"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/10/2023

Jurisprudência 2023 (34)


Incidente de qualificação da insolvência;
decisão sobre custas; recorribilidade 


1. O sumário de STJ 15/12/2023 (1641/20.5T8AMT-C.P1.S1) é o seguinte:

I - O acórdão recorrido, divergiu do que havia sido decidido em 1ª instância, no que concerne a custas – sendo, precisamente, contra a condenação em custas que os recorrentes reagem, circunscrevendo o recurso a esse âmbito; à causa foi dado um valor superior à alçada do Tribunal da Relação, verificando-se o primeiro requisito de admissibilidade previsto no nº 1 do art. 629; no que concerne à sucumbência, colocar-se-ão dúvidas sobre se a decisão impugnada (a decisão sobre custas) será desfavorável aos recorrentes em valor superior a metade da alçada da Relação, mas não sendo essas dúvidas ultrapassáveis nas circunstâncias dos autos, face ao disposto na parte final do nº 1 do art. 629 do CPC, atenderemos somente ao valor da causa, pelo que consideramos recorrível a decisão.

II – Num incidente pleno de qualificação da insolvência serão devidas pela massa insolvente as custas que hajam de ficar a cargo da mesma, aquelas que sejam devidas na medida da respetiva sucumbência, atento o disposto no art. 527 do CPC aplicável por via do art. 17 do CIRE; a decisão que julgue o incidente condenará em custas a parte que a elas houver dado causa, a parte vencida na proporção que o for (ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito).

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Os recorrentes apoiam-se no disposto nos arts. 303 e 304 do CIRE (e, também, no art. 51 do mesmo Código), defendendo que no âmbito do processo de insolvência e seus incidentes, têm aplicação aqueles artigos e não as regras do art. 527 do CPC, sendo as custas do incidente a cargo da massa insolvente e só havendo lugar a tributação autónoma – fora do quadro dos ditos artigos – de «incidências adjectivas que saiam da tramitação que o legislador fixou como o rito sequencial regular do concurso, sendo que o incidente de qualificação da insolvência, está expressamente previsto no Artº 303, como um dos que hajam de ficar a cargo da massa, ainda que processados em separado».

Vejamos.

Dispõe o nº 1 do art. 527 do CPC que a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos, condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito; esclarecendo o nº 2 do mesmo artigo que se entende que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.

Comentam, a propósito, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (No «Código de Processo Civil Anotado», vol. II, Almedina, 3ª edição, pág.. 419.) que o «critério para determinar quem dá causa à ação, incidente ou recurso, prescinde, em princípio, de qualquer indagação autónoma: dá-lhe causa quem perde. Quanto à ação, perde-a o réu quando é condenado no pedido; perde-a o autor quando o réu é absolvido do pedido ou da instância. Quanto aos incidentes, paralelamente, é parte vencida aquela contra a qual a decisão é proferida: se o incidente for julgado procedente, paga as custas o requerido; se for rejeitado ou julgado improcedente, paga-as o requerente».

Por outro lado, o nº 1 do Regulamento das Custas Processuais dispõe estarem todos os processos sujeitos a custas, sendo que para efeitos do Regulamento se considera como processo autónomo, nomeadamente, cada acção, incidente ou recurso.

Encontrar-se-ão estas regras gerais limitadas ou, mesmo, afastadas, pelas normas específicas constantes do CIRE?

O art. 304 do CIRE, estabelece que as custas do processo de insolvência são encargo da massa insolvente ou do requerente, consoante a insolvência seja ou não decretada por decisão com trânsito em julgado – por si só, esta disposição harmoniza-se, sem dificuldade, com o que decorre do art. 527 do CPC.

Quanto ao art. 303 determina o seguinte: «Para efeitos de tributação, o processo de insolvência abrange o processo principal, a apreensão dos bens, os embargos do insolvente, ou do seu cônjuge, descendentes, herdeiros, legatários ou representantes, a liquidação do ativo, a verificação do passivo, o pagamento aos credores, as contas de administração, os incidentes do plano de pagamentos, da exoneração do passivo restante, de qualificação da insolvência e quaisquer outros incidentes cujas custas hajam de ficar a cargo da massa, ainda que processados em separado».

