"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



02/10/2020

Jurisprudência 2020 (65)


Deserção da instância;
negligência da parte; despacho do juiz*


1. O sumário de STJ 4/2/2020 (21005.15.1T8PRT.P1.S1é o seguinte:

I - Pode dizer-se que o instituto da deserção da instância se reveste de natureza compulsória, destinando-se a constranger a(s) parte(s) a adotar o comportamento devido, até então omitido. 

II - O CPC prevê, no art. 281.º, n.os 1 e 4, além do decurso do prazo de seis meses, a necessidade de apreciar a existência de omissão negligente de impulso processual das partes.

III – O juiz não tem de se substituir às partes no que respeita ao cumprimento do ónus de promoção do andamento do processo.

IV – Assim, sempre que o impulso processual dependa da parte, esta tem o ónus e o interesse em informar o tribunal acerca da existência de algum obstáculo.

V - A partir do momento em que a instância fica suspensa, tendo as partes sido notificadas dessa suspensão, compete aos interessados promover os termos do processo.

VI - Apesar de se extinguir o direito do demandante de manter constituída a instância, nem o direito de ação e nem o direito subjetivo exercido são afetados pela decisão.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Conforme referido supra, trata-se de saber se, encontrando-se o processo a aguardar impulso processual há mais de seis meses, o Tribunal, antes de julgar deserta a instância, deve ou não proferir despacho prévio que assinale essa cominação. [Neste sentido, vide José Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil – conceito e princípios gerais à luz do novo código, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, pp. 157-158]

O objeto do recurso em apreço consiste, precisamente, na interpretação do art. 281.º, n.os 1 e 4, do CPC.

Pode dizer-se que o instituto da deserção da instância se reveste de natureza compulsória, destinando-se a constranger a(s) parte(s) a adotar o comportamento devido, até então omitido.

Na redação anterior àquela introduzida pelo DL n.º 41/2013, de 26 de junho, o art. 291.º, n.º 1, do CPC, considerava deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando estivesse interrompida durante dois anos. Por seu turno, segundo o art. 285.º, do mesmo corpo de normas, a instância interrompia-se quando o processo estivesse parado durante mais de um ano por negligência das partes em promover os seus termos ou os de algum incidente do qual dependesse o seu andamento. Assim, a inércia da(s) parte(s) sobre quem recaía o ónus de impulso processual apenas produzia efeitos após o decurso do período de um ano. Tinha então lugar decisão judicial a declarar a interrupção da instância por negligência da(s) parte(s) em promover os seus termos (art. 285.º do CPC). A partir daí iniciava-se um novo prazo - de dois anos -, findo o qual operava, automaticamente, a extinção da instância por deserção, nos termos do art. 291.º, n.º 1, do CPC. A deserção da instância pressupunha, pois, a interrupção prévia da instância por um período de dois anos.

O NCPC prevê, todavia, no art. 281.º, n.os 1 e 4, além do decurso do prazo de seis meses, a necessidade de apreciar a existência de omissão negligente de impulso processual das partes. Esta apreciação, por seu turno, apenas pode ter lugar mediante a prolação de decisão judicial precedida da averiguação do motivo/causa da falta de impulso processual.

Abandonou-se o requisito de uma interrupção prévia da instância por um período de dois anos, período em que a instância se encontrava como que adormecida. O legislador, além de reduzir para seis meses o período de inércia processual desprovida de consequências, retirou dessa inércia um efeito extintivo imediato, sem mediação de qualquer período de interrupção da instância. Na verdade, passa-se agora imediatamente da mera situação de inércia, com ou sem suspensão da instância, para a extinção da instância, desde que essa inércia seja imputável à parte sobre quem recai o ónus de promoção da atividade processual [...]. 

Pode, deste modo, dizer-se que a referida alteração legislativa conduziu a uma verdadeira mudança de paradigma, porquanto o regime atualmente em vigor revela, com toda a clareza, que se pretendeu sancionar a inércia processual, penalizando a(s) parte(s). Assim se atribui também maior relevância aos princípios do dispositivo - no que respeita ao ónus de promoção da tramitação processual - e da autorresponsabilidade das partes, sendo o último corolário do primeiro. Com efeito, a “omissão continuada da actividade da parte, quando a esta cabe um ónus de impulso processual subsequente, tem efeitos cominatórios, que podem consistir, designadamente, na deserção da instância” [ Cfr. José Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil – conceito e princípios gerais à luz do novo código, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, p. 183. De acordo com Francisco Manuel Lucas Ferreira da Silva, Direito Processual Civil, vol. I, Coimbra, Almedina, 2017, p. 97), “[e]stritamente associado ao princípio da autorresponsabilidade das partes, o princípio da preclusão prende-se directamente com a oportunidade ou a eventualidade da exercitação de direitos ou a satisfação de ónus e deveres processuais, seja com o modus da propositura da acção, seja com os atos a praticar no desenvolvimento da lide”].

No direito vigente, mantém-se o dever do juiz de dar prevalência, tanto quanto possível, a decisões finais de mérito sobre decisões meramente processuais/formais (art. 278.º, n.º 3, do CPC), o dever de gestão processual, dirigindo ativamente o processo e providenciando pelo seu andamento célere (art. 6.º, n.º 1, do CPC), assim como o dever de cooperação com as partes, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio (art. 7.º, n.º 1, do CPC). No entanto, nenhuma destas obrigações pressupõe que o juiz se deva (tenha) substituir às próprias partes no que respeita ao cumprimento do ónus de promoção do andamento do processo.

