"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



18/10/2023

Jurisprudência 2023 (31)


Procedimento de injunção;
notificação do requerido


1. O sumário de RP 9/1/2023 (998/21.5T8OVR-A.P1) é o seguinte:

I - No Acórdão n.º 99/2019 o Tribunal Constitucional pronunciou-se no sentido da inconstitucionalidade de determinada interpretação normativa dos n.ºs 3 e 5 do artigo 12.º do RPOP, ao passo que as normas aqui aplicadas são as dos n.ºs 3 e 4 do mesmo artigo, e o mesmo Tribunal, pouco tempo depois, emitiu um juízo de constitucionalidade destas normas «quando interpretadas no sentido de que, em caso de frustração da notificação do requerido (para, em 15 dias, pagar quantia não superior a €15.000,00 ou deduzir oposição), através de carta registada com aviso de receção enviada para a morada indicada pelo requerente da injunção, por não reclamação da mesma, o subsequente envio de carta, por via postal simples, para essa morada, em conformidade com o previsto no n.º 4 do artigo 12.º, faz presumir a notificação do requerido, nos casos em que a morada para onde se remeteram ambas as cartas de notificação coincide com o local obtido junto das bases de dados de todos os serviços enumerados no n.º 3 do artigo 12.º»;

II – Tem o aval do Tribunal Constitucional (Acórdãos n.ºs 108/2019, de 19 de Fevereiro de 2019, e n.º 773/2019) a solução legislativa que dispensa o conhecimento efetivo do ato de notificação do requerimento de injunção, sendo bastante a colocação da carta em condições de poder ser conhecida pelo destinatário;

III - Na oposição à execução que tem por base o título executivo formado nos termos do n.º 1 do artigo 12.º do RPOP, pode o executado arguir a falta de notificação, alegando e demonstrando que não chegou a ter conhecimento do ato de notificação por facto que não lhe é imputável (cfr. artigos 188.º, n.º 2, alínea e), 729.º, alínea d), e 857.º do CPC), o que permitirá acautelar, pelo menos, as situações de ausência prolongada e as situações de mudança de residência (ainda) não comunicada;

IV - Não é de difícil ilisão a presunção de recebimento/conhecimento da notificação efectuada por via postal simples nos termos dos nºs. 3 e 4 do artigo 12.º, com observância do formalismo previsto no artigo 12.º-A, nºs. 2 e 3, mas o recorrente não logrou provar que a notificação não chegou ao seu conhecimento, como, inequivocamente, decorre do elenco de factos considerados não provados, sendo certo que não impugnou a decisão sobre matéria de facto.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Na decisão recorrida, depois de se constatar que, apesar das alterações introduzidas pela Lei n.º 117/2019, de 13/9, com o aditamento do art. 14.º-A ao regime jurídico anexo ao Dec. Lei n.º 269/98, mantiveram-se os procedimentos de notificação através do mecanismo de pesquisa às bases de dados no caso de se frustrar a notificação por via postal registada, seguida da via postal simples como modo de comunicação da pretensão do credor, não havendo domicílio convencionado (cf. n.ºs 3 a 7 do artigo 12.º do RPOP), discreteou-se assim:

«2.2. Este era um dos aspetos do regime da injunção que o Tribunal Constitucional passou a censurar em termos mais explícitos a partir do Acórdão n.º 714/2014, sustentando que a notificação do requerimento de injunção oferece menores “garantias de cognoscibilidade do respetivo conteúdo” (cfr. ponto II. Fundamentação, 8.1 deste aresto), querendo com isso significar que aquela notificação não fornece prova segura de receção da carta remetida ao requerido por via postal simples.

No entanto, não se pode afirmar que os procedimentos de notificação previstos nos n.ºs 3 a 7 do artigo 12.º do RPOP não asseguram um elevado grau de probabilidade de que o ato notificado tenha chegado ao seu destinatário. O problema não está nos procedimentos, mas sim na aplicação dos preceitos jurídicos que os preveem.

Com efeito, quer no caso de a residência ou local de trabalho do requerido coincidir com o local obtido nas pesquisas às bases de dados de todos os serviços enumerados no n.º 3 do artigo 12.º do RPOP, quer no caso de não se verificar essa coincidência, tem de se admitir sempre a prova pelo requerido – que este fará na oposição por embargos ao processo de execução – de que a residência ou local de trabalho encontrada naquelas bases de dados, mesmo que seja em todas, não corresponde à sua no momento em que foi expedida e depositada a notificação por via postal simples, ou que desconhecia, sem culpa, o seu conteúdo, constituindo, em qualquer dos casos, uma situação de falta de notificação (cf. art. 188.º, n.º 1, al. e), 729.º, al. d) e 857.º, n.º 1, todos do CPC; ainda, art. 14.º-A, n.º 2, al. b), do RPOP).

