Partes processuais
princípio da dualidade das partes*
princípio da dualidade das partes*
I – Não sendo o registo predial constitutivo do direito de propriedade, quando esse facto a provar não constitua o thema decidendum da ação em apreço, nada obsta a que se produza o efeito cominatório decorrente da confissão ficta.
II – Atenta a não contestação da alegação efetuada pelo Réu, de que a propriedade do imóvel onde as despesas peticionadas foram realizadas pertence ao Autor, e como de harmonia com o preceituado no artigo 607.º, n.º 4, aplicável aos acórdãos ex vi do artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC, o tribunal declara quais os factos que julga provados tomando em consideração designadamente os factos que foram admitidos por acordo, e provados por documento, a coberto do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, impõe-se a modificação oficiosa daquele facto, que havia sido julgado como não provado, passando a integrar o elenco dos factos provados.
III – Pese embora o despacho que julgou competente o tribunal comum tenha transitado em julgado, o acordo firmado entre as partes, apesar de anterior à entrada em vigor do DL n.º 280/2007, de 7 de agosto, não pode afastar o regime jurídico do património imobiliário público, entretanto publicado.
IV – Independentemente da sua qualificação como benfeitorias úteis (para cuja indemnização o Autor não alegou os factos essenciais), ou necessárias, a realização de obras por serviços do Estado em prédios a este pertencentes, não dão lugar à peticionada indemnização ao Estado, tanto pela impossibilidade de nascer um direito de crédito a seu favor por despesas por si realizadas num imóvel que lhe pertence, como porque de acordo com o conjugadamente vertido nos artigos 54.º, n.º 1, e 56.º, do referido DL n.º 280/2007, a cedência de instalações, incluindo a cedência aos serviços do Estado, obedece ao princípio da onerosidade, sendo as despesas e os encargos com a conservação e a manutenção do imóvel cedido da responsabilidade do cessionário.
V – Finalmente, recebendo o Réu os seus recursos do orçamento do Estado Português, e sendo este o Autor, nunca existiria qualquer utilidade na cobrança por via judicial de um valor a favor do Estado, para cuja satisfação seria este a fornecer os recursos.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"O Autor ["MINISTÉRIO PÚBLICO, em representação do Estado"] intentou a presente ação pedindo, na parte que releva na economia da apelação, que o “Protocolo” celebrado entre o CHS e os SSAP, seja qualificado como contrato de comodato, e o réu seja condenado a indemnizá-lo, com fundamento no enriquecimento sem causa, pelas benfeitorias necessárias efetuadas nas instalações das “Casas do Outão”, no valor de 150.667,69€. [...]
Como vimos, o Autor fundamenta o seu pedido alegando e subsequentemente demonstrando que, tendo recebido as instalações em estado de grande degradação, quando procedeu à sua entrega, deixou-as com as obras e reparações que a suas expensas ali foram realizadas, as quais se provou que eram indispensáveis à habitabilidade e fruição dos espaços, constituídos pelos apartamentos, vivendas e jardins circundantes, que ficaram com as paredes, solos, portas, janelas, telhados, canalizações, casas de banho, em estado de fruição cuidado, sendo que as obras realizadas não puderam ser levantadas pelo SSAP no momento em que se retirou das mesmas, pretendendo, por isso, que as obras realizadas são benfeitorias necessárias, e que deve ser ressarcido pelo valor despendido.
Esta pretensão indemnizatória foi julgada improcedente na sentença recorrida, com a seguinte fundamentação: «A propósito do direito a indemnização por benfeitorias, o 1273º do Código Civil, dispõe o seguinte:
“1. Tanto o possuidor de boa-fé como o de má fé têm direito a ser indemnizados das benfeitorias necessárias que hajam feito, e bem assim a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, desde que o possam fazer sem detrimento dela.2. Quando, para evitar o detrimento da coisa, não haja lugar ao levantamento das benfeitorias, satisfará o titular do direito ao possuidor o valor delas, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa.”.
Já o nº1, do artº 216º, do CC, diz que são benfeitorias “(…) todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa “, podendo elas ser, necessárias, úteis ou voluptuárias (cfr. nº 2). [...]
Insurge-se o Recorrente, como vimos, por defender que as benfeitorias realizadas são necessárias e indispensáveis, “porque delas depende a manutenção da integridade da coisa, sem tais benefícios as instalações teriam ruído”, considerando que “mal andou a Mª juiz ao extrair dos factos dados como provados e não provados, o afastamento da qualificação das obras como benfeitorias necessárias e a aplicação do disposto no artº 216 e 1273 do CC”.
Vejamos.
Tal como vem conformado o litígio, a primeira precisão que importa efetuar concerne ao seu objeto. Como já referimos, o recorrente limita o objeto do recurso à questão da qualificação das benfeitorias por si realizadas como necessárias, mas tanto a petição inicial como as alegações de recurso, revelam imprecisões conceituais e interpretativas que urge dissipar. [...]
