"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/10/2020

Jurisprudência 2020 (84)


Decisão penal absolutória;
eficácia; presunção


1. O sumário de RL 14/5/2020 (24619/17.1T8LSB.L1-8) é o seguinte:

1.–A presunção legal prevista no artº 624º do C.P.C. tem um campo de aplicação restrito, pois que se exige que na sentença penal se tenha considerado provado que o arguido não praticou os factos em causa, não bastando, portanto, que a prática dos factos tenha sido dada como não provada – o que corresponde à generalidade das situações, pois o tribunal penal raramente se dirige à prova do contrário, à prova do não cometimento do crime.

2.–Em contraposição às causas enunciadas nas alíneas a) e c) do artº 1781º do C.C., em que se exige o decurso do prazo de um ano, a cláusula geral prevista na alínea d) prescinde de qualquer prazo, bastando que os factos de per se, independentemente de culpa, assumam gravidade ou reiteração tais que revelem inequivocamente estar comprometida, de forma irreversível, a comunhão de vida que caracteriza o casamento.

3.–É de valorar a separação de facto, que se iniciou cerca de um mês antes da propositura da ação, mas que perdurava à data do julgamento, mais de um ano depois, como elemento integrador do conceito da “rutura definitiva do casamento”, em conjugação com os demais factos provados, graves e/ou reiterados, reveladores da quebra de deveres conjugais, bem como da vontade irreversível de um dos cônjuges de não pretender o restabelecimento da comunhão própria da vida conjugal.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"O recorrente entende que o tribunal a quo não realizou convenientemente o exame crítico nomeadamente da prova documental, violando a norma presente no art.º 607.º n.º 4 CPC, porquanto em sede de motivação, explicita, de forma genérica, que valorizou a “acusação e sentença – absolutória – proferidas no processo-crime instaurado contra o réu”. Analisada a factualidade dada por assente, constatam-se contradições manifestas entre tal factualidade e o decidido em sede penal. Sustenta, ainda, a sua posição, na força de autoridade de caso julgado, por via da qual os factos provados e não provados constantes da sentença penal não podem, nesta sede, ser alterados. Pugna, assim, para que o ponto 3 da factualidade provada seja alterado, passando a ter a seguinte redação:

“3. Isso aconteceu na sequência de discussões que S… e J… mantiveram nos dias 3 e 18 de Setembro de 2017, respetivamente, em casa e na presença dos pais da autora, em Alcobaça, e em sua casa, na presença das filhas.”

Por seu turno, a apelante alegou que a prova produzida sustenta os factos provados. E para o efeito, fundou-se em depoimentos de testemunhas, fazendo breves citações sem, no entanto, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda (artº 640º, nº 2, al. b) do C.P.C.).

Estabelece o artº 624º do C.P.C. que:

“1– A decisão penal, transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer ações de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário.
2– A presunção referida no número anterior prevalece sobre quaisquer presunções de culpa estabelecidas na lei civil.”

A sentença penal absolutória constitui mera presunção da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário. O que equivale a afirmar que a sentença penal absolutória não se impõe no processo cível com efeito de caso julgado, nem de autoridade de caso julgado.

Em sede de direito probatório a presunção prevista neste preceito assume especial relevância em confronto com presunções estabelecidas na lei civil, cedendo estas (nº 2). Inexistindo presunção de direito civil, a sentença penal absolutória constituirá, em regra, mero reforço do princípio geral do ónus de prova estabelecido no artº 342º, nº 1 do C.C.). Com efeito, raros serão os casos em que por força da presunção de inexistência dos factos imputados ao arguido, incumbirá à “contraparte” a prova do contrário dos factos abrangidos pela presunção penal.

Mas que factos são estes?

A presunção legal prevista no artº 624º do C.P.C. tem um campo de aplicação restrito, pois que se exige que na sentença penal se tenha considerado provado que o arguido não praticou os factos em causa, não bastando, portanto, que a prática dos factos tenha sido dada como não provada – que corresponde à generalidade das situações, pois o tribunal penal raramente se dirige à prova do contrário, à prova do não cometimento do crime. Ou nas palavras de Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, “não se trata da presunção da inexistência de um facto”, mas da “presunção da ocorrência do seu contrário” (Código de Processo Civil Anotado, vol. II, pág. 693).

Impõe-se, assim, ao juiz cível a análise da fundamentação da sentença penal (para além da mera enunciação dos factos provados e não provados).

Estão desde logo excluídos os factos que se considerem não provados por aplicação do princípio in dubio pro reo. Mas também todos aqueles que, concernentes à prática de determinada conduta, surgem como não provados (ainda que não decorram daquele princípio de direito probatório penal, mas de simples falta de prova) – apenas relevando a absolvição com fundamento em que o arguido não praticou os factos que lhe eram imputados. Isto é, a prova positiva de que os factos não foram praticados.

Neste sentido, cfr. Ac. STJ de 18 de junho de 2014, in www.dgsi.pt:

“Tem entendido este Supremo Tribunal que não pode considerar-se integrada a previsão daquela disposição legal nos casos em que a absolvição decorre da simples falta de prova dos factos imputados ao arguido (designadamente por dúvidas do julgador), só relevando, para efeitos desta presunção, a absolvição fundada na prova (positiva) de que os factos não foram realmente praticados.

Como se refere no Ac. do STJ de 10.2.2004: “não é qualquer decisão penal absolutória que constitui presunção da inexistência dos factos imputados ao arguido; esta presunção só existirá se a absolvição no processo-crime tiver por fundamento a prova de que o arguido não praticou aqueles factos, sendo que a simples falta de prova da acusação, como foi aqui o caso, não permite fundar qualquer presunção, valendo, então, no âmbito do processo penal, a presunção de inocência do arguido, sem qualquer valor fora desse processo”.

