"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



12/10/2023

Jurisprudência 2023 (27)


Venda em leilão electrónico;
nulidade processual; invocação; legitimidade*


I. O sumário de RE 9/2/2023 (444/13.8TBETZ-D.E1) é o seguinte:

1- O anúncio de venda dos bens em leilão eletrónico deve conter quaisquer informações relevantes, designadamente, os ónus ou encargos que incidam sobre o bem e que não caduquem com a venda.

2- O contrato de arrendamento, na medida em que sujeita o bem arrendado a uma situação fora da disponibilidade do respetivo proprietário, devido ao seu carácter vinculístico, traduz-se num verdadeiro ónus e, como tal, está sujeito ao regime previsto no artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil, na parte em que consagra uma exceção à regra de que os bens judicialmente vendidos são transmitidos livres de quaisquer encargos.

3- O arrendamento deve, por isso, figurar no anúncio público de venda.

4- Por força do artigo 838.º, n.º 1, do CPC, o comprador, principal interessado no conhecimento do ónus, pode pedir a anulação da venda que o não publicite.

5- O ato de venda pode ainda ser anulado, por outros interessados, nos termos do artigo 195.º do CPC, quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.

6- A falta de indicação da existência de um arrendamento a onerar o imóvel em venda é, objetivamente, suscetível de influir no exame ou na decisão da causa, porque pode viciar o valor de proposta de compra.

7- Tendo o remidor um interesse legítimo na repetição do ato, por ter perdido a possibilidade de remir por um valor eventualmente inferior, se o bem tivesse sido publicitado como onerado.

8- Mas já não os executados porque o interesse destes é tão só o de evitar a saída do bem do âmbito familiar, o que lograram com a remissão [sic] exercida por um descendente que se conformou com a nulidade.


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Pretendem os Executados que a falta de indicação da existência de um contrato de arrendamento a onerar o imóvel a vender condicionou as propostas de venda, influenciando o resultado final das licitações, pois que a existência de um arrendamento influencia negativamente o valor de mercado dos prédios.

Logo, dizem, a falta da indicação desse ónus prejudica não só os direitos do potencial comprador, mas, de igual modo, o direito de remição que possa vir a ser exercido (como o foi) pela sua filha.

Sugerindo terem legitimidade para essa arguição com fundamento em que o direito de remição visa proteger a esfera patrimonial dos executados, uma vez que, nos termos do artigo 842.º do Código de Processo Civil, é possível reverter a venda de bem adjudicado ou vendido em processo de execução, o qual, virá a ficar por essa via na esfera patrimonial da relação familiar dos Executados.

Considerando a finalidade do direito de remição como sendo a de proteção da família, de preservação do património familiar evitando a saída dos bens, aos executados assistirá legitimidade para a presente arguição.

Vejamos, pois. [...]

Nos termos do preceituado no artigo 837.º do CPC, a venda de imóveis é feita preferencialmente em leilão eletrónico, nos termos da Portaria n.º 282/2013, de 29/08, em cujo preâmbulo se realça a razão de ser desta opção:

“As vantagens do leilão eletrónico são claras, permitindo obter a máxima transparência do ato de venda e criar as condições para a valorização máxima dos bens, ao mesmo tempo que se obtém maior celeridade na tramitação. São, por esta via, beneficiados todos agentes processuais e a generalidade dos potenciais interessados na aquisição dos bens, à semelhança do que tem sucedido nas execuções fiscais.”

Dispõe o artigo 19.º da referida Portaria, respeitante à publicidade, o seguinte:

«Anúncio eletrónico

1 - A venda dos bens penhorados é publicitada, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 817.º do Código de Processo Civil, através de anúncio na página informática de acesso público, na Área de Serviços Digitais dos Tribunais, acessível no endereço eletrónico https://tribunais.org.pt.

2 - O anúncio contém:

a) A identificação do processo de execução;

b) O nome do executado;

c) A identificação do agente de execução;

d) As características do bem;

e) A modalidade da venda;

f) O valor para a venda;

g) O dia, hora e local de abertura das propostas;

h) O local e horário fixado para facultar a inspeção do bem;

i) Menção, sendo caso disso, ao facto de a sentença que serve de título executivo estar pendente de recurso ou de oposição à execução ou à penhora.

3 - O anúncio deve ainda conter quaisquer outras informações relevantes, designadamente ónus ou encargos que incidam sobre o bem, e que não caduquem com a venda, bem como, sempre que possível, fotografia que permita identificar as características exatas do bem e o seu estado de conservação.»

O contrato de arrendamento, na medida em que sujeita o bem arrendado a uma situação fora da disponibilidade do respetivo proprietário, devido ao seu carácter vinculístico, traduz-se num verdadeiro ónus e, como tal, está sujeito ao regime previsto no artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil, na parte em que consagra uma exceção à regra de que os bens judicialmente vendidos são transmitidos livres de quaisquer encargos.

Indiscutível é, assim, que tal ónus deveria ter figurado no anúncio público de venda.

Prevê a lei, no artigo 838.º, n.º 1, do CPC, que:

«Anulação da venda e indemnização do comprador

1 - Se, depois da venda, se reconhecer a existência de algum ónus ou limitação que não fosse tomado em consideração e que exceda os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, ou de erro sobre a coisa transmitida, por falta de conformidade com o que foi anunciado, o comprador pode pedir, na execução, a anulação da venda e a indemnização a que tenha direito, sem prejuízo do disposto no artigo 906.º do Código Civil.»

Desse modo, o comprador, principal interessado no conhecimento do ónus, pode pedir a anulação da venda que o não publicite.

