"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



02/10/2023

Jurisprudência 2023 (21)


Presunção judicial;
funcionamento*


1. O sumário de RE 25/1/2023 (794/20.7T8LAG.E1) é o seguinte:

I. A prova indireta de determinados factos, por via das regras da experiência comum, desde que assente em factos provados que os suportem, não é vedada por lei, nem corresponde a raciocínios meramente especulativos, nada impedindo que os tribunais façam assentar os seus juízos valorativos naquelas máximas da experiência por via das chamadas presunções judiciais previstas nos artigos 349.º e 351.º do Código Civil.

II. Considerando que temos como factos conhecidos (e provados) que a viatura que caiu na falésia tinha como condutora CC, que andava sozinha a passear na zona de Lagos e Sagres; tendo a queda ocorrido junto ao Forte de Beliche, em Sagres; que a viatura foi vista a cair na falésia devagar, na zona onde o existe um estacionamento de terra batida; que o dito estacionamento junto do limite da falésia é protegido por um muro e uma cerca de madeira; que a queda da viatura se deu quando esta tinha a chave na ignição na posição de ligada e o travão de mão acionado para cima, na posição de travado, podemos inferir por via de presunção judicial, face às regras da experiência e com um grau de probabilidade elevadíssimo, o facto desconhecido, ou seja, que foi a condutora do veículo, a infeliz CC, quem ligou a ignição da viatura e acionou o travão, tendo a viatura se despenhado na falésia quando a condutora se encontrava dentro e ao comando da mesma, o que lhe causou os traumatismos donde sobreveio a morte, os quais foram direta e exclusivamente causados pela queda do veículo.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"C- De Direito

A Apelante vem impugnar a decisão de facto em relação aos pontos 21 e 22 dos factos provados alegando ter existido erro de julgamento por das provas produzidas não ter resultado provado, com certeza e objetividade necessárias e imprescindíveis à boa decisão da causa, que «CC estava no interior da viatura aquando do despiste pela falésia no forte do Beliche, em Sagres, e que a morte da mesma resultou direta e exclusivamente da queda da referida viatura automóvel. Nada indicia sequer, e muito menos constitui prova, a existência de um acidente de viação de que resultou a morte da CC». [...]

A Apelante não fundamenta a impugnação numa errada perceção por parte do Tribunal a quo do teor dos depoimentos das testemunhas que menciona, mas sim, como já dito, na errada valoração dos mesmos, ou seja, no processo lógico dedutivo subjacente à análise crítica do valor probatório de tais depoimentos.

Também não está em causa a valoração que a 1.ª instância fez em relação àquilo que chamou processo dinâmico que culminou na queda do veículo e morte de CC, pois tais factos encontram-se dados como não provados sem oposição da recorrente (cfr. alíneas e) e f) dos factos não provados).

Da análise crítica e ponderada de todos os depoimentos prestados e documentos juntos aos autos, formou-se uma convicção própria com base no sentido evidenciado pelas provas à luz das regras da lógica e da experiência comum.

No caso, não há prova direta que nos diga com toda a segurança e certeza que CC se encontrava no interior da viatura aquando da queda desta na falésia junto ao Forte de Beliche e que a morte resultou direta e necessariamente dessa queda, pois ninguém presenciou o acontecimento na sua plenitude.

Ou seja, GG e HH, casal que estava na zona e se apercebeu da queda do veículo, dando o alerta imediatamente às autoridades, quando ouvidos em sede de investigação da Polícia Judiciária, disseram que estavam no interior da sua autocaravana quando ouviram o barulho de um impacto na vedação de madeira existente no local e que, quando olharam para o exterior, apenas viram a traseira de uma viatura branca que, derrubando aquela vedação de madeira, se despenhava pela falésia, não conseguindo ver se estava alguém dentro do veículo, embora não tivessem visto qualquer outra pessoa ou veículo no local (cfr. Relatório da Polícia Judiciária – doc. 13 junto com a p.i.).

Todos as demais intervenções com vista ao apuramento dos factos e diligências realizadas para apuramento do sucedido, são posteriores ao momento da queda do veículo.

Porém, as averiguações e conclusões da Polícia Judiciária exaradas no referido Relatório e o depoimento do Inspetor que dirigiu as investigações e elaborou o Relatório, não podem ser desconsideradas nos termos avançados pela Apelante, pois assentam na experiência de um profissional altamente qualificado e experiente em termos de investigação, bem como na análise que o mesmo fez dos factos investigados e seguramente apurados e, ainda, dos indícios e ilações que retirou dos mesmos em relação aos factos que foi impossível apurar diretamente.

