"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



20/10/2023

Jurisprudência 2023 (33)


Adopção estrangeira;
reconhecimento da sentença*


1. O sumário de STJ 15/2/2023 (76/22.0YREVR.S1) é o seguinte:

I – O art. 90.º/2 do RJPA (Regime Jurídico do Processo de Adoção, aprovado pela Lei n.º 143/2015) é aplicável tão só às adoções internacionais, ou seja, não é aplicável quando os adotantes e a criança adotada residam, todos eles, na data da adoção, no mesmo país estrangeiro.

II – Assim, não é o art. 90.º/2 do RJPA convocável para definir quem é competente para o reconhecimento da sentença de adoção em causa (ou seja, para o reconhecimento de tal sentença de adoção, não é competente a Autoridade Central, prevista no RJPA), sendo-lhe aplicável o sistema tradicional de controlo prévio de revisão e confirmação das decisões estrangeiras por parte dos órgãos jurisdicionais, ou seja, o processo especial previsto no art. 978.º e ss. do CPC.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Coloca-nos a presente revista perante uma questão de competência/jurisdição, na medida em que está unicamente em causa saber/dizer quem é competente – o sistema judicial, nos termos dos artigos 978.º e 979.º do CPC, ou uma entidade administrativa (a designada Autoridade Central, de cuja decisão está previsto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa) – para o reconhecimento duma sentença de adoção (a referida no ponto a) dos factos) proferida, em 24/11/2014, por um Tribunal de Família e Menores da África do Sul.

Não se sustenta que se esteja perante um caso de reconhecimento automático da sentença de adoção em causa [---], antes se sustentando, não há nisto qualquer divergência, ser aplicável o tradicional sistema de controlo prévio das decisões estrangeiras, controlo prévio que o recorrente entende – e é aqui que se situa a divergência recursiva – que, para a situação sub judice, o legislador retirou a respetiva competência dos órgãos jurisdicionais, entregando-o, em primeira linha [---], a uma entidade administrativa (a já referida Autoridade Central).

Vejamos:

É verdade que legislador retirou tal competência aos órgãos jurisdicionais, entregando-a, como resulta do art. 90.º/2 do atual Regime Jurídico do Processo de Adoção (aprovado pelo art. 5.º/1 da Lei n.º 143/2015) à referida Autoridade Central, porém, como bem reflete, a nosso ver, o Acórdão recorrido, não num caso como o presente.

Como resulta do relato inicial, foram os requerentes convidados a indicar o lugar da sua residência habitual à data da adoção e vieram informar que, à data da adoção, tinham residência habitual na Africa do Sul, o que, sublinha-se, não foi colocado em crise pelo Ministério Público, razão pela qual foi tal informação dada como assente, com o que fica “prejudicada” a argumentação jurídica do recorrente.

Porque o que se dispõe no invocado art. 90.º/2 do RJPA – ou seja, que “nos demais casos, a eficácia em Portugal da decisão estrangeira de adoção depende de reconhecimento a efetuar pela Autoridade Central” – vale e é aplicável tão só às adoções internacionais e, residindo os requerentes na África do Sul à data da adoção, não pode a adoção sob revisão ser considerada como uma adoção internacional.

Efetivamente deve entender-se por «adoção internacional», quer no atual art. 2.º/a) da RJPA, quer antes no DL 185/93 (no seu art. 23.º), quer na Convenção de Haia de 1993 (art. 2.º/1 e 14.º), aquela em que ocorre a transferência de uma criança do seu país de residência habitual para o país da residência habitual dos adotantes, com vista ou na sequência da sua adoção, ou seja, a adoção internacional ocorre: (i) quando os adotantes residem habitualmente em Portugal e pretendem adotar criança residente no estrangeiro, (ii) ou quando a criança reside habitualmente em Portugal e os adotantes residem no estrangeiro.

Pelo que, inversamente, a situação em que os adotantes, sejam de nacionalidade portuguesa ou não, residem habitualmente no país em que procedem à adoção duma criança não configura um caso de adoção internacional.

Ora – é o ponto – é justamente este o caso dos autos: a adoção sub judice foi decretada por um tribunal da África do Sul, país onde os requerentes e o menor residiam.

Não estamos pois perante uma “adoção internacional”, pelo que, sendo o disposto no artº 90.º/2 do RJPA tão só aplicável a adoções internacionais, não é o mesmo convocável para definir quem é competente para o reconhecimento da sentença de adoção em causa, valendo e sendo aplicável o sistema tradicional de controlo prévio das decisões estrangeiras por parte dos órgãos jurisdicionais (o processo especial previsto no art. 978.º e ss. do CPC).

