"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



19/06/2025

Jurisprudência 2024 (191)


Litigância de má fé;
multa; quantificação


I. O sumário de RG 17/10/2024 (1739/22.5T8VNF-B.G1) é o seguinte:

1 - Se o Tribunal está vinculado a apreciar apenas as questões suscitadas em sede de recurso, não está adstrito à apreciação apenas dos fundamentos jurídicos invocados para a apreciação dessas questões, desde que, previamente à apreciação de outros, exerça o contraditório, notificando as partes para que sobre eles se pronunciem.

2 – É exorbitante a fixação de uma multa de 5.000,00 euros no âmbito do instituto da litigância de má-fé, quando está em causa a conduta de uma pessoa singular, ainda que de condição económica não apurada, mesmo que a sua conduta seja dolosa, se a sua alegação suscita outras questões para além daquela que é reveladora de má-fé.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"4 – A recorrente insurge-se ainda quanto à sua condenação como litigante de má-fé.

Resulta do art.º 542.º do C. P. Civil que é sancionável a título de má-fé, não apenas a lide dolosa, mas também a lide temerária, quando as regras de conduta processual conformes com a boa-fé são violadas com culpa grave ou erro grosseiro.

O que há assim que perceber é se a atuação do autor ultrapassa os limites que a ordem jurídica definiu para que possa exercer os seus direitos, considerando-se que a sua litigância é uma afronta aos princípios da boa-fé e da lisura processuais.

Como se escreveu no Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães de 30/03/2023, da Juiz Desembargadora Fernanda Proença Fernandes, proc. 159/20.0T8MLG.G1, in www.dgsi.pt “se a parte, com propósito malicioso, ou seja, com má-fé material, pretender convencer o tribunal de um facto ou de uma pretensão que sabe ser ilegítima, distorcendo a realidade por si conhecida, ou se, voluntariamente, fizer do processo um uso reprovável ou deduzir oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar - má-fé instrumental -, deve ser condenada como litigante de má-fé”.

Deve ainda ter-se em atenção que “não é humanamente exigível às partes que sejam inteiramente objetivas, pelos diversos matizes que a realidade sempre apresenta, vistas sob diferentes prismas, sendo percetível que as partes têm uma relação emocional com estas, sofrendo na sua vida as questões em debate, os problemas ocorridos, o peso do litígio.

Não pode, no entanto, ser tolerado que a parte recorra ao processo, sabendo não ter razão ou quando apenas não tem essa consciência porque se furtou a evidentes deveres de cuidado e zelo a que o respeito pela Justiça, pelos Tribunais e pela parte contrária, exigiam ou faça do mesmo uso que de forma grave ponha em causa as suas finalidades” – nas palavras do Acórdão desta Relação de Guimarães de 14/09/2023, da Juiz Desembargadora Sandra Melo, proc. 3509/22.1T8GMRG.G1, in www. dgsi.pt.

No entanto, como se refere também no Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães de 30/06/2022, da Juiz Desembargadora Conceição Sampaio, proc. 20786/20.5T8PRT-A.G1, também in www.dgsi.pt, “não deve confundir-se litigância de má-fé com:

· a mera dedução de pretensão ou oposição cujo decaimento sobreveio por mera fragilidade da sua prova, por a parte não ter logrado convencer da realidade por si trazida a julgamento;
· a eventual dificuldade de apurar os factos e de os interpretar;
· discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, na diversidade de versões sobre certos e determinados factos; ou
· a defesa convicta e séria de uma posição, sem, contudo, a lograr convencer.

Constitui hoje entendimento prevalecente na nossa jurisprudência que a garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprios do Estado de Direito, são incompatíveis com interpretações apertadas ou muito rígidas do artigo 542º do Código de Processo Civil. Haverá sempre que ter presente as características e a natureza de cada caso concreto, recomendando-se na formulação do juízo sobre essa má fé uma certa prudência e razoabilidade”.

Perante a matéria de facto que resultou provada não existe qualquer dúvida que o embargante executado, ao alegar que não foi ele quem assinou o aviso de receção que acompanhava a carta remetida para a sua citação para a ação declarativa sabia que estava a faltar à verdade e, assim, a litigar de má-fé, procurando dessa forma criar obstáculos à possibilidade de se dar à execução a sentença que naqueles autos foi proferida.