É neste preceito que, essencialmente, assenta a divergência dos recorrentes, considerando os mesmos que se trata de uma regra especial no que tange à responsabilidade por custas que, na sua articulação com o art. 304 do CIRE, leva a que os incidentes mencionados no art. 303 corram a cargo da massa insolvente (porque a insolvência foi decretada por sentença transitada em julgado).

A propósito, entendeu a Relação do Porto no seu acórdão de 18-11-2021 (Ao qual se poderá aceder em www.dgsi.pt, proc. 3828/20.1T8VNG.P1.): «Esta norma [o art. 303], salvo melhor opinião, não define um princípio de responsabilização pelas custas, estabelece um princípio de regra de incidência de custas. Não consente, por isso, a interpretação de que as custas nos incidentes, que estão expressamente contemplados na norma (e quaisquer outros), sejam sempre suportadas pela massa insolvente.

A norma define a base da tributação fixando que no processo estão abrangidos todos os incidentes e apensos quer os expressamente referidos quer «quaisquer outros incidentes cujas custas hajam de ficar a cargo da massa, ainda que processados em separado».

A redação do artigo 303º do CIRE, sob a epígrafe “base de tributação” remete, pois, para a noção de base tributável constante do artigo 11.º do RCP, norma que fixa a regra geral de que «A base tributável para efeitos de taxa de justiça corresponde ao valor da causa, com os acertos constantes da tabela i, e fixa-se de acordo com as regras previstas na lei do processo respetivo»».

Também a Relação de Guimarães, no acórdão de 9-7-2020 (Ao qual se poderá aceder em www.dgsi.pt, proc. 5712/19.2T8VNF-D.G1.), referindo-se à qualificação da insolvência, considerou que quando o incidente é aberto por impulso de um credor, não havendo qualquer actividade processual se o credor não o tivesse feito, as custas a fixar nessa decisão, não poderão ficar, inelutavelmente a cargo da massa insolvente. Concluindo:

«- se o incidente for procedente as custas finais ficam a cargo do (a) afectado (a), porque vencido (a) nos termos e último responsável pela lide (artº 527º, nº 1, do Código de Processo Civil);

- se o incidente for procedente mas tiver sido impulsionado por um particular que não beneficie de apoio judiciário, não esteja dispensado de proceder ao pagamento prévio da taxa de justiça, nem beneficie de qualquer isenção objectiva ou subjectiva de custas, aquele tem que pagar taxa de justiça e pode posteriormente reivindicar à parte vencida o seu pagamento em sede de custas de parte (arts. 25º, nº 1, e 26º, nº 1, do Regulamento das Custas Processuais);

- se o incidente for improcedente e não tiver sido impulsionado por um particular (antes pelo Senhor (a) administrador (a) da insolvência/Ministério Público, que não pagam taxa de justiça pela sua intervenção processual) as custas finais ficam a cargo da massa insolvente (arts. 303º e 304º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas);

- se o incidente for improcedente e tiver sido impulsionado por um particular que não beneficie de apoio judiciário, não esteja dispensado de proceder ao pagamento prévio da taxa de justiça, nem beneficie de qualquer isenção objectiva ou subjectiva de custas, aquele tem que pagar taxa de justiça e as custas finais ficam a seu cargo, por ser susceptível de ser responsabilizado a final pelo pagamento de custas (artº 527º, nº 1, do Código de Processo Civil).

Se assim não for, estamos a permitir que alguém impulsione uma lide indevidamente (como sucede no caso dos autos, pois que quer o (a) administrador (a) da insolvência quer o Ministério Público consideraram a insolvência fortuita) sem pagar qualquer taxa de justiça ou ser condenado em custas a final e obrigando ao funcionamento desnecessário da máquina judiciária…».

Igualmente a Relação de Coimbra, no acórdão de 13-11-2018 (Ao qual se pode aceder em www.dgsi.pt, proc. 306/17.0T8GRD-C.C1.) entendera que as custas no incidente de insolvência culposa estão sujeitas às regras do vencimento - art. 527 do CPC - devendo suportá-las o requerente que decaiu na pretensão.

Ali se dizendo, em face o art. 303 do CIRE: «Daqui resulta, pois, que nem todas as custas ficam a cargo da massa insolvente, de outro modo, não se compreenderia a referência que neste preceito é feita às “custas que hajam de ficar a cargo da massa” … o que implica, que, em regra de custas, também no âmbito dos processos de insolvência, devem prevalecer as regras do vencimento ou quem do processo tirou proveito, ou seja, o disposto no artigo 527.º, CPC, ex vi artigo 17.º do CIRE».

