"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/10/2023

Jurisprudência 2023 (37)


Restituição provisória da posse;
contraditório diferido


1. O sumário de RG 9/2/2023 (589/21.0T8AVV-A.G1) é o seguinte:

I - O critério que deve presidir à decisão de proceder à inspecção ao local é o da sua conveniência para a formação da convicção a formar.

II – No procedimento cautelar de restituição provisória da posse, em que a lei determina a não audição da parte contrária, caso o requerido opte pela dedução de oposição pode alegar novos factos (que consubstanciem excepções ou impugnação motivada) e/ou pretender que se produzam novas provas que terão a virtualidade de afastar ou reduzir a medida cautelar decretada.

III – Neste caso existem duas decisões: uma decisão provisória em face dos factos alegados pelo requerente e que atende aos meios probatórios por ele apresentados; e uma decisão final em que o julgador pondera o conjunto da prova produzida em ambas as fases e em que conclui pela manutenção ou não da providência decretada ou pela sua redução.

IV – No que concerne à fixação da matéria de facto deve o tribunal na decisão final, por um lado, elencar os factos da oposição que considera indiciariamente provados e não provados e, por outro, elencar os factos dados como indiciariamente provados na decisão inicial que se mantêm inalterados e aqueles que resultaram modificados ou não provados (ainda que não os reproduza) procedendo à análise crítica do conjunto da prova produzida.

V – O procedimento de restituição provisória da posse tem como requisitos a posse (posse em nome próprio e em nome alheio, esta nos casos expressamente previstos na lei), o esbulho (perda da posse) e a violência (segundo a tese maioritária exercida sobre pessoas ou coisas, neste caso desde que seja um meio de coagir o esbulhado a suportar uma situação contra a sua vontade).

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Antes de mais, importa fazer algumas considerações acerca do contraditório diferido aplicável ao presente procedimento cautelar de restituição provisória da posse e às suas consequências na fixação da matéria de facto.

Não obstante a regra nos procedimentos cautelares ser a audição da parte contrária previamente à prolacção da decisão, existem situações em que tal audiência põe em risco sério o fim e a eficácia da providência e em que a mesma é dispensada – art. 366º, nº 1. A estas situações juntam-se os procedimentos cautelares especificados em que a lei expressamente determina a não audição, como a restituição provisória da posse (art. 378º) e o arresto (art. 393º, nº 1).

Em face de decisão proferida sem audiência da parte contrária pode o requerido recorrer ou deduzir oposição – 372º, nº 1.

No Ac. da R.L. de 09/03/2021 (José Capacete), in www.dgsi.pt, endereço a que pertencerão os acórdãos a citar sem menção de origem, acórdão que remete para Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, III Volume, (2.ª Edição), pp. 251-256, lê-se:

“(…) A utilização de um ou outro dos referidos meios é feita em alternativa, pelo que, confrontada com a decisão cautelar de arresto, à requerida cabia optar por um deles.

A oposição consiste:

a) na alegação de novos factos; e,
b) na apresentação de meios de prova (quer os já anteriormente produzidos, quer novos meios de prova), suscetíveis de infirmar os factos fundamentadores da primeira decisão, de modo revertê-la, total ou parcialmente;

O recurso, por sua vez, consiste na discordância:

a) quanto à integração jurídica que o tribunal fez dos factos que indiciariamente considerou provados; ou,
b) quanto à própria decisão da matéria de facto indiciariamente provada a partir dos meios de prova que o tribunal teve ao seu dispor aquando da prolação da primeira decisão. (…)”.

A decisão tomada sem audiência da parte contrária tem em conta a matéria de facto alegada pelo requerente e os meios de prova por ele apresentados, que naturalmente lhe são favoráveis.

Se optar pela dedução da oposição o requerido pode alegar novos factos (que consubstanciem excepções ou impugnação motivada) e/ou pretender que se produzam novas provas que, na sua óptica, terão a virtualidade de afastar ou reduzir a medida cautelar decretada.

Incumbe ao julgador ponderar o conjunto da prova produzida, quer na fase inicial, quer nesta, e concluir pela manutenção ou não da providência decretada ou pela sua redução, sendo que esta nova decisão é complemento e parte integrante da inicialmente proferida (art. 372º nº 3). Esta decisão é tomada como se o requerido tivesse sido ouvido inicialmente e aí tivesse deduzido oposição e apresentado os seus meios de prova. A este propósito refere Abrantes Geraldes, ob cit, p. 240: “A nova decisão proferida vai ajustar-se à decisão anterior, reforçando-a, anulando-a ou introduzindo-lhe as modificações consideradas convenientes face aos novos elementos a que o juiz teve acesso”.

Embora a lei não seja clara entendemos que, no que à fixação da matéria de facto diz respeito, deve o tribunal na decisão final, por um lado, elencar os factos da oposição que considera indiciariamente provados e não provados e, por outro, elencar os factos dados como indiciariamente provados na decisão inicial que se mantêm inalterados e aqueles que resultaram modificados ou não provados (ainda que não os reproduza) procedendo à análise crítica do conjunto da prova produzida. Neste sentido vide Ac. da R.G. de 04/12/2008 (Rosa Tching). Esta metodologia evitará dúvidas acerca da manutenção de factos que se mostrem contraditórios ou incompatíveis com os novos factos dados como assentes, não obstante tal contradição e incompatibilidade ser meramente aparente uma vez que a primeira decisão (e seus factos) é “provisória” e não forma caso julgado pelo que prevalece a segunda decisão e os segundos factos. Esta é uma excepção ao princípio da extinção do poder jurisdicional quanto à matéria da causa previsto no art. 613º, nº 1. E por tal razão a decisão final não é, com este fundamento, nula por contradição entre os fundamentos de facto e a decisão (art. 615º nº 1 c)).

Desta “decisão final unitária” cabe recurso que abrange todas as questões suscitadas em ambas as fases do procedimento."

[MTS]