Deverá, assim, manter-se a sua condenação como litigante de má-fé.

5 – O recorrente insurge-se ainda contra os montantes fixados a título de multa e indemnização, no âmbito da sua condenação como litigante de má-fé.

Quanto à indemnização, entende o Tribunal que a mesma não é devida, como deixou já claro no despacho proferido em 17/09/2024. [...]

Quanto à multa, o Mm.º Juiz a quo fixou-a em 5.000,00 euros.

Estabelece o n.º 3 do art.º 27.º do Regulamento das Custas Processuais que a multa deve ser fixada entre 2 UC e 100 UC (art.º 5.º do referido Regulamento). Estando a Unidade de Conta no valor de 102,00 euros, os limites da multa aplicável situam-se entre 204,00 euros e 10.200,00 euros.

Nos termos do n.º 4 deste normativo, o montante da multa ou penalidade é sempre fixado pelo juiz, tendo em consideração os reflexos da violação da lei na regular tramitação do processo e na correta decisão da causa, a situação económica do agente e a repercussão da condenação no património deste.

“A multa por litigância de má fé, como qualquer outra sanção, procurará desempenhar uma função repressiva (punindo aquele que não cumpre com os deveres de lealdade e correção) e, simultaneamente, preventiva (evitando que esse, ou qualquer outro litigante, volte a desrespeitar a lealdade processual). Mas estas funções apenas lograrão ser alcançadas se se tomar em consideração a situação económica do litigante, adaptando o montante da multa à sua condição financeira, assim garantindo que esta tenha verdadeiro efeito sancionatório e punitivo (vide Marta Frias Borges, Algumas Reflexões em Matéria de Litigância de Má-Fé, Dissertação apresentada à FDUC no âmbito do 2º Ciclo de Estudos em Direito (conducente ao grau de Mestre), na Área de Especialização em Ciências Jurídico-Civilísticas, 2014, Coimbra, pág. 69, acessível em https://estudogeral.sib.uc.pt., citado no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 04/05/2023, do Juiz Desembargador José Cravo, in www.dgsi.pt).

Para fundamentar a multa fixada, escreveu-se na decisão proferida: “neste contexto, considerando o valor que o embargante quer eximir-se a pagar sem qualquer fundamento, decidimos condenar o embargante numa multa cujo valor se fixa em cinco mil euros”.

Esta fundamentação é muito pouco expressiva para fundamentar a condenação do embargante, pessoa singular, no pagamento de uma multa que é próxima do ponto médio da moldura legal.

Se não podemos ignorar a conduta dolosa do embargante executado, que procurou, por esta via, furtar-se ao pagamento da quantia exequenda que ascende a cerca de 13.000,00 euros, acrescida de juros de mora, não podemos também ignorar que este não foi o único fundamento dos embargos deduzidos e, ainda que os demais não tivessem consistência jurídica, não eram reveladores de má-fé.

 Tendo em conta a factualidade apurada, os referidos fatores a ponderar e sabendo-se, ainda, que a multa a aplicar só terá verdadeiro efeito sancionatório e punitivo se adequada à gravidade da atuação do litigante prevaricador e às suas possibilidades patrimoniais (e, aqui, releva estar em causa uma pessoa singular  que nada disse sobre a sua situação económica quer quando interpelada para se pronunciar sobre a questão da má-fé da sua conduta, quer nestas alegações de recurso), conclui-se que a multa aplicada pela 1ª instância é ainda assim exorbitante face à conduta do embargante que se considerou de má-fé.

Se atentarmos nas concretas condenações em multa fixadas pelos Tribunais Superiores (5 Ucs, no proc. 1806/22.5T8BRG.G1, de 12/06/2024, 15 Ucs, no proc. 407/18.7TAVV-B.G1, de 23/05/2024, 5 Ucs, no proc. 2/22.6T8MC.G1, de 18/04/2024, 10 Ucs., no proc. 5220/20.9T8GMR.G2, de 25/01/2024, todos deste Tribunal da Relação de Guimarães), não existe qualquer razoabilidade no valor da multa que foi fixado.

Tudo ponderado, considerando que a exequente é uma pessoa coletiva, que está em causa uma dívida decorrente da atividade comercial daquela, perante o executado pessoa singular de condição económica não apurada, fixa-se em 8 ucs a multa devida pela sua conduta de má-fé."

[MTS]