Esta é a norma-princípio de salvaguarda para se poder pressupor que o requerido tomou conhecimento do procedimento de injunção e dos efeitos preclusivos associados à falta de oposição para poder eficazmente exercer o contraditório. Quer dizer: se o requerido não se compadecer através da dedução de embargos que não residia nas moradas apuradas nas bases de dados previstas no n.º 3 do artigo 12.º do RPOP, fica legitimado um sibi imputet decorrente da sua inação. Note-se que é sobre o requerido que recai o ónus da prova de que a notificação não chegou ao seu conhecimento, por facto que não lhe seja imputável, tal-qualmente sucede no regime da citação (cf. arts. 188.º, n.º 1, al. e), e 230.º, n.º 1, CPC).

O sentido a atribuir à notificação referida no n.º 1 do artigo 14.º-A, do RPOP (e, consequentemente, prevista no artigo 12.º do mesmo regime jurídico) só pode ser este: a notificação efetuada por um dos meios previstos nos n.ºs 3 a 7 do artigo 12.º do RPOP obedece à estrutura de uma presunção jurídica ilidível: (i) se forem observadas as formalidades inerentes àquela notificação e (ii) se a carta (ou uma das cartas) for depositada na residência ou local de trabalho do notificando [facto probatório], então presume-se que este (o notificando) teve dela conhecimento [facto presumido].

Por conseguinte, apenas a solução baseada no critério da residência efetiva (incluindo naturalmente o recebimento por terceiro, constituindo este um caso de notificação quase-pessoal) ou no endereço postal situado noutro local escolhido pelo requerido (abrangendo, p. ex., as situações em que se utiliza um apartado postal num posto de correios ou em que se pediu a reexpedição da correspondência para um destino diferente da residência ou local de trabalho) passa no crivo do art. 20.º, n.º 4, da CRP, salvo a situação de confirmação da entrega da carta feita pelo requerido, quando outra seja a sua residência ou endereço postal. É também esta a solução adotada no domínio do direito europeu quando a citação ou notificação é realizada sem prova de receção pelo requerido (cf. art. 14.º do regime do título executivo europeu, aprovado pelo Reg. 805/2004, de 21/4/2004, e o art. 14.º do procedimento europeu de injunção, aprovado pelo Reg. 1896/2006, de 12/12/2006).

No caso sub judicio, o Executado veio embargar alegando não residir na morada na qual foi depositada a carta registada e, posteriormente, a carta simples. Provou-se que não residia, mas também se provou que não alterou a morada nos serviços de identificação civil, finanças e segurança social, e, ainda, que existia uma prática reiterada, implementada pelo próprio Embargante, dirigido especificamente ao levantamento de toda a correspondências a si dirigida com destino à Rua ..., ..., ... em Aveiro, de tal sorte que o mesmo Embargante recebeu, nessa morada, várias cartas a si dirigidas, quer porque ia lá pessoalmente levantar em mão a sua correspondência, quer porque pediu à pessoa que morava no apartamento (sito na Rua ..., ...), de nome DD, para lhe entregar a correspondência a si dirigida ou deixando ficar na morada Rua ....

O Tribunal Constitucional, depois de ter revogado o Acórdão 161/2019, passou a considerar que os n.ºs 3 e 4 do artigo 12.º do RPOP não são inconstitucionais, por a morada obtida nas pesquisas informáticas ser a mesma e única, sustentando que a solução legislativa dispensa o conhecimento efetivo do ato de notificação, sendo bastante a colocação da carta em condições de poder ser conhecida pelo destinatário (cf. Acórdão n.º 773/2019).

Neste Acórdão (que decide um conflito jurisprudencial), o Tribunal Constitucional não analisa com clareza a situação em que a (única) morada encontrada por pesquisa às bases de dados dos organismos públicos não corresponde à residência efetiva do notificando no momento do depósito da carta postal simples, dado que a solução que fez vencimento naquele aresto pressupõe que não haja dúvidas sobre o domicílio do requerido.

No caso dos autos, provou-se que o Executado acautelou responsavelmente o recebimento de toda a sua correspondência na morada fiscal (que é a mesma do registo civil e da segurança social), indo lá pessoalmente ou reexpedido a correspondência para o local onde reside.

