"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



31/10/2023

Jurisprudência 2023 (40)


Recurso de apelação;
regra da substituição*


1. O sumário de STJ 15/2/2023 (3848/18.6T8SNT.L1.S1) é o seguinte

I – Havendo o Tribunal de 1ª instância, quando do despacho saneador, decidido que não se verificava a excepção da caducidade do direito do A. e não tendo sido interposto recurso daquela decisão no prazo previsto na lei, a mesma transitou em julgado, encontrando-se definitivamente decidida no processo.

II – A expressão “preço devido” corresponde ao valor, em dinheiro, a pagar pelo A., preferente, como contrapartida da aquisição do imóvel, sem que sejam incluídas despesas de escrituras e de impostos.

III – Conferindo o nº 1 do art. 1555 do CC ao proprietário de prédio onerado com a servidão legal de passagem o direito de preferência no caso de venda do prédio dominante, o A., proprietário do prédio serviente, gozava de direito de preferência quando da venda do prédio (dominante) que foi concretizada entre os RR.; efectivamente, existia um encargo (a referida servidão legal) que recaía sobre o prédio do A. em benefício daquele outro prédio, restringindo o gozo efectivo do mesmo pelo A. – embora, paralelamente, existissem outros encargos que recaíam sobre o mesmo prédio do A. em benefício de outros quatro prédios.

IV - O encargo sobre o prédio onerado é imposto em proveito de outro prédio, (o que dá relevo á inerência da servidão aos prédios a que activa ou passivamente ela respeita); o prédio do A. encontra-se onerado com diversas servidões, cada uma delas imposta em proveito de cada um dos prédios dominantes – sendo proprietário do prédio onerado com qualquer daquelas servidões o A. tem direito de preferência no caso de venda de qualquer um dos prédios dominantes, em face da previsão do nº 1 do art. 1555.

V - Por via desta norma, face à venda concretizada entre os RR., assiste ao A. uma forma de desoneração do seu direito de propriedade, obtendo alguma compensação através da supressão dessa oneração e pondo-se fim aos eventuais conflitos advenientes daquela concreta servidão.

VI – Dos factos apurados não resulta que o A. actuou com abuso de direito, nomeadamente na modalidade de venire contra factum proprium.

VII - Resulta do nº 2 do art. 665 do CPC que poderá haver supressão de um grau de jurisdição relativamente a questão de que o tribunal recorrido não tenha conhecido por estar prejudicada pela solução por ele dada a outra questão; reconhecendo o Tribunal da Relação dispor da matéria de facto (já julgada) relativa ao pedido reconvencional, pedido esse que apenas não fora conhecido pelo Tribunal de 1ª instância porque considerado prejudicado, deveria o Tribunal da Relação aplicar o Direito aos factos apurados, no que concerne à reconvenção deduzida pela R..

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"IV – 6 – Decidiu o Tribunal da Relação, no acórdão recorrido: «Determinar o envio do processo para o Tribunal de 1.ª Instância onde deverá ser proferida decisão quanto às questões que foram julgadas prejudicadas com a decisão então proferida, que será complementar desta que acima se deixa expressa».

Consignando, a propósito:

«…no que se reporta à segunda questão acima enunciada, reportada à apreciação das benfeitorias realizadas pela 3.ª Ré no prédio em apreciação e ao seu possível reembolso por parte do aqui A./Apelante, entende-se que este Tribunal de recurso não deve socorrer-se do disposto no artigo 665.º do Código de Processo Civil Revisto proferindo, nesta matéria, decisão em substituição do Senhor Juiz do Tribunal de 1.ª Instância».

Aduzindo, para o efeito:

-  «…muito embora o processo contenha matéria de facto já julgada e fixada quanto ao pedido reconvencional deduzido pela 3.ª Ré, não foi proferida qualquer decisão de Direito quanto ao mesmo, que ficou prejudicada, em face da decisão proferida quanto ao pedido principal. A prolação de uma decisão neste momento relativamente a esta matéria reconvencional colocaria a 3.ª Ré numa situação de perda de um grau de jurisdição caso não se conformasse com a decisão que fosse agora proferida. Por outro lado, impediria que suscitasse a impugnação da própria matéria de facto fixada quanto a este ponto da decisão – direito que lhe assiste perante uma concreta decisão - e que, em face da primeira decisão proferida e aqui em recurso, não se lhe impunha impugnar».

- «… a interpretação a realizar ao abrigo do disposto no artigo 636.º, n.º 2, do CPC Revisto também não pode dar cobertura a outra interpretação, desde logo, porque a expressão que ali é utilizada quanto à possibilidade dessa ampliação situa-se na expressão “Pode” o que desde logo implicaria o entendimento de que se trata de uma faculdade e não de uma imposição».

