"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



19/10/2020

Jurisprudência 2020 (75)


Abuso do direito;
litigância de má fé*


1. O sumário de RL 5/5/2020 (864/18.1YLPRT.L1-7) é o seguinte:

I- Ao recorrente que impugne a matéria de facto caberá, sob pena de rejeição imediata do recurso, indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (aos quais deve aludir na motivação do recurso e sintetizar depois nas conclusões), especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que, em seu entender, impunham decisão diversa quanto a cada um desses factos e propor, ainda, a decisão alternativa sobre cada um deles;

II- Nos termos dos arts. 373 do C.C. e art. 154 do Código do Notariado, a assinatura a rogo deve ser dada ou confirmada perante notário depois de lido o documento ao rogante que não saiba ou não possa assinar, e a subscrição respetiva só obriga se realizada nesses termos;

III- Apurando-se que foi a própria Ré no procedimento especial de despejo, para quem se transmitiu o arrendamento, quem subscreveu o denominado “aditamento ao contrato de arrendamento habitacional” a pedido de sua mãe então arrendatária, que não sabia ler, nem escrever, ou assinar o nome, depois de lhe ter sido lido o documento e de acordo com a vontade desta, não pode a mesma Ré invocar na causa a nulidade da respectiva declaração por preterição daquela formalidade legal;

IV- Nestas circunstâncias, deve considerar-se abusiva e contrária ao princípio da boa-fé, na modalidade de inalegabilidade de nulidade formal, a invocação do incumprimento da aludida formalidade que precisamente visa proteger o rogante do desconhecimento do verdadeiro conteúdo do documento que assina sem que o possa ler;

V- Os recursos visam apenas modificar as decisões impugnadas mediante o reexame das questões nelas equacionadas e não apreciar matéria nova sobre a qual o tribunal recorrido não teve ensejo de se pronunciar, a não ser que sejam de conhecimento oficioso.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

A) Da litigância de má-fé da apelante suscitada nas contra-alegações:

Como vimos, a A. pedira antes na causa a condenação da Ré como litigante de má fé, o que na sentença foi julgado improcedente.

Nas contra-alegações do recurso, pede agora a apelada a condenação da apelante como litigante de má-fé, e a condenação desta em multa não inferior a 10 vezes a taxa de justiça, invocando, em síntese, a falta de fundamento do recurso que esta não pode ignorar.

Desde logo se recorda que a sentença transitou em julgado no que respeita à litigância de má-fé da Ré, posto que é irrecorrível nessa parte (cfr. arts. 542 e 629 do C.P.C.).

Ora, no recurso a apelante replicou, no essencial, a argumentação antes aduzida, pelo que não poderia ser agora proferida nesta instância decisão em sentido diverso.

Em todo o caso, sempre se dirá que, face aos termos do recurso, não se verificam os pressupostos para a condenação da apelante nos termos pretendidos.

Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, tiver alterado a verdade dos factos ou omitido outros relevantes para a decisão da causa, tiver praticado omissão grave do dever de cooperação ou tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão (cfr. art. 542, nº 2, do C.P.C.).

Por seu turno, o dever da boa-fé processual encontra-se instituído como um princípio geral do processo civil, segundo o qual os litigantes devem agir como pessoas de bem, isto é, usando entre si de correção, honestidade e lealdade (cfr. arts. 7, 8 e 9 do C.P.C.). A violação desse dever implica a condenação do litigante respetivo em multa e ainda em indemnização à parte contrária, caso por esta seja pedida.

É, por conseguinte, inerente ao princípio da boa-fé que a parte, ao litigar, esteja genuinamente convencida da sua pretensão.

Conforme se observou no Ac. da RL de 24.6.2008([11]), ainda que no domínio do C.P.C. anterior: “Se a parte procedeu de boa fé, sinceramente convencida de que tinha razão, a conduta é perfeitamente lícita; se não tiver sucesso na sua pretensão, suporta unicamente o encargo das custas, como risco inerente à sua actuação. Mas se procedeu de má-fé ou com culpa, se sabia que não tinha razão ou se não ponderou com prudência as suas pretensas razões, a sua conduta assume o aspecto de conduta ilícita, impondo o art. 456, nº 1, do C.P.C. que a parte que litigar dessa forma seja condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.”

Revertendo para o caso em análise, constatamos que a apelante reeditou no recurso em apreciação os motivos por si já aduzidos na oposição – e apresentou até, como vimos, nova argumentação – que correspondem a razões de direito que, na sua opinião, justificariam a improcedência do pedido.

Fê-lo ao abrigo do disposto no art. 629, nº 3, al. a), do C.P.C., que consente o recurso para o Tribunal da Relação em ações como a presente, independentemente do valor da causa e da sucumbência e, assim, a reapreciação das mesmas questões por um tribunal superior.

A apelante valeu-se de interpretações jurídicas que o Tribunal não acolheu, mas tal não significa, forçosamente, que a mesma as devesse ter por forçosamente infundadas e que tenha agido contra as regras da boa-fé. Trata-se da invocação de soluções de direito que não pode, em rigor, qualificar-se como ilícita no quadro normativo indicado.

O facto de não obter êxito no recurso não corresponde necessariamente a qualquer atuação de má-fé, e não significa que a ora apelante tenha deduzido, com dolo ou negligência grave, argumentação recursiva cuja falta de fundamento não devia ignorar.

Não se surpreende, em suma, ilicitude na conduta da apelante que deva agora sancionar-se por via do instituto da litigância de má-fé."

*3. [Comentário] A RL decidiu bem.

O principal interesse do acórdão reside em demonstrar a diferença entre a boa fé substantiva e a boa fé processual. A parte agiu com abuso de direito e, por isso, a sua pretensão improcedeu. No entanto, isto não significa necessariamente que a parte tenha litigado de má fé, dado que a sua conduta não preencheu nenhuma das situações previstas no art. 542.º, n.º 2, CPC.

A separação destes planos é essencial para evitar algumas confusões na matéria.

MTS