"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/10/2020

Jurisprudência 2020 (71)


Responsabilidade civil médica;
registos clínicos; força probatória


1. O sumário de RL 28/4/2020 (1765/12.2TVLSB.L1-1) é o seguinte:

I. Os registos clínicos, de acordo com as ‘leges artis’, devem ser precisos, completos, detalhados, específicos e congruentes, descrevendo fiel, detalhada e especificamente tudo quanto de relevante foi comunicado, observado ou realizado, permitindo vislumbrar os fundamentos e objectivos das decisões médicas que foram sendo tomadas.

II. A generalização de uma má prática não transmuta essa má prática numa boa prática, ou, sequer, numa prática aceitável.

III. Enquanto respeitarem aquelas características os registos clínicos gozam de uma especial força probatória.

IV. O desrespeito das ‘leges artis’ na elaboração dos registos clínicos pode, no limite, levar à inversão do ónus da prova.

V. Do contrato de prestação de serviços médicos celebrado por entidades que se organizam enquanto estruturas empresariais não resulta apenas a obrigação de angariação de médicos que pratiquem, de acordo com a melhor prática clínica, actos médicos com os seus clientes; resultam também obrigações de criação, manutenção e desenvolvimento de uma organização e coordenação de meios tendentes à completude, eficiência e eficácia dos cuidados de saúde prestados.

VI. Pratica acto ilícito culposo o médico que prescinde de recolher directamente os sintomas apresentados pelo paciente limitando-se antes a assumir a descrição em termos técnicos dos mesmos constantes do relatório da triagem, assim eliminando a possibilidade de se aperceber de outros ou diferentes sintomas dos que os ali referidos.

VII. E com essa atitude inicia um processo causal adequado à produção dos danos decorrentes dos extensos compromissos neurológicos que advieram de subsequente instalação de AVC.

VIII. Esse processo causal foi, no entanto, interrompido pela opção do paciente de não procurar assistência médica quando horas mais tarde foi acometido de novo sintoma que evidenciava, agora de forma manifesta, a existência de compromisso neurológico.

IX. Não deixa, porém, de subsistir a responsabilidade do médico pela perda de chance da janela de oportunidade terapêutica precoce a que o seu comportamento deu azo.

X. Actuando o médico no âmbito de um serviço de urgência de um hospital privado ele actua como auxiliar desse estabelecimento no cumprimento de um contrato de prestação de serviços médicos que, por via da sua conduta, se mostra deficientemente cumprido.

XI. A comunhão de fim entre duas prestações ressarcitórias do mesmo dano, ainda que decorrentes de diferente tipo de responsabilidade (delitual e contratual), a protecção do lesado e o equilíbrio dos interesses dos interessados, justifica a sua sujeição dessas prestações ao regime da solidariedade.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Estamos perante duas versões divergentes dos sintomas que a Autora terá transmitido à 2ª Ré aquando do seu atendimento no serviço de urgência da 1º Ré em que o tribunal terá dado acolhimento à versão apresentada pelas Rés, invocando o constante da documentação clínica pertinente e o testemunho do enfermeiro da triagem e da médica especialista que na urgência observou a Autora e desconsiderando o testemunho do ex-marido da Autora que a acompanhou àquela urgência.

Na sua alegação a Autora invoca a irrelevância dos testemunhos invocados para firmar a convicção do juiz, a credibilidade devida ao depoimento do ex-marido e dos filhos da Autora.

Integra as ‘leges artis’ do exercício da medicina (como foi expressivamente referido por todos os clínicos ouvidos na audiência de julgamento, designadamente A ... , B ... , C ... , D ... , E ... , F ... e G ... ) a elaboração de registos clínicos, os quais têm como função, por um lado, fixar e permitir a circulação de informação sobre o transmitido, o observado e o ocorrido durante a prestação dos cuidados de saúde, bem como sobre a evolução do estado de saúde, e, por outro lado, habilitar a formular juízos sobre a adequação da prática médica levada a cabo.

Esses registos devem, segundo as expressões utilizadas por esses clínicos, ser precisos, completos, detalhados, específicos, congruentes (descrevendo fiel, detalhada e especificamente tudo quanto de relevante foi comunicado, observado ou realizado, permitindo vislumbrar os fundamentos e objectivos das decisões médicas que foram sendo tomadas).

As divergências surgem quanto ao grau de exigência no cumprimento desses citérios, pois que enquanto uns, admitindo que o grau de exigência seja menor em situações de maior pressão na intervenção como são as de urgência hospitalar, afirmam a necessidade de ainda assim satisfazer minimamente as apontadas características, outros, invocando a eficácia na gestão relativamente à repartição entre o ‘tempo de agir’ e o ‘tempo da burocracia’ afirmam ser habitual aligeirar na satisfação daquelas características, limitando-se a levar ao registo o mais relevante no contexto da intervenção ou mesmo registando apenas aquilo que está em desconformidade com os padrões de normalidade.

Nesse conspecto haverá de afirmar, sem qualquer hesitação, ser o entendimento do tribunal que os registos clínicos, ainda que possa haver alguma elasticidade na sua execução concreta em função do contexto em que são efectuados (sendo certo que, no caso, não foi sequer alegado que se verificasse qualquer situação de acumulação de serviço na urgência da 1ª Ré ou nos casos sob a responsabilidade da 2ª Ré), devem em qualquer circunstância satisfazer minimamente as apontadas características (precisão, completude, detalhe, especificidade e congruência); e que ainda que possa haver (designadamente por pressão das necessidades do serviço) uma tendência generalizada para não proceder nessa conformidade, levando a que, como referiu D ... , os registos clínicos mais pareçam meros registos administrativos, o certo é que a generalização de uma má prática não transmuta essa má prática numa boa prática, ou, sequer, numa prática aceitável.

Tendo isso em conta, dir-se-á que, a prova essencial do ocorrido num episódio de urgência num hospital será o correspondente registo clínico, vislumbrando-se muito pouca probabilidade de sucesso na demonstração de factos que não constem de tais registos ou sejam contrários ao seu conteúdo.

Contudo a especial força probatória dos registos clínicos deixa de vigorar se se concluir que esses registos não satisfazem as suas características essenciais. Havendo evidência que os registos clínicos não estão elaborados segundo as exigências das ‘leges artis’ eles perdem aquela especial força probatória. E, no limite, na medida em que dificultem sobremaneira a capacidade de o interessado demonstrar a realidade dos factos, podem levar à inversão do ónus da prova, nos termos prescritos no art.º 344º, nº 2, do CCiv."

[MTS]