- «…quanto a esta matéria da reconvenção, o processo deverá prosseguir os seus termos com a prolação de decisão pelo Senhor Juiz do Tribunal de 1.ª Instância que, em face da matéria de facto dada como Provada e Não Provada nos autos, aplicará o Direito que sobre a mesma incidir, proferindo uma decisão única e que será complementar desta que aqui foi já conhecida e decidida, respeitante ao direito de preferência».

Houve, todavia, uma declaração de voto, da qual consta:

«No tocante à reconvenção, a sentença entendeu prejudicada a sua apreciação face à improcedência da pretensão do Autor.

Assim sendo, julgada em suficiência a matéria de facto concernente, observado o contraditório, face ao disposto no artigo 665º do CPC, a situação ajuizada reclama o imediato conhecimento de mérito da reconvenção jacente por este tribunal de recurso, obviando à baixa dos autos à primeira instância para tal finalidade.

Essa parece-nos, s.d.r., traduzir a melhor interpretação daquele preceito em alinhamento com a teologia da regra da substituição, contraposta à regra cassatória, assegurado previamente o contraditório das partes por via do estatuído no nº3 do artigo 655º do CPC».

Para concluir:

«Nessa conformidade, s.d.r., após auscultação das partes sobre a matéria, evitando decisão surpresa, propugnaria pelo conhecimento do mérito da reconvenção por esta instância de recurso».

No recurso por si interposto, a R. DD, secundando o que consta da declaração de voto, defendeu que deveria ser tomado em consideração o disposto no nº 2 do art. 665 do CPC, nada obstando à apreciação pela Relação das benfeitorias realizadas pela recorrente, dispondo para o efeito aquele Tribunal dos elementos necessários.

Dispõem, respectivamente, os nºs 2 e 3 do art. 665 do CPC:

«2 - Se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários.

 3 - O relator, antes de ser proferida decisão, ouve cada uma das partes, pelo prazo de 10 dias».

Referem, a propósito, Lebre de Freitas, Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre ([No «Código de Processo Civil Anotado», vol. III, Almedina, 3ª edição, pág.. 185.]) que aquele nº 2 torna claro que pode haver supressão de um grau de jurisdição relativamente a questão de que o tribunal recorrido não tenha conhecido por estar prejudicada pela solução por ele dada a outra questão. Salientando que aquela supressão de um grau de jurisdição «só pode ocorrer no pressuposto de que do processo constam todos os elementos de prova necessários à nova decisão» - quando tal não aconteça, a Relação não pode substituir-se ao tribunal recorrido.

Abrantes Geraldes ([Na obra citada, pág.. 389.]) dá como exemplo de uma situação abrangida pelo nº 2 do art. 665, o juiz não ter conhecido do pedido reconvencional que considerou prejudicado pelo resultado declarado quanto ao pedido do autor; ainda que o reconvinte não tenha interposto recurso (uma vez que não podia considerar-se vencido), se a Relação revogar a sentença, com a procedência do pedido do autor, não poderá deixar de apreciar o pedido reconvencional «desde que toda a matéria de facto pertinente tenha sido apurada ou possa considerar-se apurada pelo confronto que se estabeleça entre as posições das partes ou os documentos apresentados».

A Relação considerou que o processo continha matéria de facto já julgada e fixada quanto ao pedido reconvencional deduzido pela R. DD, do que esta, recorrente, nas alegações do recurso interposto, não discorda, antes afirmando que a Relação dispunha para o efeito dos elementos necessários.

A Relação não se substituiu ao Tribunal de 1ª instância, quanto ao conhecimento do pedido reconvencional julgado prejudicado por este Tribunal, porque entendeu que tal colocaria a R. DD numa situação de perda de um grau de jurisdição, caso não se conformasse com a decisão que fosse proferida. Todavia, o nº 2 do art. 665 pressupõe, exactamente, a supressão de um grau de jurisdição e, estando tal previsto na lei, não nos parece que possa, sem mais, ser afastado.

O nº 2 do art. 636.º do CPC, também aludido no acórdão recorrido, é consentâneo com esta solução, permitindo que o recorrido (aqui a R. DD) quando do recurso de apelação, a título subsidiário, prevenindo a hipótese de procedência das questões suscitadas pelo apelante, tivesse impugnado a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto.

Para evitar decisões surpresa, impõe a lei, no nº 3 do art. 665, que antes de ser proferida decisão as partes sejam ouvidas.

Temos, pois, que deveria ter sido a Relação a aplicar o Direito aos factos apurados, no que concerne à reconvenção deduzida pela R. DD, ao invés de, como sucedeu, determinar que a 1ª instância proferisse uma decisão complementar no que respeita ao pedido reconvencional.

Antes de tal, há lugar à audição das partes, ao abrigo do disposto no nº 3 do art. 665 do CPC."

*3. [Comentário] Na parte que agora releva, o principal interesse do acórdão reside na aplicação pelas Relações da regra da substituição que consta do art. 665.º CPC. A verdade é que a regra, apesar de bem explícita na lei, nem sempre é observada na prática.

MTS