Com base nesta factualidade, considera-se que o mesmo foi notificado da injunção ou, pelo menos, a podia ter recebido inculposamente, dado que a situação dos autos é assimilável à hipótese em que se utiliza um apartado postal num posto de correios (pois, também nesta hipótese existe o dever cívico de proceder à consulta regular da caixa postal, atuando com a diligência de um bom pai de família).

Neste contexto, é de aplicar a dimensão normativa sindicada naquele aresto do Tribunal Constitucional (Acórdão n.º 773/2019), que não julgou inconstitucional as normas constantes dos nºs. 3 e 4 do artigo 12.º do regime constante do anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro (na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de fevereiro), quando interpretadas no sentido de que, em caso de frustração da notificação do requerido (para, em 15 dias, pagar quantia não superior a €15.000,00 ou deduzir oposição), através de carta registada com aviso de receção enviada para a morada indicada pelo requerente da injunção, por não reclamação da mesma, o subsequente envio de carta, por via postal simples, para essa morada, em conformidade com o previsto no n.º 4 do artigo 12.º, faz presumir a notificação do requerido, nos casos em que a morada para onde se remeteram ambas as cartas de notificação coincide com o local obtido junto das bases de dados de todos os serviços enumerados no n.º 3 do artigo 12.º. Idêntico entendimento fez vencimento no Acórdão n.º 280/2020, de 19/5, do mesmo Tribunal.

Por conseguinte, no caso dos autos, não obstante tenha ficado demonstrado que o Embargante já não residia na casa em cujo recetáculo a carta postal simples foi depositada, aquele não logrou provar que não conheceu daquele ato de notificação por motivos que não lhe eram imputáveis, nos termos dos arts. 188.º, n.º 1, al. e), 729.º, al. d) e 857.º, n.º 1, todos do CPC, e, ainda, do art. 14.º-A, n.º 2, al. b), do RPOP, ou seja, não ilidiu a presunção legal de cognoscibilidade do ato de notificação.

Da conjugação dos n.ºs 3 e 4 do art. 12.º do regime constante do anexo ao Dec.-Lei n.º 269/98, de 1/9, não se retira a regra de que aquela presunção legal só funciona se a carta simples for entregue no local de residência efetiva ou no local de trabalho do destinatário.

Com efeito, não se pode descartar a hipótese de aquela carta ser entregue na mesma e única morada obtida por pesquisa às bases de dados dos serviços públicos mencionados no n.º 3 e o requerido resida efetivamente noutro local, quando exista um procedimento de entrega de correspondência em local diverso desta residência, que coincida com aquela morada, e neste local o destinatário já tiver recebido anteriormente outra correspondência.

Como se disse, a situação dos autos é assimilável à hipótese em que se utiliza um apartado postal num posto de correios (pois, também nesta hipótese existe o dever cívico de proceder à consulta regular da caixa postal).

Acresce que, como se concluiu na motivação da decisão sobre a matéria de facto controvertida, a Rua ..., ..., em Aveiro, corresponde ao local escolhido pelo Embargante para o recetáculo postal domiciliário, razão pela qual mantém inalterada essa morada, pelo que sobre ele recaía o dever cívico de proceder à consulta regular do mesmo, atuando com a diligência de um bom pai de família. A eleição desse endereço mantém-se atual, como se pode constatar na leitura da petição de embargos e da procuração que o mesmo juntou aos autos.

Em conclusão: a notificação efetuada não viola o princípio da proibição da indefesa, por modo que a consequência jurídica associada pelo legislador àquela notificação (início do prazo para a oposição e, não sendo esta apresentada, a formação de título executivo) pode ter-se como produzida.»

Apesar de extensa, justifica-se a trascrição desta passagem da fundamentação da sentença recorrida porquanto nela se argumenta em termos de tal modo convincentes que dispensaria quaisquer outras considerações.

A esta proficiente fundamentação, o recorrente contrapõe a posição que já havia explanado na petição de embargos (artigos 15.º a 33.º).

Basicamente, defende que, na sequência da declaração de inconstitucionalidade emitida pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 99/2019, de 14 de Março, fica arredada a aplicação do n.º 4 do artigo 12.º do RPOP, uma vez que a notificação por via postal simples não dá garantias bastantes de que ela chega ao conhecimento do destinatário. Por isso, frustrando-se a notificação por carta registada com aviso de recepção, impunha-se a notificação por contacto pessoal ou, em última instância, a citação edital.

É perfeitamente defensável que a formação de um título executivo com uma força executória semelhante à da sentença deva ter uma formação com idênticas garantias àquelas que são exigidas quanto a esta última.