Conforme disposto no artigo 216.º do CC, consideram-se benfeitorias todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa, sendo as mesmas classificáveis como necessárias, úteis ou voluptuárias, sendo que «a benfeitoria consiste num melhoramento feito por quem está ligado à coisa, em consequência de uma relação ou vínculo jurídico», como era o caso do ora autor, a quem as instalações foram entregues por via da celebração de Protocolo com o Réu, com autorização para no mesmo celebrar as avultadas obras iniciais, bem como as que posteriormente veio a realizar, e que ora nos ocupam.
De acordo com o previsto no n.º 3 da indicada disposição legal, são benfeitorias necessárias as que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa; úteis as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam, todavia, o valor; e voluptuárias as que, não senão indispensáveis para a sua conservação nem lhe aumentando o valor, servem apenas para recreio do benfeitorizante. [...]
Porém, o autor não alegou, e consequentemente não demonstrou, factos dos quais se pudesse concluir que estas concretas obras realizadas eram necessárias para evitar a degradação dos imóveis, situação que não se confunde com a sua “necessidade” para manter um determinado padrão de conforto, tendo em vista a sua utilização vocacionada essencialmente para gozo de férias, o fim para o qual os SSAP celebraram o Protocolo e para o qual, em regra, destinava as vivendas e apartamentos [---]. Ou seja, o autor não alegou qual o estado em que concretamente a “Casa do Faroleiro”, se encontrava antes da celebração de tais obras (juntou fotos de um imóvel degradado mas sem qualquer concretização que permita sequer perceber se são do tempo da celebração do protocolo, ou se se reportam à casa do faroleiro antes das obras agora peticionadas), o mesmo é dizer que, no concreto circunstancialismo dos autos, tendo sido alegada a realização de obras iniciais de vulto para recuperação dos imóveis (onde inferimos que estas Casas se incluíram pois que foram cedidas aquando do Protocolo), tendo posteriormente a tais obras iniciais, e necessárias, sido realizadas estas novas obras, temos de concluir que, neste concreto circunstancialismo o autor não alegou sequer os factos essenciais que permitissem a qualificação de todas as obras realizadas, como sendo benfeitorias necessárias. [...]
Acontece que, no caso, nem sequer as únicas obras realizadas, que integram o conceito legal de benfeitorias necessárias, dão lugar a indemnização ao Autor.
Em primeiro lugar, e decisivamente, porque de acordo com o conjugadamente vertido nos artigos 54.º, n.º 1, e 56.º, do DL n.º 280/2007, de 7 de agosto a cedência de instalações, incluindo a cedência aos serviços do Estado, obedece ao princípio da onerosidade, sendo as despesas e os encargos com a conservação e a manutenção do imóvel cedido da responsabilidade do cessionário.
Em segundo lugar, pela impossibilidade de se constituir um direito de crédito a seu favor por despesas por si realizadas num imóvel que lhe pertence, uma vez que, sendo o Estado português o proprietário do imóvel, não lhe assiste o direito a ser ressarcido por parte de serviços que tutela, de despesas realizadas no mesmo para a sua conservação, já que, no fundo, nele se concentrariam a qualidade de credor e devedor da mesma obrigação.
Finalmente, à mesma conclusão se chegaria se considerássemos que o Autor são os próprios SSAP, já que estes são um serviço central da administração direta do Estado, dotado de autonomia administrativa e financeira, conforme dispõe o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 49/2012, de 29 de fevereiro, com receitas provenientes, para além de outras fontes, das dotações atribuídas através do Orçamento do Estado [artigo 7.º, alínea a)]. Por seu turno, de acordo com o previsto no artigo 5.º, n.º 1, do DL n.º 12/2005, de 26 de janeiro, que estabeleceu a natureza e regime jurídico do Réu, Centro Hospitalar de Setúbal, E.P.E., “as entidades públicas empresariais abrangidas pelo presente decreto-lei são pessoas coletivas de direito público de natureza empresarial dotadas de autonomia administrativa, financeira e patrimonial”. Pese embora este diploma tenha entretanto sido revogado pelo DL n.º 18/2017, de 10 de fevereiro, conforme decorre do artigo 15.º, n.º 1, do diploma atualmente vigente, o Réu manteve aquela natureza, significando isso que, por via do respetivo artigo 16.º, o seu capital estatutário é detido pelo Estado, sendo o seu financiamento efetuado (nos termos da base XXXIII, n.º 1, da Lei de Bases da Saúde, aprovada pela Lei n.º 48/90, de 24 de agosto, alterada pela Lei n.º 27/2002, de 8 de novembro), pelo Orçamento do Estado. Consequentemente, recebendo o Réu os seus recursos do orçamento do Estado Português, e sendo este o Autor, nunca existiria qualquer utilidade na cobrança por via judicial de um valor a favor do Estado, para cuja satisfação seria este a fornecer os recursos."
*3. [Comentário] A ser verdade o que se afirma no acórdão quanto ao Estado/Autor e ao Estado/Réu (e que não há motivos para duvidar), o acórdão é exemplo de uma das raras situações de violação do princípio da dualidade das partes. A mesma entidade -- in casu, o Estado -- é autor e réu.
MTS
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