"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



28/10/2020

Jurisprudência 2020 (82)


Recurso;
sucumbência*


1. O sumário de RG 7/5/2020 (2607/17.8T8BRG.G1) é o seguinte:

I O valor da ação e a sucumbência, tal como resulta do artº. 629º, nº. 1, do C.P.C., regem a admissibilidade de recurso.

II Em caso de dúvida fundada sobre o valor da sucumbência, que tem que ver com a relação entre pedido e decisão, rege apenas o valor da causa.

III O valor tributário do recurso para efeitos de definição da taxa de justiça a liquidar pela sua interposição pode ter por base o valor da sucumbência do recorrente, desde que faça apelo e cumpra o disposto no artº. 12º, nº. 2, RCP.

IV Neste caso a determinação da sucumbência faz-se com base no decaimento fixado para a decisão sob recurso.

V O valor da ação não se confunde com o valor tributário do recurso.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Em causa está a interpretação e aplicação do disposto no artº. 12º, nº. 2, do RCP, em conjugação com os artºs. 296º, 629º do CPC e a norma da LOSJ que trata da matéria das alçadas para efeitos de interposição de recurso – artº. 44º da Lei nº. 62/2013 de 26/8, em confronto com o seu artº. 42º, nº. 2.

Salvo o devido respeito, não há nem pode haver confusão entre o âmbito de aplicação de cada uma das disposições.

Em primeiro lugar, regem as normas relativas à possibilidade de interposição de recurso –restringindo-se a análise das que têm que ver com o valor da ação, pois que os outros pressupostos de admissibilidade de recurso não são chamados ao caso.

O que nos rege em sede de admissibilidade de recurso, para a Relação e depois para o STJ, é a regra das alçadas face ao valor do processo (nº. 2 do artº. 296º do C.P.C.); o artº. 629º, nº. 1, C.P.C., introduz como requisito também a regra da sucumbência – vamos sempre analisar apenas a parte aplicável ao caso, não obstante a previsão das situações de admissibilidade de recurso independentemente do valor da causa ou da sucumbência.

Se o processo tem ou não alçada para cada recurso, tal é determinado pelo valor fixado à ação e pelo valor da sucumbência da parte que pretende recorrer.

A questão da dúvida sobre o valor da sucumbência está prevista no artº. 629º, nº. 1, C.P.C., e tem como objetivo, na dúvida (salva a redundância), essa exigência não obstar à interposição de recurso. Portanto, é uma válvula de proteção da parte que pretende recorrer, consagrando amplamente o direito de recurso e em ultima instância de acesso á justiça – artº. 20º da Constituição da República Portuguesa.

De facto, muito embora os pedidos das partes não sejam líquidos, como é o caso, a toda a causa tem de ser atribuído um valor que representa a utilidade económica imediata do pedido, designadamente para efeitos de aferição da possibilidade de recurso – artº. 296º, nº. 1, C.P.C..

No caso, foi atribuído o valor de € 50.000,01, o que não tem correspondência (numérica ou quantitativa) com os pedidos, nem sequer com regras especiais que o determinam, uma vez que, como se disse não está em causa um pedido de quantia certa em dinheiro ou convertível numa quantia certa (artºs. 297º e 298º do C.P.C.), nem se aplicam os artºs. 300º e segs. do C.P.C.. Para efeitos de recurso da decisão da 1ª instância o valor teria de ser pelo menos de € 5.000,01 para efeitos de recurso, e no caso de recurso do acórdão da Relação teria de ser pelo menos de € 30.000,01. Logo por este critério o recurso do acórdão proferido é admissível.

A sucumbência para efeitos de recurso na primeira instância haveria de ser superior a 2.500,00 (metade da alçada da 1ª instância que é o valor de € 5.000,00, ou seja, aquele até ao qual a mesma decide sem possibilidade de recurso) a na 2ª instância superior a € 15.000,00 (metade da alçada da Relação que é o valor de € 30.000,00, ou seja, aquele até ao qual a mesma decide sem possibilidade de recurso ordinário).

A sucumbência para este afeito resulta da ponderação entre o que foi pedido e o que foi procedente, e a fundada dúvida surge quando a cada pedido não corresponde um valor, impedindo uma operação aritmética.

Matéria completamente diferente tem que ver com o valor do recurso aferido pela sucumbência para efeitos de liquidação da taxa de justiça. Aqui não se coloca a questão da “fundada” dúvida quanto ao valor da sucumbência, porque para efeitos de custas – âmbito no qual nos situamos – ela tem de estar determinada ou ser necessariamente determinável – cfr. artºs. 527º e 607º, nº. 6, C.P.C..

