"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/06/2025

Jurisprudência 2024 (188)


Competência internacional;
Reg. 2019/1111


1. O sumário de RL 24/10/2024 (25544/23.2T8LSB.L1-2) é o seguinte:

I. Sendo Portugal e França Estados-Membros da União Europeia, o regime comunitário aplicável à presente situação é o definido pelo Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho de 25/06, em vigor desde 1 de agosto de 2022, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução, designadamente, de decisões em matéria matrimonial.

II. Tendo ambos os cônjuges residência habitual em Portugal, tal é suficiente para que se conclua, em conformidade com o disposto no art.º 3º, a), i), do citado Regulamento, pela competência internacional dos Tribunais Portugueses para o conhecimento da ação de divórcio.

III. Inexiste fundamento legal para que o critério da nacionalidade dos cônjuges, previsto no art.º 3º, b), do citado Regulamento prevaleça sobre o critério da residência habitual dos cônjuges mencionado no ponto II.

IV. Nos termos do disposto no artigo 17º, al a), do Regulamento (UE) 2019/1111, o processo considera-se instaurado “Na data de apresentação ao tribunal do ato introdutório da instância, ou ato equivalente, desde que o requerente não tenha posteriormente deixado de tomar as medidas que lhe incumbem para que seja feita a citação ou a notificação ao requerido.”

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

Discute-se, no presente recurso, a competência internacional dos tribunais portugueses para julgar a presente ação, uma vez que a mesma está em contacto, através dos seus elementos, com outra ordem jurídica para além da portuguesa, no caso, a francesa.

O Tribunal a quo considerou a jurisdição portuguesa competente para o efeito.

A Apelante discorda.

Vejamos.

Sobre a competência internacional dos tribunais portugueses, o artigo 59º do CPC estabelece que “Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62º e 63º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94º.

Deste modo, a competência internacional dos tribunais portugueses depende, em primeira linha, do que resultar de convenções internacionais ou dos regulamentos europeus sobre a matéria que vinculem o Estado Português e, depois, da integração de alguns dos segmentos normativos dos artigos 62º e 63º do CPC - cfr., António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I - Parte Geral e Processo de Declaração, Almedina, pág. 91.

Na ordem jurídica portuguesa vigoram, assim, normas de fonte interna e normas de fonte supra estadual. [...]

Sendo Portugal e França Estados-Membros da União Europeia, o regime comunitário aplicável à presente situação é o definido pelo Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho de 25/06, em vigor desde 1 de agosto de 2022, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução, designadamente, de decisões em matéria matrimonial.

Ora, de acordo com o artigo 3º desse Regulamento, “São competentes para decidir das questões relativas ao divórcio, separação ou anulação do casamento, os tribunais do Estado-Membro:

a) Em cujo território se situe:
i) a residência habitual dos cônjuges,
ii) a última residência habitual dos cônjuges, na medida em que um deles ainda aí resida,
iii) a residência habitual do requerido,
iv) em caso de pedido conjunto, a residência habitual de qualquer dos cônjuges,
v) a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos um ano imediatamente antes da data do pedido, ou
vi) a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos durante seis meses imediatamente antes do pedido e se for nacional do Estado-Membro em questão; ou
b) Da nacionalidade de ambos os cônjuges.

Como referimos, a Apelante discorda da decisão proferida pelo Tribunal a quo, começando por argumentar que essa decisão não teve em consideração a nacionalidade dos cônjuges.

De facto, na sua decisão, o Tribunal a quo não considerou a nacionalidade dos cônjuges. Mas esse, conforme claramente resulta do citado art.º 3º, não era o único critério a atender na definição da competência internacional para o conhecimento da ação.

Essa competência, conforme previsto na alínea a), ponto i), desse normativo, também poderá ser definida em função do território onde se situa a residência habitual dos cônjuges. E, conforme resultou provado, “as partes residem ambas em Portugal, bem como os filhos menores do casal”. Tendo ambos os cônjuges residência habitual em Portugal, tal é suficiente para que se conclua pela competência internacional dos Tribunais Portugueses para o conhecimento da ação.

Afirma a Apelante que o critério da nacionalidade dos cônjuges deve prevalecer sobre o critério da residência habitual. No entanto, a verdade é que inexiste fundamento jurídico que sustente essa afirmação.

Na presente situação, a desconsideração da nacionalidade dos cônjuges não assume, assim, qualquer relevo.

Prossigamos. 

Tendo presente que na situação em apreço foram instaurados dois processos de divórcio, o presente, em Portugal, e um outro, em França, intentado pela aqui Ré/Apelante, a Apelante defende ainda, no seu recurso, que o Tribunal a quo não teve em consideração a data da citação dos réus nas duas ações intentadas.

Releva aqui o disposto no artigo 17º, al a), do Regulamento (UE) 2019/1111, nos termos do qual se considera “que o processo foi instaurado:

a) Na data de apresentação ao tribunal do ato introdutório da instância, ou ato equivalente, desde que o requerente não tenha posteriormente deixado de tomar as medidas que lhe incumbem para que seja feita a citação ou a notificação ao requerido.

Refira-se ainda que, nos termos do artigo 20º, n.º 1 do mesmo Regulamento, “Quando os processos de divórcio, separação ou anulação do casamento entre as mesmas partes são instaurados em tribunais de Estados-Membros diferentes, o tribunal em que o processo foi instaurado em segundo lugar suspende oficiosamente a instância até que seja estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar”, sendo que, de acordo com o n.º 3 do mesmo normativo, “Quando estiver estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar, o tribunal em que o processo foi instaurado em segundo lugar declara-se incompetente a favor daquele.

Revertendo para a situação dos autos, vemos que nos mesmos resultou provado que a presente ação de divórcio sem mútuo consentimento foi deduzida pelo Autor contra a Ré, tendo dado entrada em 26.10.2023; enquanto a ação de divórcio intentada em França pela aqui Ré contra o Autor deu entrada a 31.10.2023.

Dúvidas não temos, em face do exposto, que a presente ação foi instaurada em primeiro lugar, em conformidade com o critério estabelecido no artigo 17º, al a), do Regulamento (UE) 2019/1111. É esse o normativo a considerar e não o art.º 582º, n.º 2, do CPC, uma vez que, como acima já explicamos, “a competência internacional dos tribunais portugueses depende, em primeira linha, do que resultar de convenções internacionais ou dos regulamentos europeus sobre a matéria que vinculem o Estado Português.

[MTS]