"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/10/2023

Jurisprudência 2023 (30)


Inventário; relação superveniente de bens;
contraditório*


1. O sumário de RE 9/2/2023 (558/20.8T8PTM-A.E1) é o seguinte:

Tendo o cabeça-de-casal, na resposta à reclamação de bens, aditado novos bens à relação de bens inicialmente apresentada, não resultando tal aditamento da reclamação apresentada e tendo tal aditamento sido admitido nos autos, assiste à interessada reclamante o direito de apresentar requerimento onde se pronuncia sobre o referido aditamento.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Estamos perante um processo de inventário para partilha de bens do extinto casal, ao qual se aplica o regime do processo de inventário aprovado pela Lei n.º 117/2019, de 13-09, encontrando-se a respetiva tramitação inserida no Código de Processo Civil (CPC).

As normas que regulam este tipo de inventário encontram-se enunciadas no artigo 1084.º, aí se definindo que ao inventário destinado a fazer cessar a comunhão hereditária se aplica o disposto no capítulo II (integrado pelos artigos 1097.º a 1130.º) e que aos inventários destinados à realização dos demais fins previstos no artigo 1082.º se aplica o disposto no capitulo III (composto pelos artigos 1131.º a 1135.º, aplicáveis, concretamente, aos casos de justificação de ausência, à separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação do casamento e a separação de bens em casos especiais) e, subsidiariamente, em tudo o que não esteja aí especialmente previsto, as disposições integrantes do capítulo II, reguladoras do inventário destinado a fazer cessar a comunhão hereditária (cfr. artigos 1082.º, alínea d), 1084.º, n.º 2, todos do CPC).

Não cabendo na economia deste acórdão escalpelizar as inovações introduzidas pelo legislador em relação ao processo de inventário, é mister mencionar que o legislador reforçou os «poderes inquisitórios e de direção e gestão processual do Juiz, que resulta desde logo dos princípios gerais constantes do CPC, os quais passaram a ser diretamente aplicáveis ao processo de inventário, a partir do momento em que este passou a integrar aquele código.

No processo de inventário este reforço do inquisitório e dos poderes de direção e gestão processual do juiz mostra-se explicitamente acolhido, entre outras, nas normas constantes dos artigos 1105.º, n.º 4 (possibilidade de realização oficiosa de quaisquer diligências probatórias antes da decisão de saneamento), 1109.º (decisão acerca da utilidade ou necessidade de convocação de conferência prévia), 1110.º (saneamento do processo e marcação de conferência de interessados, com particular relevância para a prolação de despacho sobre o modo como deve ser organizada a partilha), 1118.º, n.º 3 (possibilidade de determinação oficiosa da avaliação de bens no incidente de inoficiosidade) e 1120.º (organização do mapa de partilha), cabendo-lhe solucionar as divergências que existam entre as várias propostas do mapa de partilha (artigo 1120.º, n.º 2, e, finalmente, proferir decisão sobre os aspetos ainda controversos entre as partes quanto ao projeto de mapa de partilha, objeto de eventuais reclamações. (artigo 1120.º, n.º 5).» [PEDRO PINHEIRO TORRES, Notas Breves de Apresentação do Processo de Inventário na Redação dada pela Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, in Cadernos do CEJ, Inventário: O Novo Regime, Maio 2020, p. 20-21, [...]].

Mas também introduziu regras de preclusão e de concentração no que diz respeito à alegação das questões relevantes e demonstração probatória do alegado, incrementando, assim, a autorresponsabilidade das partes na prática dos atos processuais (cfr. artigos 1097.º e 1099.º do CPC).

Em relação ao princípio da concentração, o legislador procurou concentrar os meios de defesa dos interessados (oposição, impugnação e reclamação), fixando o prazo de 30 dias, contados desde a citação para os termos da ação, estabelecendo o artigo 1104.º que, nesse prazo, deve ser deduzida oposição ao inventário, impugnar-se a legitimidade dos interessados citados ou alegar a existência de outros, impugnar a competência do cabeça de casal ou as indicações constantes das suas declarações e apresentar reclamação à relação de bens ou impugnar os créditos e as dívidas da herança.