Investigação que, [em] primeiro lugar, levou-o à conclusão [de] que não se tratava de uma ação criminosa e, em segundo lugar, [de] que não se tratava de um ato voluntário (suicídio), mas de um infeliz acidente, que ocorreu quando a condutora se encontrava dentro do veículo, tendo o mesmo resvalado e se despenhado na falésia.

E na perceção e análise que temos dos factos, também se nos afigura que as regras da experiência, da lógica e da normalidade das coisas, indicam de forma que temos por minimamente credível e segura, que a infeliz CC se encontrava dentro da viatura quando a mesma se despenhou na falésia.

Desde logo, se estivesse fora da viatura, teria de ter sido vista pelas referidas testemunhas GG e HH, que são as pessoas que se encontravam no local no momento exato da queda do veículo, tanto assim que ainda viram a parte de trás do carro a cair, de forma lenta, tendo ouvido imediatamente antes o barulho do impacto do veículo na vedação.

Ora, é totalmente contra as regras da experiência supor que CC estava fora da viatura e não foi vista ou se deu a mostrar às pessoas que estavam no local e muito menos que antes da viatura se despenhar tenha caído (voluntariamente ou involuntariamente) na falésia e o carro, só por si, e ainda por cima com o travão de mão acionado, se tenha despenhado.

Acresce que a queda lenta do veículo mencionada por estas pessoas indicia, como bem referenciou a testemunha DD, que a manobra que determinou a queda não teve a intensidade que seria de esperar se houvesse intencionalidade de despenhar o veículo.

O acionamento do travão de mão é incompatível com tal possibilidade e indicia, outrossim, que a queda do veículo ocorreu apesar de ter sido acionado o mecanismo de travagem da viatura. Não estando provado (nem sequer alegado) que o veículo tinha um sistema de travagem automática do travão de mão, a conclusão inevitável é que foi acionado manualmente pela pessoa que se encontrava dentro do veículo.

Por outro lado, a testemunha EE, bombeiro, que foi o primeiro a chegar ao local onde a viatura ficou após a queda, disse que a chave da viatura estava na ignição e o travão de mão acionado, o que comprova que a viatura estava ligada aquando da queda, o que vai de encontro ao dito por GG e HH que declararam em sede de investigação da PJ que a viatura tinha as luzes ligadas aquando da queda.

Todo este circunstancialismo, confirma, a nosso ver, que a condutora estava dentro da viatura e a mesma se encontrava em condições de iniciar a marcha.

Aliadas estas circunstância ao depoimento da testemunha FF, ex-namorada da falecida, cuja relação durou cerca de oito anos (portanto, conhecia muito bem a falecida), que declarou que a mesma era uma «condutora ruim», que normalmente conduzia veículos automóveis com mudanças automáticas e que tinha dificuldades em meter a marcha atrás quando os carros tinham mudanças manuais, fica traçado um quadro circunstancial que indicia uma muito alta probabilidade da queda da viatura na falésia decorrer de um ato involuntário da condutora quando se encontrava ao comando da mesma.

Não vemos que haja outra maneira de ver este evento a não ser que se aventem cenários muito ou altamente improváveis, sem qualquer apoio nos factos apurados.

A prova indireta de determinados factos, por via das regras da experiência comum, desde que assente em factos provados que os suportem, não é vedada por lei, nem corresponde a raciocínios meramente especulativos, nada impedindo que os tribunais façam assentar os seus juízos valorativos naquelas máximas da experiência por via das chamadas presunções judiciais previstas nos artigos 349.º e 351.º do Código Civil.

Efetivamente, e como a jurisprudência tem assinalado, as regras da experiência embora não sejam, em face da nossa lei, meios de prova, são critérios de julgamento, subordinadas à razão e à lógica, sendo aplicáveis na resolução de questões de facto, fortalecendo o princípio da livre apreciação da prova e da descoberta da verdade material.

Nesse sentido, assinala o STJ, «(…) as regras da experiência não são meios de prova, instrumentos de obtenção de prova, mas antes raciocínios, juízos hipotéticos de conteúdo genérico, assentes na experiência comum, independentes dos casos individuais em que se alicerçam, com validade, muitas vezes, para além da hipótese a que respeitem, permitindo atingir continuidades, imediatamente, apreensivas nas correlações internas entre factos, conformes à lógica, sem incongruências para o homem médio e que, por isso, legitimam a afirmação de que dado facto é a natural consequência de outro, surgindo com toda a probabilidade forte, próxima da certeza, sem receio de se incorrer em injustiça, por não estar contaminado pela possibilidade física, mais ou menos arbitrária, impregnado de impressões vagas, dubitativas e incredíveis.» [Ac. STJ, de 06-07-2011, proc. n.º 3612/07.6TBLRA.C2.S1 (Hélder Roque), em www.dgsi.pt]

O STJ, no acórdão proferido em 06-10-2010, enuncia em que termos as regras da experiência e as presunções judiciais relevam em sede probatória, lendo-se no seu sumário:

«XI - A noção de presunção (noção geral, prestável como definição do meio ou processo lógico de aquisição de factos (…) consta do art. 349.º do CC. Importam, neste âmbito, as chamadas presunções naturais ou hominis, que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido. As presunções naturais são, afinal, o produto das regras de experiência: o juiz, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto.