No entanto, também não pode olvidar-se que, tal como a generalidade dos direitos e valores constitucionalmente tutelados, o direito de defesa não é um direito imune às compressões impostas pela existência de outros direitos e valores igualmente dignos de proteção constitucional, nem, por outro lado, assume um conteúdo estático, alheio aos reajustamentos normativos que a transformação das sociedades reclama em ordem à salvaguarda do núcleo essencial de direitos e valores que são especialmente atingidos em determinada etapa desse desenvolvimento.

É bem sabido que os factores de morosidade do processo civil surgem logo na sua fase inicial, a da citação, não sendo raro demorar largos meses até à sua realização. E assim acontece porque a frustração da primeira modalidade de citação, que em regra é a citação por via postal registada, tem de ser seguida da citação por contacto pessoal com o citando (artigo 231.º, n.º 1, do CPC).

Ora, também é sabido que a evolução legislativa nesta matéria tem sido no sentido de ultrapassar o «importante factor de bloqueio» da efetividade dos procedimentos previstos no Decreto-Lei n.º 269/98, em particular do procedimento de injunção, que era «a frustração da notificação postal, pelo não levantamento pelos destinatários das cartas registadas expedidas».

A notificação por contacto pessoal, como defende o recorrente, não é compatível com a desejável eficácia prática do procedimento de injunção.

Por outro lado, importa fazer notar que no Acórdão n.º 99/2019 o Tribunal Constitucional pronunciou-se no sentido da inconstitucionalidade de determinada interpretação normativa dos n.ºs 3 e 5 do artigo 12.º do RPOP, ao passo que as normas aqui aplicadas são as dos n.os 3 e 4 do mesmo artigo, e o mesmo Tribunal, pouco tempo depois, emitiu um juízo de constitucionalidade destas normas «quando interpretadas no sentido de que, em caso de frustração da notificação do requerido (para, em 15 dias, pagar quantia não superior a €15.000,00 ou deduzir oposição), através de carta registada com aviso de receção enviada para a morada indicada pelo requerente da injunção, por não reclamação da mesma, o subsequente envio de carta, por via postal simples, para essa morada, em conformidade com o previsto no n.º 4 do artigo 12.º, faz presumir a notificação do requerido, nos casos em que a morada para onde se remeteram ambas as cartas de notificação coincide com o local obtido junto das bases de dados de todos os serviços enumerados no n.º 3 do artigo 12.º» (Acórdão n.º 108/2019, de 19 de Fevereiro de 2019) e no Acórdão n.º 773/2019 (citado na decisão recorrida) sustentou que a solução legislativa dispensa o conhecimento efetivo do ato de notificação, sendo bastante a colocação da carta em condições de poder ser conhecida pelo destinatário [Neste segundo acórdão do TC argumentou-se: «Neste enquadramento legal, não se divisam, igualmente, razões para considerar que a solução em causa, ao dispensar a certeza do efetivo conhecimento subjetivo da notificação e se bastar com a colocação desta última na área de cognoscibilidade do notificando, viola o princípio da proporcionalidade].

Ora, a factualidade provada (sobretudo os factos descritos na alínea l)) aponta, inequivocamente, para que o aqui recorrente tenha recebido a notificação postal simples remetida para a Rua ..., ..., ... Aveiro (que, mesmo na oposição à execução deduzida, o recorrente continuou a indicar como sendo a morada da sua residência) ou, pelo menos, que podia ter tomado conhecimento do acto de notificação de modo a exercer em tempo o direito de defesa [---].

De resto, na oposição à execução que tem por base o título executivo formado nos termos do n.º 1 do artigo 12.º do RPOP, pode o executado arguir a falta de notificação, alegando e demonstrando que não chegou a ter conhecimento do ato de notificação por facto que não lhe é imputável (cfr. artigos 188.º, n.º 2, alínea e), 729.º, alínea d), e 857.º do CPC), o que permitirá acautelar, pelo menos, as situações de ausência prolongada e as situações de mudança de residência (ainda) não comunicada.

Não é de difícil ilisão a presunção de recebimento/conhecimento da notificação efectuada por via postal simples nos termos dos nºs. 3 e 4 do artigo 12.º, com observância do formalismo previsto no artigo 12.º-A, nºs. 2 e 3, mas o recorrente não logrou provar que a notificação não chegou ao seu conhecimento, como, inequivocamente, decorre do elenco de factos considerados não provados, sendo certo que não impugnou a decisão sobre matéria de facto."

[MTS]