E dizemos nem poderia cobrir porque, sendo proibida a condução com TAS igual ou superior a certo limite e sendo mesmo sancionada penalmente tal conduta quando atingir um limite superior (art. 81º nº1 e 2 do Cód Estrada e 292º do Cód Penal), tal assunção de risco pela seguradora seria nulo, por contrariar normas legais imperativas (art. 280º nº1 CCivil).
Compreende-se assim que, nesse caso, o contrato de seguro não funcione quando o condutor conduza com uma TAS proibida ou, de outro modo dito, que a condução com TAS superior à legalmente permitida exclua a cobertura do seguro.
E, sem prejuízo da garantia que o contrato de seguro representa para o lesado, satisfeita a indemnização devida a este pela seguradora, o direito de regresso visa, afinal, restabelecer o equilíbrio interno do contrato de seguro, comprometido quando se impôs à seguradora uma obrigação de indemnização por danos verificados quando a responsabilidade civil do condutor não estava (nem podia estar) garantida e coberta pelo contrato de seguro.
A concentração de álcool no sangue para além de certo limite implica um agravamento do risco de acidentes que, por romper o equilíbrio contratual convencionado na proporção entre o risco (normal) assumido e o prémio estipulado e pago não pode deixar de ser juridicamente relevante, em termos de, sem comprometer a indemnização dos lesados, fazê-la repercutir sobre o condutor que deu causa ao acidente.
O direito de regresso emerge, assim, do contrato de seguro e não de responsabilidade extracontratual.
Assim sendo, podemos concluir (…) que o artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, atribui à entidade seguradora o direito de regresso contra o condutor do veículo culpado pela eclosão do sinistro, sempre que a condução se tenha operado com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida e sem necessidade de comprovar o nexo de causalidade adequada entre o grau de TAS do condutor e o acidente: aquela condução (com TAS superior à legalmente permitida) funcionará, assim, como uma condição ou pressuposto do direito de regresso (independentemente da sua relação causal com o acidente) e não da responsabilidade civil; logo, a seguradora não tem que demonstrar que foi por causa da alcoolemia e da influência da mesma nas respectivas capacidades psico-motoras que o condutor praticou este ou aquele erro na condução e com isso, deu causa ao acidente, bastando-lhe demonstrar que, nesse momento, ele acusava uma concentração de álcool no sangue superior à permitida por lei. (…)
Concordantemente com o que vem de dizer-se, aduz Maria Manuela Ramalho Sousa Chichorro (v. O Contrato de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, 2010, p. 212) que “o legislador não exige qualquer relação entre os dois requisitos, bastando-se com a sua verificação objectiva para fundamentar o direito de regresso do segurador, favorecendo o seu exercício”.
Também Mafalda Miranda Barbosa (v. Cadernos de Direito Privado, nº 50, Abril/Junho de 2015, p. 45) entende que ao segurador apenas cabe provar a presença de uma taxa de alcoolemia superior à permitida na lei, afirmando que “ao conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida, o condutor não só violou deveres de segurança no tráfego em relação ao lesado, como chamou a si o risco de suportar o prejuízo”, de sorte que “o juízo imputacional não deve ser substituído pela procura da causa efectiva ou da causa próxima, segundo a posição de alguns autores” (sem embargo, importa observar que esta autora não defende uma automaticidade incontornável do direito de regresso, admitindo, ao invés, que se permita ao autor da lesão provar que a causa do acidente não se radicou na etilização)."
Assente que está tal culpa, por isso que a presunção não foi ilidida, e assente que também está que a ora Recorrente despendeu em favor dos lesados (em decorrência dos danos a estes advindos como causa adequada do acidente) a quantia cujo reembolso pede, a questão que se põe é a de saber se o direito de regresso que a ora Recorrente veio exercer ao abrigo da alínea c) do nº 1 do art. 27º do DL nº 291/2007 assume ou não carácter automático, no sentido de ser ou não ser desnecessária a prova de um nexo de causalidade entre a condução do Réu enquanto portador de uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida (recorde-se que era portador de uma TAS de 0,57 g/l).
Estabelece tal norma que:
“Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso: (…)
c) Contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolémia superior à legalmente admitida (…)".
Sobre a interpretação desta norma, deram as instâncias respostas diferentes.
A 1ª instância entendeu que a Autora não tinha que provar que foi por causa da alcoolemia e da influência da mesma nas capacidades psico-motoras do Réu que o acidente aconteceu, mas apenas que no momento do acidente este acusava uma concentração de álcool no sangue superior à permitida por lei. O tribunal ora recorrido, por seu turno, entendeu que se impunha a demonstração de que o acidente se ficou em concreto a dever à etilização do Réu, prova que não foi feita (face à modificação da matéria de facto que fez operar).