Nos termos do artigo 839.º, n.º 1, alínea c), a venda fica, igualmente, sem efeito:

«Se for anulado o ato da venda, nos termos do artigo 195.º»

O artigo 195.º do CPC estabelece as regras gerais sobre a nulidade dos atos.

Assim, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa (n.º 1).

A falta cometida – omissão dum ónus persistente – é objetivamente suscetível de influir no exame ou na decisão da causa, porque pode viciar o valor de proposta de compra.

Questão diferente é se os executados têm legitimidade para a invocar.

Não configurando o caso em apreciação uma nulidade de conhecimento oficioso (artigo 196.º, a contrario), importa recorrer ao disposto no artigo 197.º, sob o título: “Quem pode invocar e a quem é vedada a arguição da nulidade”, para apurar se os executados podem ser considerados “interessado(s) “na observância da formalidade ou na repetição ou eliminação do ato.

Entendeu o tribunal a quo que:

“Ora, independentemente do reconhecimento pela Sra. Agente de Execução de que efetivamente o imóvel em questão se encontra arrendado a um terceiro e de essa menção não ter sido feita constar do anúncio que publicitou a venda, a verdade é que isso não constitui nulidade que aos executados seja lícito invocar. De resto até é curioso que o façam (ou talvez não, uma vez que, entretanto, se apresentou uma filha dos executados a pretender remir), já que para os potenciais interessados na aquisição o conhecimento desse ónus eventualmente importará uma desvalorização do bem. E naturalmente que isso não aproveita, nem ao credor, nem sobretudo aos devedores, que, como é óbvio quererão obter o melhor valor que for possível. (…)

A não consubstanciar nulidade alguma expressamente prevista na lei, a omissão, no anúncio eletrónico, da menção de que o imóvel cuja venda por aquela via se publicita se encontra dado de arrendamento, necessariamente que consubstancia uma irregularidade suscetível de influenciar a decisão do comprador interessado. Basta pensar, por exemplo, na hipótese de o comprador pretender adquirir o imóvel para sua habitação própria, pois que o arrendamento não caduca só pelo facto da transmissão do imóvel arrendado, sendo confrontado com a impossibilidade de o ocupar. Não é indiferente adquirir um prédio devoluto ou um que esteja arrendado.

Impõe-se, todavia, atentar no seguinte: não se tratando de nulidade que ao Tribunal se imponha conhecer ex oficiosó pode invocá-la o interessado na observância da formalidade omitida ou na repetição ou eliminação do ato (cfr. o artigo 197.º do C.P.C.).

os executados não são claramente os interessados no cumprimento da concreta formalidade omitida. Interessados serão apenas e só os pretensos compradores” [...]

Concordamos que o comprador é o principal prejudicado, tendo de resto uma norma específica a proteger o seu direito à transparência no anúncio de venda, uma vez que, desconhecendo a oneração do imóvel tende a oferecer um valor superior. A sua legitimidade advém diretamente da norma do artigo 838.º.

Concedemos ainda, que à remidora filha dos devedores se possa reconhecer um interesse legítimo na repetição do ato, por ter perdido a possibilidade de remir por um valor eventualmente inferior, se o bem tivesse sido publicitado como onerado.

E quanto aos executados?

Imaginemos a situação inversa, ou seja, uma situação em que, por lapso, seja anunciado um ónus na realidade inexistente. Cremos, com segurança poder integrar tal situação na previsão do artigo 197.º do CPC, porquanto o bem dos executados entrou no mercado de venda desvalorizado, o que é suscetível de lhes trazer prejuízo, porque menor a oferta, logo, teriam os executados interesse direto nessa nulidade, que poderiam invocar.

A situação que se coloca no presente litígio é uma situação diferente, porquanto a omissão cometida permite aos potenciais compradores, ignorantes do erro, tomar o bem como não onerado e por isso oferecer um preço maior. O que à partida favorece os executados devedores, porquanto, com tal oferta mais facilmente conseguirão cobrir ou exceder o valor em dívida. Logo, à partida, não têm interesse em anulá-la.

Os apelantes apelam à figura da remição e ao espírito de defesa do património familiar subjacente ao instituto, invocando a remissão [sic] da filha, para tentarem obter o reconhecimento dum interesse legítimo, deles.

Dispõe o artigo 842.º do CPC:

«Ao cônjuge que não esteja separado judicialmente de pessoas e bens e aos descendentes ou ascendentes do executado é reconhecido o direito de remir todos os bens adjudicados ou vendidos, ou parte deles, pelo preço por que tiver sido feita a adjudicação ou a venda.»

O direito de remição, considerado um direito de preferência qualificado, tem por finalidade a proteção do património familiar, evitando, quando exercido, a saída dos bens penhorados do âmbito da família do executado.

O direito de remissão [sic] foi exercido e, se bem exercido, o imóvel não sairá do património familiar. Está acautelado o interesse que o direito de remissão [sic] confere aos executados.

O que os executados não podem é substituir-se à filha, invocando ter perdido esta, em tese, a possibilidade de ter remido por um valor inferior.

Essa invocação só à remidora pertence, porque é seu o eventual prejuízo, logo seu o interesse em repará-lo invocando a nulidade da venda no âmbito do artigo 197.º do CPC.

Desse modo, não têm os executados legitimidade para invocar tal nulidade, ainda que a filha o pudesse ter.

No que se confirma a sentença, ainda que com fundamentos parcialmente diferentes."

*3. [Comentário] A RE decidiu indiscutivelmente bem.

O art. 842.º CPC atribui aos familiares do executado um direito de remir e um direito de remição (e não um direito de remitir e um direito de remissão).

MTS