Por conseguinte, “sempre que o impulso processual dependa da parte, esta tem o ónus e o interesse em informar o tribunal acerca da existência de algum obstáculo e, se for o caso, solicitar a concessão de alguma dilação. Não cabe ao tribunal promover a audição da parte sobre a negligência, tendo em vista a formulação de um juízo sobre as razões da inércia; esta será avaliada em função do que resultar objetivamente no processo”[ Cfr. António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, p. 330.]

No caso em apreço, o Recorrente, único filho e herdeiro da falecida Autora, tinha o ónus de requerer no processo a sua habilitação para, dessa forma, fazer cessar a suspensão da instância determinada na sequência da morte de sua mãe, sob pena de deserção da instância, decorrido o prazo de seis meses sem que haja qualquer impulso processual da sua parte. Considerando o desenvolvimento processual ocorrido in casu (sob os pontos 1.2, 1.3., 1.4, 1.5., 1.5., 1.6., 1.7., 1.8. e 1.9.), resulta que na situação em apreço decorreram mais de seis meses desde a notificação – sob os pontos 1.6. e 1.7. – de que a instância se encontrava suspensa, em virtude do falecimento da Autora comunicado pelo seu mandatário, sem que o Recorrente, filho e único herdeiro da mesma, tivesse vindo requerer a respetiva habilitação.

Importa, neste momento, apreciar se o decretamento da deserção da instância, uma vez decorrido o prazo de seis meses por si pressuposto (art. 281.º, n.º 1), deve ou não ser precedido de despacho que assinale essa cominação.

O dever de prevenção do tribunal, que assume como que uma veste assistencial, “vale genericamente para todas as situações em que o êxito da acção a favor de qualquer das partes possa ser frustrado pelo uso inadequado do processo. São quatro as áreas fundamentais em que a chamada de atenção decorrente do dever de prevenção se justifica: a explicitação de pedidos pouco claros, o carácter lacunar da exposição dos factos relevantes, a necessidade de adequar o pedido formulado à situação concreta e a sugestão de uma certa actuação” [Vide Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, p. 66].

Diferentemente do que o Recorrente preconiza, não tinha o tribunal, no caso sub judice, de proceder a qualquer notificação a informar as partes de que corria o prazo de deserção da instância. A partir do momento em que a instância fica suspensa, tendo as partes sido notificadas dessa suspensão, compete aos interessados promover os termos do processo. Recorde-se, de resto, que nos autos foi proferido, a 22 de janeiro de 2018, o seguinte despacho: “Notifique-se a herança aberta por óbito de AA, na pessoa do Ilustre advogado Dr. BB para em 10 dias concretizar os motivos (a existirem) por que não foi requerida desde há cerca de sete meses a competente habilitação dos herdeiros de AA. Este despacho é prévio para aferir da declaração de deserção de instância – artigo 281.º, n.º 3, do C. P. C”.

É que a negligência a que se refere o art. 281.º, n.º 1, do CPC, “é necessariamente a negligência retratada ou espelhada objetivamente no processo (negligência processual ou aparente)” e “[s]e a parte não promove o andamento do processo e nenhuma justificação apresenta, e se nada existe no processo que inculque a ideia de que a inação se deve a causas estranhas à vontade da parte, está apoditicamente constituída uma situação de desinteresse, logo de negligência” [Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20 de outubro de 2016 (José Rainho), proc. n.º 1742/09.TBBNV-H.E1]. Por outro lado, a “conduta omissiva e negligente da parte onerada com o impulso processual só cessará com a prática do ato que, utilmente, estimule a instância, ou com a superveniência de uma circunstância que subtraia à vontade da parte a possibilidade da sua prática” [Cfr. Paulo Ramos de Faria, “O julgamento da deserção da instância declarativa (breve roteiro jurisprudencial)”, in http://julgar.pt/o-julgamento-da-desercao-da-instancia-declarativa/ (acesso em 22.01.2020).].

Como resulta da matéria de facto provada (que retrata o devir processual observado), decorreu o prazo legal máximo de seis meses previsto no art. 281.º, n.º 1, do CPC, sem que tenha sido requerida ou promovida a habilitação dos herdeiros de AA (omissão do ato de parte) e sem que haja sido levado ao conhecimento do Tribunal qualquer elemento ou circunstância impeditiva do impulso, que permitisse afastar o juízo de negligência refletido nos autos (omissão imputável ao Recorrente, e não a terceiro ou ao Tribunal). Repare-se que nem subsequentemente o Recorrente invocou qualquer justo impedimento ao cumprimento do ónus de impulso processual que sobre si impendia. Impunha-se, por isso, declarar – como se declarou - deserta a instância. Conforme o art. 277.º, al. c), do CPC, a deserção é causa de extinção da instância.

Note-se, por último, que, apesar de se extinguir o direito do demandante de manter constituída a instância, nem o direito de ação e nem o direito subjetivo exercido são afetados pela decisão."

*3. [Comentário] Salvo o devido respeito pela orientação doutrinária e jurisprudencial reflectida no acórdão, o disposto no art. 281.º, n.º 1 e 4, CPC impede qualquer automatismo entre a inércia da parte e a deserção da instância e não permite a interpretação de que a negligência está demonstrada por essa própria inércia. Se assim fosse, a referência à negligência da parte no art. 281.º, n.º 1, CPC seria tautológica, um ponto de partida interpretativo que o art. 9.º, n.º 3, CC proíbe.

MTS