XII - Em formulação doutrinariamente bem marcada e soldada pelo tempo, as presunções devem ser «graves, precisas e concordantes». «São graves, quando as relações do facto desconhecido com o facto conhecido são tais, que a existência de um estabelece, por indução necessária, a existência do outro. São precisas, quando as induções, resultando do facto conhecido, tendem a estabelecer, directa e particularmente, o facto desconhecido e contestado. São concordantes, quando, tendo todas uma origem comum ou diferente, tendem, pelo conjunto e harmonia, a firmar o facto que se quer provar».

XIII - A presunção permite, deste modo, que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerumque accidit) certos factos são a consequência de outros. No valor da credibilidade do id quod, e na força da conexão causal entre dois acontecimentos, está o fundamento racional da presunção, e na medida desse valor está o rigor da presunção.

XIV - A consequência tem de ser credível; se o facto base ou pressuposto não é seguro, ou a relação entre a base e o facto adquirido é demasiado longínqua, existe um vício de raciocínio que inutiliza a presunção.

XV - Deste modo, na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido, têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido.

XVI - A presunção intervém, assim, quando as máximas da experiência da vida e das coisas, baseadas também nos conhecimentos retirados da observação empírica dos factos, permitem afirmar que certo facto é a consequência típica de outros.» [O Acórdão foi proferido no proc. n.º 936/08.JAPRT (Henriques Gaspar), disponível em www.dgsi.pi, no âmbito de um processo penal, mas os princípios enunciados são os mesmos para o processo civil.]

No caso em apreço, é essa a situação que se nos apresenta em face dos factos apurados, ou seja, considerando que temos como factos conhecidos (e provados) que a viatura que caiu na falésia tinha como condutora CC, que andava sozinha a passear na zona de Lagos e Sagres; tendo a queda ocorrido junto do Forte de Beliche, em Sagres; que a viatura foi vista a cair na falésia devagar, na zona onde o existe um estacionamento de terra batida; que o dito estacionamento junto do limite da falésia é protegido por um muro e uma cerca de madeira; que a queda da viatura se deu quando esta tinha a chave na ignição na posição de ligada e o travão de mão acionado para cima, na posição de travado, podemos inferir por via de presunção judicial, face às regras da experiência e com um grau de probabilidade elevadíssimo, o facto desconhecido, ou seja, que foi a condutora do veículo, a infeliz CC, quem ligou a ignição da viatura e acionou o travão, tendo a viatura se despenhado na falésia quando a condutora se encontrava dentro e ao comando da mesma, o que lhe causou os traumatismos donde sobreveio a morte, os quais foram direta e exclusivamente causados pela queda do veículo."

*3. [Comentário] Não se discorda da solução dada no acórdão, mas, salvo melhor opinião, os factos probatórios que justificam a presunção judicial talvez sejam outros. Com efeito, a presunção de que a condutora se encontrava no interior do veículo resulta dos seguintes factos probatórios:

-- O automóvel da condutora despenhou-se numa falésia junto do Forte do Beliche, em Sagres;

-- O cadáver da condutora foi encontrado numa praia localizada entre as praias do Telheiro e da Ponta Ruiva, em Sagres.

Efectivamente, a explicação mais plausível para a condutora se encontrar no interior do veículo (facto desconhecido) é o facto de o seu corpo ter sido encontrado numa praia próxima da falésia na qual esse veículo se despenhou (facto conhecido)  Quer dizer: do facto de o corpo da condutora ter aparecido numa praia perto do local onde o veículo de despenhou pode presumir-se que a condutora se encontrava no interior desse veículo, dado que a melhor explicação para esse aparecimento próximo do local do despenhamento é a de que a condutora estava no interior do veículo.

Como é óbvio, se o corpo da condutora tivesse sido encontrado num terreno agrícola perto de Faro, já não se poderia concluir que a melhor explicação para o aparecimento do corpo nesse terreno seria a condutora encontrar-se, no momento do despenhamento, no interior do veículo.   

MTS