Determinável no artº. 12º, nº. 2, RCP é sinónimo de quantificável.

Entende-se por isso que aqui a sucumbência tem de ser quantificada de acordo com o decaimento fixado em sede de custas, pois que também para efeitos de custas de parte (e cálculo de custas processuais) é esse o critério norteador.

No caso, o decaimento, e pelos motivos assinalados, foi expressamente fixado no acórdão proferido. A R. usou por isso da faculdade de atribuir ao recurso – e apenas para efeitos de liquidação da taxa de justiça devida pela interposição – o valor correspondente ao seu decaimento que em sede precisamente de recurso pretende reverter.

Mais uma vez apela-se ao princípio constitucional de acesso á justiça para se dizer que também aqui se quis afastar a negação ao recurso por motivos económicos.

Portanto, o valor da ação não é alterado, e é o valor da ação inicialmente fixado por despacho transitado, e a sucumbência em função do mesmo, caso se entenda que a mesma não oferece dúvidas, que rege a admissibilidade de recurso; coisa completamente diferente é o cálculo meramente quantitativo da sucumbência com recurso ao decaimento que foi fixado, tendo em conta o valor atribuído à ação, para efeitos de determinação do valor “tributário” do recurso e tendo em vista a liquidação da taxa de justiça.

São pois duas operações e apreciações completamente distintas – isso mesmo decorre da parte final do artº. 296º, nº. 3, do C.P.C. que diz que para efeitos de custas judiciais o valor da causa é fixado segundo as regras previstas no mesmo código e no RCP – salvaguarda por isso os casos especiais do artº. 12º do RCP (cfr. António Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Susa, pags. 342 e 343 do “Código de Processo Civil Anotado”, Vol I).

A sucumbência para efeitos de custas – e neste caso, por similitude de regime, taxa- tem de ser determinável e a parte tem de indicar o respetivo valor para se poder prevalecer desta disposição; para este efeito, a sucumbência não é determinável quando o decaimento não decorre da decisão proferida e sob recurso, e o mesmo decaimento não é aritmeticamente quantificável, designadamente quando se trata de uma decisão interlocutória em que não se fixa decaimento concreto para efeitos de custas, ou se remete para final a sua determinação, que pode ser de acordo com o decaimento da própria ação (ou seja, face ao conteúdo ou natureza da decisão) – veja-se Salvador da Costa, “As Custas Processuais”, pag. 166 e 167 da 6ª edição.

O artº. 629º, nº. 1, do C.P.C., que inspirou a solução do artº. 12º, nº. 2, RCP, refere-se a dúvida fundada acerca do valor da sucumbência. Já este refere-se à possibilidade de determinação do valor da sucumbência. O primeiro caso tem a ver com a possibilidade de quantificação de cada pedido (no caso de improcedência parcial), que pode levar a dúvidas quanto à sucumbência; o segundo caso tem que ver com a determinação do decaimento que, mesmo naquele caso, tem de ser feita pelo menos a final (no momento da contabilização das custas, de parte e do processo se as houver).

De todo o modo, ainda que se equiparem as expressões usadas ora no artº. 629º, nº. 1, C.P.C., e no artº. 12º, nº. 2, RCP, neste caso concreto o recurso é sempre admissível, pelo que não é pelo facto de se ter aceite que o valor da sucumbência para efeitos de valor de recurso tenha sido fixado em € 20.000,04 que se altera seja o que for, pois é “apenas” o valor da sucumbência que fixa o valor do recurso (não interferindo com o valor da causa, que é algo diferente); ou seja, a sucumbência de € 20.000,04 é sempre superior a metade da alçada deste Tribunal de que se recorre.

Assim, e como decorre do exposto, a R. podia usar da disposição do artº. 12º, nº. 2, RCP. E fê-lo corretamente já que cumpriu a exigência legal: menção do valor da sucumbência no requerimento de interposição de recurso.

Entende-se por isso ser de manter o despacho reclamado por respeitar as disposições legais atinentes a esta matéria.

*3. [Comentário] O n.º 2 do art. 12.º RCP (com a epígrafe "Fixação do valor em casos especiais") estabelece o seguinte:

2 - Nos recursos, o valor é o da sucumbência quando esta for determinável, devendo o recorrente indicar o respectivo valor no requerimento de interposição do recurso; nos restantes casos, prevalece o valor da acção.

[MTS]