"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/06/2025

Jurisprudência 2024 (180)


Recurso de revista;
contradição de julgados; oposição è penhora


1. O sumário de STJ 3/10/2024 (1008/22.0T6ANS-A.C1.S1) é o seguinte:

I. A circunstância de o acórdão da Relação decidir das invocadas nulidades da sentença e, ou, apreciado da impugnação da matéria de facto, inconsequente no sentido da decisão, tal não caracteriza “fundamentação essencialmente diferente” entre as decisões das instâncias.

II. Não ocorre contradição de jurisprudência relevante para efeitos do preenchimento da previsão da alínea d) do nº 2 do art. 629º do CPC, na circunstância de dissemelhança dos núcleos factuais e ocorrências processuais, que convocam normas adjetivas distintas e justificam as diferentes soluções jurídicas alcançadas.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"4. [...] visto o disposto nos artigos 652º, nº 1, alínea b) ex vi artigo 679º do CPC, decidiu a relatora, não admitir o recurso de revista, nos termos e pelos fundamentos que se transcrevem:

«O recorrente interpôs recurso de revista e de revista excecional, ao abrigo dos artigos 629º, nº 2, al d), 672, º nº 1, al) c e 854º do CPC.

Como nota inicial sublinha-se que a admissão da revista denominada excecional e regulada no artigo 672º e 673º do CPC depende em primeira linha da verificação dos requisitos de recorribilidade geral e de revista, cuja apreciação cabe ao relator, que na afirmativa, levará então à apreciação ulterior pela Formação no que se prende com os requisitos específicos enunciados no artº 672º, nº 1, do CPC.

Posto isto, vejamos.

No âmbito do processo executivo a admissão da revista está sujeita ao regime especial do artigo 854.º do CPC, que determina que são apenas passíveis de revista os acórdãos da Relação proferidos nos procedimentos de liquidação não dependente de simples cálculo aritmético, de verificação e graduação de créditos e de oposição deduzida contra a execução, a par da limitação geral associada aos casos de dupla conformidade, respeitem estes a decisões interlocutórias ou finais, salvo os casos em que a revista é sempre admissível. [Cf. Entre outros, neste sentido, Rui Pinto in Código de Processo Civil Anotado, volume II, 2018, pág.737/8]

A oposição à penhora por embargos de executado não configura incidente de natureza declarativa contemplado entre os incidentes e procedimentos que admitem revista e elencados no artigo 854º do CPC.

Resta a revista admissível, caso se configure situação de recorribilidade irrestrita prevista na salvaguarda (inicial) do artigo 854º do CPC “casos em que é sempre admissível recurso para o Supremo.”, segmento normativo que dentro do sistema recursivo se equaciona com o disposto no artigo 629º, nº 2, - norma transversal aos recursos e também com o disposto no artigo 671º, nº 3,1ª parte do CPC, em situação de dupla conforme, como sucede nos autos.

No caso estão verificados os requisitos gerais de recorribilidade - tempestividade, legitimidade do recorrente, valor da acção e sucumbência - artigo 629º, nº 1, do CPC.

O recorrente sustenta a admissão da revista ao abrigo do disposto no artigo 629º, nº 2, al) d) do CPC, invocando contradição de julgados da Relação sobre a questão controvertida.

A ratio do recurso para o Supremo em aplicação da alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC, visa garantir a possibilidade de resolução de conflitos de jurisprudência entre acórdãos das Relações, em matérias que por motivos de ordem legal, que não respeitam à alçada do tribunal, não chegariam à apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Pressupõe a existência de uma disposição legal, que vedando o recurso de revista normal, abre por aquela via o acesso ao STJ, considerando-se relevante apurar qual das orientações contraditórias deve ser a adoptada, face à lei e à unidade do sistema jurídico.

Refere António Abrantes Geraldes « (..) foi repristinada a solução semelhante que já constara do artigo 678º, nº 4, do CPC de 1961 […] e que fora afastada pelo regime dos recursos de 2007, reabrindo-se, assim, a possibilidade de acesso ao terceiro grau de jurisdição, em casos em que tal estaria vedado por razões estranhas à alçada da Relação, ou seja, em que o único impedimento do recurso reside em motivos de ordem legal estranha ao valor do processo ou da sucumbência, em confronto, com o valor da alçada da Relação.(…)» [In Recursos no Novo Código de Processo Civil, 7ª edição, pág. 60/161.]

