"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/10/2023

Jurisprudência 2023 (29)


Factos conclusivos;
admissibilidade*


I. O sumário de RE 9/2/2023 (1791/19.0T8LLE.E1) é o seguinte:

1 – O juiz pode valorizar qualquer das parcelas em que se desdobra o pedido global de indemnização em montante superior ao indicado pelo próprio peticionante, mas o valor total alcançado não pode em caso algum ser superior ao pedido, a fim respeitar o disposto no n.º 1 do artigo 609.º do Código de Processo Civil.

2 – A inserção, na matéria de facto, de conceitos que podem ser tidos como sendo conclusivos é irrelevante, se os mesmos forem factualizados e forem usualmente utilizados na linguagem comum.

3 – Os Tribunais Superiores entendem que os recursos sobre a impugnação da matéria de facto têm sempre carácter ou natureza instrumental, devendo as questões submetidas à apreciação poder repercutir-se, de forma útil e efectiva, na decisão a proferir pelo Tribunal «ad quem», de modo alterar ou modificar, no todo ou em parte, a solução jurídica que se obteve no caso concreto. De outro modo, no plano formal, não haverá interesse processual em promover a revisão dos factos controvertidos.

4 – Os articulados supervenientes estão sujeitos ao ónus de impugnação, pelo que, se não responder ou não impugnar, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, todos os factos alegados ou aqueles que não forem impugnados são dados como provados por admissão, não podendo constituir tema da prova aqueles que já estejam plenamente provados por confissão.

5 – Existirá abuso de direito quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos apodicticamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção de prejudicar ou de comprometer o gozo do direito de outrem ou de criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências a suportar por aquele contra o qual é invocado.

6 – O artigo 570.º do Código Civil rege a contribuição do lesado para os danos sofridos, aplicando-se quando o facto praticado pelo lesado for causa do prejuízo ou do seu aumento em concorrência com o facto praticado pelo outro interveniente e o lesado tenha actuado com culpa.

7 – Na formulação do juízo de equidade o julgador deve actuar dentro da margem de discricionariedade que lhe é consentida e que não se revele colidente com os critérios jurisprudenciais que, numa perspectiva actualística, generalizadamente vêm sendo adoptados, em termos de poder pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade.

II. No relatório e na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"III – Dos factos apurados:
3.1 – Factos provados: [...]

16) O Autor realizou todos os exames, consultas, raios X, exames médicos, colocação de aparelhos, fixo e amovível, controlos de aparelhos, cirurgia e colocação de coroa metalocerâmica sobre implante e de pilar cerâmico e tratamentos necessários à sua reabilitação oral devido às lesões sofridas, tendo despendido a quantia global de € 6.904,40.

17) Devido às lesões sofridas o Autor ficou com uma assimetria da face, apresentando hipertrofia massetérica esquerda, o que lhe causa tristeza. [...]

IV – Fundamentação: [...]
4.2 – Da alteração da decisão de facto: [...]

Relativamente aos pontos 16) e 17) da factualidade assente, a falta de impugnação importa a admissão por acordo dos factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto por via da aplicação do artigo 574.º [---] do Código de Processo Civil.

Efectivamente, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre afirmam que a situação «está sujeita ao ónus de impugnação, pelo que, se não responder ou não impugnar, todos os factos alegados ou aqueles que não forem impugnados são dados como provados por admissão» [José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2017, págs. 616-617.], adiantando ainda que «não podem constituir tema da prova aqueles que já estejam plenamente provados».

Porém, mesmo que se entendesse que os aludidos factos estavam em oposição com a defesa no seu conjunto, ainda assim colocar-se-ia a questão de saber se estava presente a natureza conclusiva da referida matéria.

Em primeiro lugar, cumpre afirmar que parte da matéria apontada como conclusiva não assume essas características. Depois, na actualidade, a inserção de matéria conclusiva não tem as mesmas consequências que revelava na legislação processual civil anterior.