No que diz respeito à relação de bens, prescreve o referido artigo 1104.º, n.º 1, alínea e), do CPC, que o interessado pode apresentar reclamação à relação de bens, prescrevendo o artigo 1105.º a sequência da tramitação da reclamação, ou seja, notifica-se a reclamação ao cabeça-de-casal, cabendo ao mesmo apresentar a respetiva resposta também no prazo de 30 dias.

Segue-se, no figurino da lei, a realização de prévias diligências probatórias que couberem ao caso, requeridas ou ordenadas oficiosamente (n.º 3, do referido artigo 1105.º), a eventual realização de uma conferência prévia (artigo 1109.º) ou o saneamento do processo (artigo 1110.º), decidindo-se, então, as questões suscitadas pelas partes (incluindo os eventuais incidentes), devendo ser elaborado um despacho, cuja finalidade e conteúdo decorre das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 1110.º do CPC, devendo o juiz, nesse despacho, resolver todas as questões suscetíveis de influenciarem a partilha e a determinação dos bens a partilhar, ordenando a notificação dos interessados (e do Ministério Público, sendo o caso) para, querendo, proporem a forma à partilha, designando dia para a conferência de interessados, seguindo-se a demais tramitação processual prevista nos artigos 1111.º e ss.

Esta tramitação evidencia, como faz notar LOPES DO REGO, que «(…) toda a defesa (incluindo a contestação quanto à concreta composição do acervo hereditário, ativo e passivo) deve ser deduzida no prazo de que os citados beneficiam para a contestação/oposição, só podendo ser ulteriormente deduzidas as exceções e meios de defesa que sejam supervenientes (isto é, que a parte, mesmo atuando com a diligência devida, não estava em condições de suscitar no prazo da oposição, dando origem à apresentação de um verdadeiro articulado superveniente), que a lei admita expressamente passado esse momento (como sucede com a contestação do valor dos bens relacionados e o pedido da respetiva avaliação, que, por razões pragmáticas, o legislador admitiu que pudesse ser deduzido até ao início das licitações) ou com as questões que sejam de conhecimento oficioso pelo tribunal.

Daqui decorre, por exemplo, que as reclamações contra a relação de bens tenham de ser necessariamente deduzidas, salvo demonstração de superveniência objetiva ou subjetiva, na fase das oposições – e não a todo o tempo, em termos idênticos à junção de prova documental, como parecia admitir o art. 1348.º, n.º 6, do anterior CPC [A Recapitulação do Inventário, Julgar on line, Dezembro 2019, p. 12 e 13.]

Na tramitação assim sucintamente enunciada, não se encontra contemplada a situação que os presentes autos revelam.

Efetivamente, após a resposta do cabeça-de-casal à reclamação da interessada, não prevê a lei que haja qualquer resposta por parte da reclamante.

Mas a lei também não prevê que, na resposta à reclamação, para além do cabeça de casal se pronunciar sobre a reclamação (aceitando ou não os seus termos) venha a aditar novos bens ao ativo ou passivo, que não decorram da reclamação apresentada, com o fundamento que, entretanto, detetou outros bens e direitos que devem ser relacionados.

O princípio da concentração e da autorresponsabilidade das partes também funciona em relação à apresentação da relação de bens que, na perspetiva das novas regras, deve funcionar como uma verdadeira petição inicial, pelo que os aditamentos só serão justificados, tal como ocorre com a oposição e a alegação de impugnação ou exceções por parte dos interessados, se tiverem natureza objetiva ou subjetivamente superveniente, devendo ser tramitados através de requerimento próprio para esse efeito.

