"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/10/2020

Jurisprudência 2020 (64)


Deserção da instância;
gestão processual*


1. O sumário de RL 5/3/2020 (3625/14.3TBALM.L1-2) é o seguinte:

I - A conduta negligente que conduz à figura da deserção traduz-se numa situação de inércia imputável à parte.

II - Uma das mais relevantes concretizações do dever de gestão processual é a promoção oficiosa das diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação.

III - Não existe necessidade de notificar as partes para juntarem aos autos certidão de óbito, com a inerente pausa para a apresentação do documento, quando o tribunal dispõe de meios para obter oficiosamente a informação pretendida de modo célere e não oneroso junto dos serviços de identificação civil.

IV - Como consta expressamente do artigo 22.º, n.º 1, da Portaria n.º 280/2013, de 26.8, sempre que as condições técnicas o permitam, o tribunal deve consultar diretamente a informação disponível eletronicamente da titularidade de serviços da Administração Pública.

V - Segundo o n.º 2 do citado preceito, tal informação tem valor idêntico a uma certidão emitida pelo serviço competente, nos termos da lei.

VI - Não tendo o Tribunal recorrido diligenciado pela suspensão da instância em face da tomada de conhecimento da morte de três Autores, ex vi da base de dados dados SIRIC - Sistema Integrado do Registo e Identificação Civil, nenhum comportamento faltoso poderia ter assacado aos Autores sobrevivos pela não junção atempada das certidões de óbito.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"O Tribunal a quo, quiçá escudado no disposto no artigo 270.º, n.º 2, do CPC, segundo o qual «A parte deve tornar conhecido no processo o facto da morte ou da extinção do seu comparte ou da parte contrária, providenciando pela junção do documento comprovativo», determinou a junção aos autos dos certificados de óbito de três dos Autores, após conclusão da Secretaria no sentido de se ter verificado o falecimento daqueles na base de dados SIRIC - Sistema Integrado do Registo e Identificação Civil.

Dispõe o artigo 269.º do CPC que «A suspensão da instância tem como efeito a paralisação da tramitação processual, na medida em que, enquanto perdurar, apenas podem ser praticados os atos urgentes destinados a evitar dano irreparável, nos termos do artigo 275.º, n.º 1, do CPC.»

Quanto a prazos, os mesmos não correm durante a suspensão, retomando-se a sua contagem logo que aquela cesse.

Segundo o preceituado no artigo 270.º, n.º 1, do CPC, «Junto ao processo documento que prove o falecimento ou a extinção de qualquer das partes, suspende-se imediatamente a instância, salvo se já tiver começado audiência de discussão oral ou o processo já estiver inscrito em tabela para julgamento. Neste caso a instância só se suspende depois de proferida a sentença ou o acórdão.»

Como escreveram Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC Anotado, Vol I, 3.ª edição, p. 531, o preceito deve ser interpretado restritivamente, por forma a abarcar apenas as situações em que a prova já tenha sido produzida e se passa para a fase das alegações orais (artigo 604.º, n.º 3, alínea e), do CPC), isto é, a instância deve suspender-se sempre que a prova do falecimento ocorra em momento anterior ao início das alegações orais.

Na situação em apreço, o Tribunal a quo considerou que a informação da Secretaria era suficiente, porque fidedigna, para dar sem efeito a audiência de discussão e julgamento e desconvocar todas as partes, mas já não a considerou bastante para declarar a suspensão da instância ao abrigo do citado artigo 270.º, n.º 1, do CPC.

Se é evidente a necessidade de impulso processual a cargo da parte nos casos em que a suspensão da instância é motivada pelo falecimento de alguma das partes, resultando claro do artigo 269.º, n.º 1, alínea a), do CPC, que a partir de então passa a recair sobre a parte o ónus de promover a habilitação dos sucessores, como o revelam também os artigos 276.º, n.º 1, alínea a), e 351.º do CPC, o mesmo não se pode afirmar displicentemente no que tange ao ónus de juntar aos autos os certificados dos assentos de óbito das partes falecidas no decurso do processo.

Aliás, veja-se que o Tribunal a quo, ao longo de vários anos, teve posições diversas sobre a mesma problemática.

Assim, como se resulta do ponto 25 do relatório, no início da audiência de discussão e julgamento, em 2.3.2017, foi dada notícia do falecimento do Autor JJ…, tendo sido impresso documento certificativo do óbito, como resulta do teor de fls. 1580 (documento extraído da base de dados SIRIC - Sistema Integrado do Registo e Identificação Civil).