Ora, no caso dos autos, apenas se considerou que determinada factualidade imputada à A. “não se mostra suficientemente indiciada”, o que é realidade bem diversa. “

Da certidão junta a fls. 121vº e ss. e fls. 167vº, resulta que a sentença, proferida no processo 1248/17.4PTLSB, em que foi arguido o ora R. e assistente a ora A., absolveu o arguido da prática do crime de violência doméstica que lhe era imputado.

Tal sentença apenas transitou em julgado em 14/08/2019 - data posterior à realização da audiência nestes autos e cuja certificação de trânsito apenas foi junta com a alegação de recurso – pelo que o tribunal recorrido não podia ter aplicado a presunção prevista no artº 624º do C.P.C.

Nela se considerou como não provado que “no dia 3 de setembro de 2017, no âmbito de discussão entre o arguido e assistente, aquele tenha desferido palmadas no dorso das mãos desta e torcido o braço direito; que na situação ocorrida em 18 de setembro de 2017 o arguido tenha dito “não és minha não és de ninguém”, “se achas que viveste um inferno, a tua vida agora é que vai começar, eu destruo tudo”.

Da respetiva fundamentação consta o seguinte:

“Perante estas versões contraditórias e a negação dos factos por parte do arguido, ficámos com dúvida sobre o que sucedeu na discussão do dia 3 de setembro de 2017, nomeadamente se chegou a existir alguma agressão. (…)

Deste modo, o Tribunal ficou com muitas dúvidas que no dia 03/09/2017 o arguido tenha desferido palmadas ou torcido o braço da assistente.

Da prova produzida não ficou convencido que tal facto ocorreu, pelo que se impõe lançar mão do princípio in dubio pro reo e resolver da forma mais benéfica para o arguido, ou seja, considerar tal facto como não provado.”

Relativamente às expressões proferidas em 18/09/2017, depois de analisar os meios probatórios produzidos, não sendo coincidentes, considerou-se “quanto às expressões que não constam do facto 5 da matéria provada demos como não provados”.

Trata-se, assim, de decisão que não tem por fundamento a prova positiva da não prática dos factos constitutivos do crime pelo arguido, mas que se funda no princípio in dubio pro reo e na falta de prova daqueles factos, sendo inaplicável a presunção estabelecida no artº 624º do C.C..

Há que sublinhar que, não sendo reconhecido à sentença penal absolutória a autoridade de caso julgado, caso se verificasse a presunção sempre se imporia averiguar se não tinha sido feita prova do contrário, em sede cível.

O apelante limita-se a alegar que quanto à agressão e frase imputadas ao R., não se vislumbra na sentença qualquer referência ao modo como o tribunal a quo chegou a tais conclusões.

Da fundamentação de facto da sentença recorrida alude-se à acusação e sentença absolutória proferida no processo-crime instaurado contra o réu, no que concerne “as perspetivas de um e de outro, confirmando-se, entre o mais, o motivo principal dos dissensos mantidos, o desgaste que, em todo o caso, a relação já sofrera e, finalmente, o abandono da casa onde viviam não em setembro, mas já em outubro de 2017.” Assim, o Tribunal não se baseou na sentença penal para considerar provado o facto nº 3.

O Tribunal assentou a sua convicção relativamente aos factos provados sob o nº 3 “no teor dos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas, a saber:

- a filha Joana ….. que também confirmou que a mãe saiu de casa em Outubro de 2017, na sequência das discussões havidas com o pai, o desgaste de que a relação já sofria, mormente, em razão da doença da irmã, o abalo que tais discussões provocaram na mãe e aquilo que as provocou, o receio que sentiram, nos dias seguintes, de que o mesmo se irritasse, a decisão tomada pela mãe e, finalmente, a reação do pai, que lhe pedia, insistentemente, que convencesse a mãe a voltar para casa, o que – frisou – nunca chegou a acontecer e acredita não irá acontecer, e começou a segui-las, fazendo dezenas de chamadas e enviando outras tantas mensagens;

- a filha, Ana ….., que descreveu o desapego que caracterizava os pais, inclusivamente, antes de terem mantido as discussões que viriam a precipitar o fim do seu casamento, a razão da sua ocorrência e a quebra de confiança que se verificou (da mãe, Susana Maria, no pai, José Manuel);

- os pais da autora e sogros do réu, Artur …. de Carvalho, e Maria ……de Carvalho, os quais também confirmaram a ocorrência da discussão protagonizada, em 3 de setembro de 2017, pelo casal, em sua casa, a razão da mesma e o sucedido nessa ocasião, o medo que a família “lhe tomou” e a decisão tomada pela filha, saindo de casa para não mais voltar, como, de resto, o desgaste que a relação já acusava;

- o namorado de Ana ….., de seu nome João de ……., visita de sua casa antes da separação, o qual descreveu a dinâmica familiar, nas suas palavras, “binuclear”, inclusivamente, antes das discussões a que se vem fazendo referência, o desgaste que a relação do casal já evidenciava, fruto de discussões e das “embirrâncias” do réu, mas também as palavras que José ….. dirigiu à esposa, Susana ……., quando esta lhe anunciou o fim do casamento e a perseguição que, ulteriormente, lhes moveu a todos.

Mereceram credibilidade pela forma, aparentemente, objetiva com que apresentaram os seus relatos, que não tendo sido infirmados por qualquer meio probatório, se mostraram consistentes em si mesmos – porque isentos de contradições e/ou hesitações - e consonantes entre si (e com a demais prova carreada para os autos), não deixando de confirmar que não têm notícia de, em momento anterior, a autora, Susana …., ter sido, por alguma vez, agredida pelo marido.”

A fundamentação de facto é clara e traduz raciocínio consistente e estruturado."

[MTS]