O equívoco interpretativo, antevê-se, decorrerá da expressão “nos demais casos” com que se inicia o art. 90.º/2 do RJPA, porém, tal expressão, sistematicamente interpretada, significa e reporta-se apenas aos demais casos de adoções internacionais (com o sentido atrás referido) e não a todos os casos de adoções decretadas no estrangeiro: o art. 90.º em causa faz parte dum Título (do RJPA) respeitante à Adoção Internacional [Que se inicia no art. 61.º, no qual logo é dito que “as disposições do presente título aplicam-se aos processos de adoção em que ocorra a transferência de uma criança do seu país de residência habitual para o país da residência habitual dos adotantes, com vista ou na sequência da sua adoção.], pelo que a expressão “nos demais casos” reporta-se aos demais casos de adoção internacional (reporta-se “àquilo” de que trata tal Título) e é utilizada em conjugação com o que é referido no art. 90.º/1, em que se preveem as situações de eficácia automática (em Portugal) de sentenças de adoção internacional proferidas no estrangeiro, significando muito evidentemente, a nosso ver, que os “demais casos” (no seguimento do que é dito no art. 90.º/1) contemplam, preveem e se referem a todas as outras sentenças de adoção internacional proferidas no estrangeiro que não gozem de eficácia automática em Portugal (as quais continuam sujeitas a controlo prévio, mas que o art. 90.º/2 do RJPA entregou a uma entidade administrativa – a Autoridade Central, a que se referem os artigos 1.º/2/b), 64.º e 65.º do RJPA).

Concorda-se pois totalmente com a parte essencial do raciocínio expendido pelo Acórdão recorrido, ou seja, com o dizer-se/concluir-se que a decisão revidenda não configura uma adoção internacional, pelo que não está a competência/jurisdição para a revisão da sentença que a decretou retirada aos órgãos jurisdicionais.

Já não se tem a mesma certeza é sobre o que adicionalmente se expende, isto é, o raciocínio de que, ainda que o caso configurasse uma adoção internacional, não lhe seria aplicável o regime de revisão instituído pelo RJPA por a sentença revidenda haver sido proferida antes da entrada em vigor do RJPA; para o que se argumenta que, “à data em que decorreu o processo de adoção no termo do qual foi proferida a sentença revidenda, os requerentes não podiam orientar a sua conduta por referência a um processo de adoção e de reconhecimento da decisão estrangeira que, à data, não existia [v.g. a exigência da intervenção da Autoridade Central, nos termos do n.º 3 do artigo 64.º, e da autoridade competente do país de origem ou de acolhimento como requisito para o reconhecimento da decisão estrangeira de adoção – artº 90º, nº3, al. c) do RJPA].

Efetivamente, o que aqui se invoca/argumenta tem já a ver com os requisitos da revisão do art. 90.º/3 da RJPA, alguns deles – face à doutrina geral da nova lei só reger para o futuro e não se aplicar a factos pretéritos (cfr. art. 12.º do C. Civil) – naturalmente inaplicáveis a uma adoção internacional que haja sido decretada antes da entrada em vigor do RJPA, porém, o art. 90.º/2 da RJPA e a atribuição de competência/jurisdição para a revisão de sentenças de adoção internacional à autoridade central é uma norma processual (sobre a competência), onde a orientação geral (por o direito processual ser um ramo do direito público e por não ser ele que regula a substância do direito invocado) é a da sua aplicação imediata.

Seja como for, o que releva é que a decisão revidenda não configura uma adoção internacional e só para estas o RJPA (art. 90.º/2 do RJPA) entrega a uma entidade administrativa – a Autoridade Central, a que se referem os artigos 1.º/2/b), 64.º e 65.º do RJPA – a competência/jurisdição para a revisão das sentenças (de adoção internacional)."

*3. [Comentário] Para bem se compreender o decidido no acórdão a um caso de adopção estrangeira (que não é um caso de adopção internacional), importa ter presente os seguintes dados do RJPA:


Artigo 2.º
Definições
Para os efeitos do RJPA considera-se:
a) «Adoção internacional», processo de adoção, no âmbito do qual ocorre a transferência de uma criança do seu país de residência habitual para o país da residência habitual dos adotantes, com vista ou na sequência da sua adoção;
b) «Adoção nacional», processo de adoção no âmbito do qual a criança a adotar e o candidato à adoção têm residência habitual em Portugal, independentemente da nacionalidade; [...].



Artigo 90.º
Reconhecimento da decisão estrangeira

1 - As decisões de adoção internacional proferidas no estrangeiro e certificadas em conformidade com a Convenção, bem como as abrangidas por acordo jurídico e judiciário bilateral que dispense a revisão de sentença estrangeira, têm eficácia automática em Portugal.
2 - Nos demais casos, a eficácia em Portugal da decisão estrangeira de adoção depende de reconhecimento a efetuar pela Autoridade Central. [...].

MTS