No mesmo ato foi proferido despacho de suspensão da instância em face da morte do referido Autor e dadas sem efeito as sessões de julgamento.

O Tribunal a quo, em 2017, não onerou as partes com o dever de juntar aos autos os certificados de óbito dos Autores falecidos.

E em 2018, numa situação similar, proferiu uma decisão diferente.

Ora, a apreciação da negligência ou do grau de diligência revelado pela parte deve ser feita em face dos dados conferidos pelo processo.

Assim, sempre que o impulso processual dependa da parte, esta tem o ónus e o interesse em informar o tribunal acerca da existência de algum obstáculo e, se for o caso, solicitar a concessão de alguma dilação.

Não foi esse o caso.

E não tinha de o ser.

Como alertam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol I, Coimbra: Almedina, 2018, p. 330, nota 12), «(…) quando não se suscitem dúvidas sobre a necessidade de impulso processual ou sobre as consequências da inércia da parte, a deserção da instância deve ser declarada a partir da mera observação dos elementos conferidos pelos autos. Mais cuidado há que ter nas situações em que a identificação, a incidência ou a exigência do impulso processual não sejam evidentes ou quando sejam equívocas as consequências decorrentes da inércia, a justificar um sinal mais solene da existência do ónus e/ou dos efeitos que serão extraídos do seu incumprimento.»

Na verdade, o sistema informático de suporte à atividade dos tribunais inclui aplicações que permitem identificar processos não movimentados por determinado período e aceder a bases de dados relevantes.
Cumprindo o seu dever de gestão processual, o juiz dispõe hoje da informação necessária à instrução da secção de processos no sentido de «reanimar» os autos desnecessariamente parados.

Não existe, pois, justificação para o juiz se limitar a notificar as partes para juntarem aos autos uma certidão de óbito, com a inerente pausa para a apresentação deste documento.

Como bem refere Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro (Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, 2014, 2.ª ed., Vol. 1, p. 55), «O tribunal dispõe de meios para obter oficiosamente a informação pretendida de modo célere, seguro e não oneroso junto dos serviços de identificação civil.»

Neste sentido, vide o artigo 22.º da Portaria n.º 280/2013, de 26.8, que regula vários aspetos da tramitação eletrónica dos processos judiciais, o qual preceitua que:

«1 - Quando, no âmbito do processo, seja necessário consultar informação disponível eletronicamente da titularidade de serviços da Administração Pública, essa consulta deve ser efetuada diretamente pelo tribunal por meios eletrónicos sempre que as condições técnicas o permitam.

2 - A informação consultada nos termos do número anterior tem valor idêntico a uma certidão emitida pelo serviço competente, nos termos da lei.»

Atente-se em que a gestão processual, como bem tem frisado a doutrina alemã, mais do que uma exigência do legislador, é uma necessidade resultante da ética judicial (Sie ist eine Forderung des richterlichen Ethos) norteada para a correta resolução dos litígios (justiça do caso concreto) e, logo, para a pacificação da sociedade.

Uma das mais relevantes concretizações do dever de gestão processual é a promoção oficiosa das diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação.

Nas palavras de Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, «O que o legislador pretende do juiz é uma permanente dinamização do processo. Já não basta que se interesse pela sorte da demanda quando lhe é aberta conclusão nos autos, promovendo então a diligência “regular” seguinte na cadeia que constitui o processo tipificado. O empenho do juiz deve ser permanente – mesmo quando o processo jaz numa prateleira da secretaria judicial ou num servidor mais ou menos longínquo» (obra citada, p. 54).

No caso em apreço, não tendo o Tribunal recorrido diligenciado pela suspensão da instância em face da tomada de conhecimento da morte dos três Autores, ex vi da base de dados dados SIRIC - Sistema Integrado do Registo e Identificação Civil, nenhum comportamento faltoso se pode assacar aos Autores sobrevivos.

Em face do que precede, não se verifica in casu qualquer atuação negligente dos Autores atendendo ao dever de gestão processual do juiz, a quem incumbia afastar o obstáculo em causa, como sucedeu no despacho proferido neste processo a 2.3.2017.

Conclui-se, assim, que o silêncio dos Autores não é passível de ser qualificado como uma inércia negligente."

3. [Comentário] É apenas uma questão de formulação afirmar que os autores não actuaram de forma negligente ou concluir que o tribunal não podia retirar consequências da omissão de um acto das partes que o próprio tribunal podia (e devia) ter realizado. Em substância, o acórdão decidiu bem.

MTS