Ora, no caso, o cabeça de casal não seguiu tal rito processual, sendo que a alegação que fez para justificar o aditamento posterior da relação de bens também não se encontra fundamentada de modo a poder aferir-se da razão de só ter detetado a existência de outros bens após a apresentação da relação de bens e na fase da resposta à reclamação.

Importando sublinhar que é o próprio cabeça de casal que reconhece que se trata de um aditamento à relação de bens de bens móveis e créditos que o mesmo reclama sobre a interessada e que tal não decorre da aceitação da reclamação apresentada.

Donde é inevitável interpretar-se a resposta do cabeça de casal com um conteúdo que extravasa o da resposta legalmente prevista no artigo 1105.º, n.º 1, do CPC.

Ora, não se pode coartar à interessada o direito de se pronunciar sobre esse aditamento, não só porque assim o impõe, de forma genérica, o artigo 3.º, n.º 3, do CPC, que consagra o princípio do contraditório, como também se impõe em face do disposto no artigo 1104.º, n.º 1, alínea d), do mesmo diploma, onde se contempla o direito do interessado reclamar contra a relação de bens, preceito que não pode deixar de ser interpretado no sentido de esse direito também lhe assistir quando ocorre um aditamento à relação de bens inicialmente apresentada.

Sobretudo porque esse aditamento foi admitido pelo tribunal nos termos em que foi apresentado, o que resulta do despacho que foi proferido na sequência e na mesma data do despacho recorrido, designando dia para uma audiência prévia com vista à obtenção de um acordo sobre a inclusão ou exclusão de bens controvertidos, bem como sobre o valor dos bens a aditar, havendo consenso, ali expressamente se mencionado que deve ser tida em conta a «reclamação apresentada e respectiva resposta», o que evidencia que estará em apreciação o aditamento que consta da resposta à reclamação.

E sendo assim, é incontornável que tem de ser dado cumprimento ao princípio do contraditório de modo a facultar à interessada o direito de se pronunciar sobre esse aditamento.

O princípio do contraditório e o princípio da igualdade das partes impõem essa conclusão, sendo que o tribunal a quo, no âmbito dos seus poderes de gestão processual e de adequação, tem o poder-dever de providenciar pelo cumprimento daqueles princípios constitucionalmente consagrados (artigos 3.º, n.º 3, 4.º, 6.º, n.º 1 e 547.º, do CPC, e artigo 20.º da CRP).

Acrescenta-se, ainda, que não decorre do despacho recorrido que o tribunal a quo tenha perspetivado o direito à pronúncia da interessada na fase da audiência prévia que designou (o que, eventualmente, poderia ocorrer ao abrigo dos artigos 3.º, n.º 4, e 1109.º, n.º 1, do CPC), pois, ao invés, o despacho recorrido acentua que o requerimento ordenado desentranhar não tem cabimento legal, correspondendo a um ato não permitido por lei, o que parece indicar que, no modo como o tribunal a quo interpretou a sequência processual de atos praticados pelas partes, não haveria de todo lugar à pronúncia da interessada.

O que, salvo o devido respeito, não se pode sufragar pelas razões sobreditas, pelo que se impõe a revogação do despacho recorrido, ordenando-se, outrossim, que o requerimento da interessada que foi mandado desentranhar seja mantido nos autos, levando-se o mesmo em consideração na decisão que venha a ser proferida sobre a reclamação de bens."

*3. [Comentário] A RE decidiu bem.

Na matéria de facto assente afirma-se que, "no ponto V da resposta à reclamação, o cabeça de casal fez constar o seguinte: «O Cabeça de Casal, durante o período que mediou, entre a junção da Relação de Bens e a presente Resposta à Reclamação de bens, efetuada pela Interessada, detetou a existência de outros bens a serem relacionados, assim como direitos de crédito que detém, relativamente à interessada [...]". Deste modo, não teria custado aplicar à situação o regime dos articulados supervenientes (art. 588.º s. CPC).

MTS