Aliás, já o STJ no seu acórdão de 29-4-2014 (Ao qual se pode aceder em www.dgsi.pt, proc. 919/12.6TBGRD.) expressara que «o processo de insolvência, na esteira do que se encontra legalmente estipulado para qualquer outro tipo de processo,  não é tendencialmente gratuito para os respectivos intervenientes, pois, existem regras especiais e específicas que afastam expressis verbis essa asserção, a começar por aquele artigo 303º do CIRE quando nos diz que para efeitos de tributação o processo de insolvência abrange todo o processado autónomo ali referenciado cujas custas tenham de ficar a cargo da massa, o que significa que não são todas e quaisquer custas que estarão a cargo da massa, mas apenas aquelas que esta haja de suportar e a massa insolvente só suportará as custas na medida da sua sucumbência, por força das disposições processuais gerais aqui aplicáveis subsidiariamente, ex vi do artigo 17º do CIRE que para elas nos remete».

Sendo que, recentemente, decidiu este Supremo Tribunal, no acórdão de 20-12-2022 (Ao qual se pode aceder em www.dgsi.pt, proc. 860/13.5TYVNG-BC.P1.S1.): «…não suscita dúvidas que o processo de insolvência está sujeito a custas como avulta do disposto nos artigos 301 a 304, do CIRE, destacando, até porque a Recorrente os refere, o consignado no art.º 303: “Para efeitos de tributação, o processo de insolvência abrange o processo principal, a apreensão de bens, os embargos do insolvente, ou do seu cônjuge, descendentes, herdeiros, legatários ou representantes, a liquidação do ativo, a verificação do passivo, o pagamento aos credores, as contas de administração, os incidentes do plano de pagamentos, da exoneração do passivo restante, de qualificação da insolvência e quaisquer outros incidentes cujas custas hajam de ficar a cargo da massa, ainda que processados em separado”, e o art.º 304: “As custas do processo de insolvência são encargo da massa insolvente ou do requerente, consoante a insolvência seja ou não decretada por decisão com trânsito em julgado.”.

O enunciado não autoriza que se entenda que no processo de insolvência, para os possíveis intervenientes o processo possa ser gratuito, ou mesmo tendencialmente desonerado de custas, suportando a massa insolvente todas as custas contabilizadas.

Tal obsta o expressamente constante do texto legal quando reporta que apenas são devidas pela massa insolvente as que hajam de ficar a cargo da mesma, isto é apenas deve suportar as que sejam devidas na medida da respetiva sucumbência, com o necessário reporte às normas processuais gerais, constantes do art.º 527, do CPC, ex vi art.º 17, do CIRE, isto é, como já se aludiu, a decisão que julgue uma ação, incidente ou recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, a parte vencida na proporção que o for, ou não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.

Considerando-se que este entendimento é o que melhor se coaduna com o sistema de responsabilidade por custas, não resulta o mesmo perturbado pelo constante no art.º 304, do CIRE, cuja interpretação não pode ser realizada autonomamente, mas sim integrada na demais ordem jurídica, na exigência de harmonia e afastamento de contradições, que de modo necessário verificar-se-iam, numa possível excecionalidade, não só se opondo ao princípio geral em sede de custas, mas também ao art.º 303, do CIRE, que assim carecia de utilidade».

O que transcrevemos leva-nos a concluir que os arts. 303 e 304 do CIRE são harmonizáveis, sem dificuldade, com a previsão do art. 527 do CPC, não afastando o que este dispõe – para isso nos remete a expressão “incidentes cujas custas hajam de ficar a cargo da massa” no art. 303; no próprio teor do art. 304 se manifesta o princípio da causalidade (na expressão “consoante a insolvência seja ou não decretada”).

Serão devidas pela massa insolvente as custas que hajam de ficar a cargo da mesma, por outras palavras as que sejam devidas na medida da respetiva sucumbência, atento o disposto no art. 527 do CPC, aplicável por via do art. 17 do CIRE; deste modo, a decisão que julgue algum incidente ou recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, a parte vencida na proporção que o for, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito."

[MTS]