Que dizer?
Estamos perante matéria controvertida na jurisprudência.
Assim, e para citar apenas alguma, sustenta-se nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 28-11-2013 (processo nº 995/10.6TVPRT.P1.S1) e de 9-10-2014 (processo nº 582/11.1TBSTB.E1.S1), ambos disponíveis emwww.dgsi.pt, que na referida alínea c) do nº 1 do art. 27º do DL nº 291/2007 se atribui à entidade seguradora o direito de regresso contra o condutor do veículo culpado pela eclosão do sinistro, sempre que a condução se tenha operado com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, e sem necessidade de comprovar o nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente. Em igual sentido se posiciona (incidentalmente) o acórdão ainda do Supremo de 24-11-2016 (processo nº 96/14.8TBSPS.C1.S1), disponível também em www.dgsi.pt. Este entendimento é partilhado por inúmera jurisprudência das Relações (por exemplo nos acórdãos da Relação do Porto de 16-12-2015, processo nº 4678/13.7TBVFR.P1, da Relação de Lisboa de 04-02-2016, processo nº 2559-13.3TBMTJ.L1-8, e da Relação de Évora de 05-05-2016, processo nº 82/14.8T8STC.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Diferente visão jurídica se evidencia no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-07-2011 (processo nº 129/08.7TBPTL.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt), embora sem qualquer influência decisória no caso ali apreciando. De acordo com este aresto, o artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 291/2007 deveria ser interpretado de modo a continuar o entendimento de que o direito de regresso da seguradora, nos casos de condução sob o efeito do álcool, só surge se tiver havido uma relação causal entre a etilização e a produção do evento. Este entendimento é secundado por alguma jurisprudência das Relações, como é o caso do acórdão da Relação de Guimarães de 12-11-2015 (processo nº 1720/13.5TBGMR.G1, disponível em www.dgsi.pt).
A nosso ver, é o primeiro ponto de vista jurisprudencial que goza de respaldo legal.
Desde logo porque a letra da lei (citada alínea c) do nº 1 do art. 27º do Decreto-Lei n.º 291/2007) não distingue para o efeito entre causas do acidente, e daqui que, causado ou não o acidente (exclusivamente em regime de concausalidade) por motivo relativo à etilização do condutor, sempre o direito de regresso existe, posto que o condutor seja portador de uma TAS superior à legalmente permitida. Como se aponta no supra citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-11-2013, a interpretação da lei exige que se parta do elemento literal e tendo-se sempre em conta que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e que soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art.º 9.º n.º 3 do C.C.), e sendo que esse elemento é também um elemento irremovível de toda a interpretação. Deste modo, remata-se no mesmo acórdão, e subscrevemos, “O elemento filológico de exegese tirado do teor das locuções que integram o texto do preceituado no artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 291/2007 - apenas tem direito de regresso contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de superior à legalmente admitida (…) - cinge o intérprete a discorrer que, no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil, o direito de regresso conferido à seguradora ser-lhe-á irrestritamente concedido sempre que o condutor, julgado culpado pela eclosão do acidente, conduza a viatura com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida”. Dentro da mesma linha, cite-se aqui o que se mostra exarado no AUJ nº 11/2015, inciso que vale inteiramente para o caso: “ (…) o intérprete apenas deve avançar para uma interpretação drasticamente redutora do âmbito da norma, implicando a reconstrução do pensamento legislativo através da atribuição de um sentido normativo que se afasta profundamente da literalidade e do sentido normal que as expressões e conceitos utilizados comportam, se o elemento racional da interpretação impuser cabal e inequivocamente essa verdadeira redução teleológica da norma”. Não é, manifestamente, o que se passa na situação vertente.
Ainda convém dizer - e como se observa no também supra citado acórdão deste Supremo de 9-10-2014 - que o legislador não podia ignorar a controvérsia que a propósito desta temática fora travada na vigência da alínea c) do art. 19º DL nº 522/85 (resolvida depois pelo AUJ nº 6/2002), e se acaso fosse seu propósito manter a solução que veio a ser definida na jurisprudência uniformizada, significá-lo-ia implícita ou expressamente, ora mantendo a redação do anterior texto ora introduzindo uma redação compatível com a interpretação defendida no AUJ, mas não o fez. Antes, curou de alterar o texto legal, expurgando-o da expressão (deveras ambígua) “tiver agido sob a influência do álcool” e substituindo-a por outra, objetiva e clara: “conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida”.
