"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



09/10/2020

Jurisprudência 2020 (69)

Decisão-surpresa;
nulidade da decisão*


1. O sumário de RP 24/3/2020 (108/17.3T8VCD-G.P1) é o seguinte:

Tendo havido decisão judicial a fixar alimentos a menores, ainda que por sentença homologatória de acordo relativo às responsabilidades parentais, a subsequente ação de alimentos a maior, na qual se peçam também alimentos provisórios, é da competência do Juízo de Família e Menores e não da Conservatória do Registo Civil.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Comecemos pela alegada invalidade formal da decisão recorrida. E, mais concretamente, pela violação do direito ao contraditório, de que se queixa a Apelante.

Sustenta ela, no fundo, que a dita decisão constituiu para si uma verdadeira surpresa, uma vez que nunca, antes, tinha sido ouvida sobre a questão da incompetência material.

E tem razão. Percorrendo o histórico eletrónico deste processo, facilmente se verifica que nunca à Apelante, antes da decisão recorrida, foi facultada a possibilidade de se pronunciar sobre a exceção de incompetência conhecida nessa decisão.

Assim, é manifesto que foi violado o seu direito ao contraditório.

Efetivamente, como é sabido, esse direito tem não só consagração legal, mas também constitucional. O princípio do contraditório emana de um outro princípio que se traduz na exigência constitucional de que o direito de ação, ou direito de agir em juízo, seja assegurado através de um processo equitativo (artigo 20.º da CRP). E, na noção de processo equitativo estão incluídas diversas dimensões às quais não é alheia a própria conformação do processo, de modo a que, através dele, se obtenha uma tutela judicial efetiva, em termos materialmente adequados.

Ora, uma das formas de alcançar esse resultado, no âmbito estritamente civil, é conferindo àqueles que são afetados pelas decisões judiciais o direito ao contraditório; ou seja, o direito de invocarem as pertinentes razões de facto e de direito que sejam necessárias para a defesa das suas posições processuais, o direito a oferecer as próprias provas, a controlar aquelas que são apresentadas pela parte contrária e ainda o direito de se pronunciarem sobre o valor probatório de todas elas.

Estes direitos estão legalmente consagrados, mas dedica-lhe particular atenção o artigo 3º do CPC.

Segundo este preceito, “[o] tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição” (n.º 1).

“Só nos casos excecionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida” (n.º 2).

E, como regra, “[o] juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem” (n.º 3).

De modo que, para um exercício efetivo do direito ao contraditório, o juiz não pode deixar de ouvir as partes sobre as questões que lhe cumpre resolver; sejam elas de conhecimento oficioso ou não. E, por regra, previamente à tomada de decisão.

Ora, como vimos, não foi isso que sucedeu em relação à exceção de incompetência material conhecida na decisão recorrida.

De modo que essa decisão não pode deixar de ter-se por nula, uma vez que incorreu em excesso de pronúncia (artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC).

Por dois motivos:

“- O primeiro é o de que, até haver o proferimento da decisão-surpresa, não há nenhum vício processual contra o qual a parte possa reagir; a parte pode suspeitar de que o tribunal vai aplicar um regime não discutido no processo e de que vai proferir uma decisão-surpresa; todavia, é apenas no momento do proferimento desta decisão que o vício se manifesta e se constitui”;

O segundo “é o de que o vício que afecta uma decisão-surpresa é um vício que respeita ao conteúdo da decisão proferida; a decisão só é surpreendente porque se pronuncia sobre algo de que não podia conhecer antes de ouvir as partes sobre a matéria; a decisão padece de um vício de conteúdo e, por isso, é nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC); estranho seria, aliás, que o vício que afecta a decisão-surpresa, sendo um vício de conteúdo, não tivesse o mesmo tratamento e não originasse as mesmas consequências dos demais vícios de conteúdo que, segundo o disposto no art. 615.º, n.º 1, CPC, conduzem à nulidade da sentença” [Teixeira de Sousa, em comentário ao Ac. RP de 02/03/2015, Processo n.º 39/13.6TBRSD.P1, no Blog do IPPC. No mesmo sentido, já se pronunciou o mesmo Autor outras vezes no mesmo Blog, incluindo em anotação ao Ac. do STJ de 23/6/2016, Processo n.º 1937/15.8T8BCL.S1, que seguiu idêntica orientação].

Daí que se verifique a apontada nulidade."

*3. [Comentário] É com natural agrado que se verifica que se vai consolidando na jurisprudência a orientação de que a decisão-surpresa é uma decisão nula por excesso de pronúncia.

Como se tem referido várias vezes neste Blog, não se trata de uma nulidade processual também pela simples razão de que o vício não respeita à decisão como trâmite (a decisão é proferida no momento processualmente adequado, pelo que não é praticado nenhum acto proibido), mas à decisão como acto (a decisão tem um conteúdo que, sem a audição prévia das partes, não pode ter). Ora, um vício de conteúdo da decisão nunca pode ser uma nulidade processual.

MTS