Na jurisprudência do Supremo - «A admissibilidade do recurso de revista extraordinária baseada na al. d) do art. 629.º, n.º 2, do CPC, para acórdão da Relação “do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal”, circunscreve-se (numa lógica de cumulação de requisitos) aos casos em que se pretende recorrer de acórdão proferido no âmbito de acção cujo valor excede a alçada da Relação, sem desrespeitar o valor mínimo de sucumbência (âmbito de recorribilidade delimitada pelo art. 629.º, n.º 1, do CPC), e relativamente ao qual, de acordo com o objecto recursivo ou a sua natureza temática, esteja excluído, por regra, o recurso de revista por motivo de ordem legal (impedimento ou restrição) alheio à conjugação do valor do processo com o valor da alçada da Relação

*
(..). Feito o enquadramento normativo do recurso interposto, avaliemos a situação em juízo.

Cientes que não se mostra consolidada a jurisprudência do Supremo, acerca do espectro de recorribilidade do artigo 629º, nº 2, designadamente na alínea d) do CPC, no qual o recorrente suporta a admissão da revista, ainda assim, cremos que a sua aplicação à situação sub judice parece não contender com qualquer das orientações porfiadas. [A principal cisão reside, na definição de quais os acórdãos da Relação que ficam a coberto da al) d), nº2, 629º do CPC – apenas os acórdãos com previsão no artigo 671º, nº 1, do CPC, ou, na tese ampla, o preceito corresponderá a uma norma de carácter geral, abarcando qualquer acórdão, incluindo acórdão que verse sobre decisões interlocutórias que apreciem questões de carácter adjetivo, que esteja em contradição com outro da Relação , em casos em que o recurso esteja vedado por motivo alheio à alçada e sucumbência,. Outra divergência no entendimento do preceito, prende-se com a aplicabilidade autónoma da al. d) do n.º 2 do art.629.º- exigência ou dispensa (ao contrário das demais alíneas do nº 2) da verificação dos pressupostos gerais de recorribilidade em função do valor da causa e da medida da sucumbência.]

No caso, o valor da causa e da sucumbência do recorrente excede a alçada do tribunal a quo.

Acresce que, também em outra perspectiva, o artigo 854º do CPC corresponderá de per se a previsão legal específica de exclusão de acesso ao STJ, fora dos casos indicados, ocorrendo conformidade de julgados das instâncias e fundamentação de coincidente. [Regista-se uma irrecorribilidade estabelecida por lei para a revista – não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal., entendendo-se que além das situações de exclusão em razão da natureza/matéria do processo (por ex.: procedimentos cautelares: art. 370º, 2, CPC), deverá enquadrar-se neste contexto o obstáculo-impedimento de recurso de revista motivado pela dupla conformidade decisória do art. 671º, 3, do CPC- cf., Abrantes Geraldes in Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 671º;e o Acórdão do STJ de 29/9/2020 no proc. nº 731/16.3T8STR.E1.S1, ponto II., 1.2. e 1.3, in www.dgsi.pt.]

Mostra-se, pois, preenchido in casu o pressuposto de recorribilidade irrestrita (ou de revista especial) estabelecido no nº 2 do artigo 629 do CPC - “do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal.”

Passando ao invocado fundamento da revista - a contradição de julgados, acerca da realização de audiência prévia - que o recorrente advoga ser obrigatória nos autos, e o tribunal a quo preteriu, conforme decidido no acórdão da Relação de Lisboa, no processo nº 1920/14.0YYLSB-A.L1-6, em 22/03/2018.

Constitui jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça que a admissibilidade da revista, em caso de oposição de julgados, implica a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: (i) identidade do quadro factual, (ii) identidade da questão de direito expressamente resolvida, (iii) identidade da lei aplicável, (iv) carácter determinante da resolução daquela questão para a decisão final e, por fim, (v) oposição concreta de decisões. [Cf. inter alia, os acórdãos do STJ de 11-05-2023, Revista n.º 1184/22.2T8BRG-A. G1.S1, de 21-03-2023, Revista n.º 4057/16.4T8OER-A. L1.S1, de 21-06-2022. Revista n.º 5419/17.5T8BRG.G1-A. S1, de 07-06-2022, Revista n.º 1639/20.3T8OER.L1. S1, de 14-09-2021, Revista n.º 338/20.0T8ESP.P1. S1, e Revista 11854/21.7T8PRT-A. P1.S1, de 28.05.2024, que relatámos, todos publicados em www.dgsi.pt.]