De outro lado - e discorrendo agora em torno do elemento racional e teológico da interpretação - é de ver que a lei trabalha com situações típicas, nem sempre dando relevância à idiossincrasia do caso concreto. Nesta medida presume [...] (e, a nosso ver, trata-se de uma presunção iuris et de iure) que um condutor que apresente uma TAS igual ou superior à legalmente admitida se encontra sob a influência do álcool (v. o art. 81º do Código da Estrada) e, como assim, assume toda a lógica que simplesmente por essa razão o vincule (posto que tenha causado o acidente) ao direito de regresso no confronto do segurador. Afinal, estamos perante uma circunstância que implica per se um sensível agravamento dos normais riscos de circulação, e cuja cobertura deve considerar-se excluída do normal e cumutativo equilíbrio do contrato de seguro.
Subscrevemos, dentro desta linha, o que se aduz no citado acórdão deste Supremo Tribunal de 9-10-2014, e passamos a transcrever: «A “desconsideração” do nexo de causalidade no art. 27º do DL nº 291/2007 deve ser compreendida, perspectivando o direito de regresso da seguradora como de natureza contratual e não extra-contratual; quer dizer, a previsão legal do direito de regresso integra o chamado estatuto legal imperativo do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel. O risco assumido pela seguradora em tal contrato não cobre nem poderia cobrir os perigos acrescidos que a condução sob a influência do álcool envolve. E dizemos nem poderia cobrir porque, sendo proibida a condução com TAS igual ou superior a certo limite e sendo mesmo sancionada penalmente tal conduta quando atingir um limite superior (art. 81º nº1 e 2 do Cód Estrada e 292º do Cód Penal), tal assunção de risco pela seguradora seria nulo, por contrariar normas legais imperativas (art. 280º nº1 CCivil).
Compreende-se assim que, nesse caso, o contrato de seguro não funcione quando o condutor conduza com uma TAS proibida ou, de outro modo dito, que a condução com TAS superior à legalmente permitida exclua a cobertura do seguro.
E, sem prejuízo da garantia que o contrato de seguro representa para o lesado, satisfeita a indemnização devida a este pela seguradora, o direito de regresso visa, afinal, restabelecer o equilíbrio interno do contrato de seguro, comprometido quando se impôs à seguradora uma obrigação de indemnização por danos verificados quando a responsabilidade civil do condutor não estava (nem podia estar) garantida e coberta pelo contrato de seguro.
A concentração de álcool no sangue para além de certo limite implica um agravamento do risco de acidentes que, por romper o equilíbrio contratual convencionado na proporção entre o risco (normal) assumido e o prémio estipulado e pago não pode deixar de ser juridicamente relevante, em termos de, sem comprometer a indemnização dos lesados, fazê-la repercutir sobre o condutor que deu causa ao acidente.
O direito de regresso emerge, assim, do contrato de seguro e não de responsabilidade extracontratual.
Assim sendo, podemos concluir (…) que o artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, atribui à entidade seguradora o direito de regresso contra o condutor do veículo culpado pela eclosão do sinistro, sempre que a condução se tenha operado com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida e sem necessidade de comprovar o nexo de causalidade adequada entre o grau de TAS do condutor e o acidente: aquela condução (com TAS superior à legalmente permitida) funcionará, assim, como uma condição ou pressuposto do direito de regresso (independentemente da sua relação causal com o acidente) e não da responsabilidade civil; logo, a seguradora não tem que demonstrar que foi por causa da alcoolemia e da influência da mesma nas respectivas capacidades psico-motoras que o condutor praticou este ou aquele erro na condução e com isso, deu causa ao acidente, bastando-lhe demonstrar que, nesse momento, ele acusava uma concentração de álcool no sangue superior à permitida por lei. (…)
Concordantemente com o que vem de dizer-se, aduz Maria Manuela Ramalho Sousa Chichorro (v. O Contrato de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, 2010, p. 212) que “o legislador não exige qualquer relação entre os dois requisitos, bastando-se com a sua verificação objectiva para fundamentar o direito de regresso do segurador, favorecendo o seu exercício”.
Também Mafalda Miranda Barbosa (v. Cadernos de Direito Privado, nº 50, Abril/Junho de 2015, p. 45) entende que ao segurador apenas cabe provar a presença de uma taxa de alcoolemia superior à permitida na lei, afirmando que “ao conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida, o condutor não só violou deveres de segurança no tráfego em relação ao lesado, como chamou a si o risco de suportar o prejuízo”, de sorte que “o juízo imputacional não deve ser substituído pela procura da causa efectiva ou da causa próxima, segundo a posição de alguns autores” (sem embargo, importa observar que esta autora não defende uma automaticidade incontornável do direito de regresso, admitindo, ao invés, que se permita ao autor da lesão provar que a causa do acidente não se radicou na etilização)."
[MTS]