No pretérito era abundante a jurisprudência dos Tribunais Superiores que afirmava que o preceituado no número 4 do artigo 646.º do Código de Processo Civil, na redacção anterior à reforma, impunha que se considerarem como «não escritas» as respostas do Tribunal sobre questões de direito e o campo de aplicação desta teoria abrangia ainda as asserções de natureza conclusiva porquanto as mesmas se reconduziam à formulação de um juízo de valor que se deveria extrair de factos concretos objecto de alegação e prova.

No entanto, esta tese não era exclusiva, uma vez que coexistia com jurisprudência que considerava que «o artigo 646.º, n.º 4, do CPC, manda ter por não escritas apenas as respostas sobre matéria de direito, e não propriamente as respostas conclusivas, sendo duvidoso, no mínimo, que a regra contida nessa norma possa aplicar-se por analogia a esta última situação, por não ser inteiramente líquido que procedam no caso omisso (factos conclusivos) as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei (questão de direito)» [Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 10/01/2012 e de 28/05/2015, in www.dgsi.pt].

Contudo, ainda assim, no domínio do anterior Código de Processo Civil estava estabilizada a posição que, relativamente a alguns assuntos de alguma complexidade, era «praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis pelos sentidos e compreensíveis pelo intelecto do homem, não deve aceitar-se que uma pretensa ortodoxia e um exacerbado rigorismo na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena da resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstracções distantes dos interesses legítimos que o direito e os Tribunais têm o dever de proteger» [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/01/2012, in www.dgsi.pt.]

Com a mudança de paradigma no processo civil e com o desaparecimento da regra equivalente àquela que estava contida no número 4 do artigo 646.º do Código de Processo Civil, a razão prevalecente aponta, indiscutivelmente, para que se imponha a solução que defende que não há fundamento para considerar como não escritos os factos que correspondem a realidades concretas e perfeitamente apreensíveis por qualquer pessoa, designadamente aqueles que estavam indexados a experiências sensoriais ou percepções subjectivas.

Paulatinamente passou a ser entendido que os factos, no domínio processual, abrangem não apenas as ocorrências concretas da vida real e o estado, a qualidade ou situação real das pessoas, neles se compreendendo não só os acontecimentos do mundo exterior directamente captáveis pelas percepções (pelos sentidos) do homem, mas também os eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do indivíduo (por exemplo, o dolo, a determinação da vontade real do declarante, o conhecimento de dadas circunstâncias, uma certa intenção) [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/04/2009, in www.dgsi.pt.].

Em função da evolução registada no direito processual civil e da substituição do questionário/base instrutória pelos temas da prova está assim desactualizada a lição de Alberto dos Reis [Código de Processo Civil Anotado, vol. III, págs. 212 e seguintes.], quando sustentava que, à luz do quadro normativo então vigente, o Juiz devia tirar do questionário tudo o que fossem «juízos de valor, induções, conclusões, raciocínios, valorações de factos» e, por reflexo e imperativo lógico, desapareceu a mesma limitação na fixação dos factos.

Isto é, a inserção, na matéria de facto, de conceitos que podem ser tidos como sendo conclusivos é irrelevante, se os mesmos forem factualizados e forem usualmente utilizados na linguagem comum, possuindo um sentido comum que é o empregue nas respostas [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/12/2014, in www.dgsi.pt.]

Se é claro que uma decisão que se encontre despida de valorações conclusivas poderá ser apresentada como uma solução tecnicamente mais adequada, no plano casuístico e na presente situação tudo aquilo que consta do acervo factual impugnado não se destaca da esfera do judicialmente permitido.

E daqui se retira que, por essa via, os factos sob censura não devem ser parcelarmente eliminados do elenco dos factos provados ao abrigo da disciplina do artigo 662.º do Código de Processo Civil."

*III. [Comentário] A RE decidiu indiscutivelmente bem.

Sobre o (falso) problema dos chamados "factos conclusivos", clicar aqui.

MTS