No exercício de análise comparativa dos arestos, salvo o devido respeito, a única semelhança radica na aplicação do regime do actual Código de Processo Civil.

Assim, o acórdão recorrido foi proferido no âmbito do incidente de oposição à penhora deduzido pelo executado ora recorrente, que alegou, além do mais, que a penhora da quantia monetária deve ser levantada por motivos de “impenhorabilidade objectiva”, reconduzíveis ao disposto no artigo 787º, nº 1, al) a) b) e c) do CPC.

O incidente de oposição à penhora que corre por apenso à execução está sujeito às regras gerais dos artigos 293º e 295º do CPC (artigos 732º 785º, nº 2, do CPC).

Ao despacho liminar, segue-se a resposta do exequente; na sua falta opera o feito cominatório pleno, seguindo-se eventual da prova oferecida, se necessária e o Juiz decide.

Com este meio de defesa do executado não se confunde a oposição mediante embargos, nos termos do artigo 728º e seguintes do CPC, tomando , como se sabe, o carácter de contra-acção tendente a obstar à produção dos efeitos do título executivo e ou a acção que nele se baseia; terminada a fase dos articulados aplicam-se aos termos subsequentes as normas do processo comum de declaração, conforme preceitua o artigo 732º, nº 2, do CPC.

Matéria que, aliás, o acórdão recorrido abordou, traçando o distinguo de tramitação processual na oposição à execução, excluindo por isso a realização de audiência prévia.

Precisamente, o acórdão fundamento pronuncia-se sobre a alegada preterição de audiência prévia no âmbito de processo, em que simultâneo, o executado deduziu embargos de executado e oposição à penhora, prevalecendo os termos do processo declarativo ao primeiro aplicável.

Equacionou, portanto, a argumentação e o sentido decisório porfiado no domínio das regras do processo declarativo comum, i.e, a realização da audiência prévia e, o pressuposto de dispensa daquele acto, à luz do disposto nos artigos 591º a 593º do CPC.

E, face ao quadro processual, veio a concluir, como sintetiza no sumário - «I. Em face do NCPC, a audiência prévia apresenta-se como diligência praticamente obrigatória. II.A dispensa de audiência prévia apenas está consentida quanto às ações que hajam de prosseguir os seus termos (artigo 593.º do Código de Processo Civil Revisto), sendo ainda concebível, mas apenas no quadro da aplicação do princípio da adequação formal, por via do artº 547º do NCPC, sendo que, nesse caso, será exigível que a questão já esteja suficientemente debatida nos articulados, e isto sem prejuízo de a dispensa ser precedida de consulta das partes, por exigência do princípio do contraditório, como decorre do artº 3º, nº 3, do NCPC. III. Fora destes apertados limites que consentirão a dispensa da audiência prévia, a sua não realização terá como inevitável consequência a verificação de uma nulidade processual, por prática de acto não permitido por lei com influência no exame ou decisão da causa, a enquadrar no artº 195º do NCPC.»

Diverso quadro factual e normativo tratou o acórdão recorrido, versando incidente de oposição à penhora, que segue as regras do julgamento dos incidentes de instância acima indicadas e em cuja tramitação não se contempla a realização de audiência prévia.

Ademais, bem sabe o recorrente, que o tribunal de primeira instância convocou as partes para uma tentativa de conciliação, na qual sempre poderia ter suscitado a alegada dispensa de audiência prévia, circunstância que infirma o conteúdo do ponto 1 da sua pronúncia.

Torna-se evidente que a dissemelhança das decisões assenta, por conseguinte, na dissemelhança de núcleos factuais, objecto de apreciação em cada uma das situações ajuizadas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, que convocam normas adjetivas distintas, e justificam as soluções jurídicas alcançadas.

Em suma, mostra-se afastada qualquer hipótese de contradição jurisprudencial relevante para efeitos do preenchimento da previsão da al. d) do nº 2 do art. 629º do CPC, por decorrência, e idênticas razões, também enquanto fundamento da revista excecional previsto no artigo 672º, nº 1, al c) do CPC.

Pelo exposto, se decide não admitir a revista».

[MTS]