Arresto;
interesse processual*
I. O sumário de RE 10/10/2024 (2478/24.8T8FAR.E1) é o seguinte:
1. A pendência de uma ação de revisão estrangeira condenatória revela séria probabilidade da existência do direito de crédito por ela titulado, permitindo ao credor a instauração do procedimento cautelar de arresto.
2. A existência de uma hipoteca registada a favor do Requerente do arresto torna inútil o decretamento do arresto sobre o imóvel hipotecado, porquanto a finalidade do arresto – meio de conservação da garantia patrimonial do credor – já se encontra assegurada por a hipoteca estar afeta especialmente ao pagamento do crédito do Requerente e, por força da lei, nessa situação, a penhora se iniciar obrigatoriamente pelo bem hipotecado.
3. Também não é de decretar o arresto por o valor do crédito do Requerente não estar totalmente coberto pelo valor máximo da hipoteca, quando não se encontra perfunctoriamente demonstrado que o valor da venda ou adjudicação do imóvel irá cobrir a totalidade daquele crédito e dos demais credores comuns que possam registar penhora anterior ao registo do decretamento do arresto.
II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"Na sentença recorrida, após se enunciarem os requisitos legais do decretamento do arresto, escreveu-se o seguinte:
«Da factualidade indiciariamente provada resulta que os Requeridos estão em dívida para com a Requerente no montante de €864.588,96 (acrescido de juros calculados à taxa de 2,95% por mês ou fracção, a partir de 25/03/2024 até pagamento), não se apresentam a pagá-lo ainda que interpelados, sendo certo que apenas existe bem imóvel – hipotecado, porém, a favor do Requerente – e as quotas de que é titular o 2.º Requerido enquanto sócio da 1.ª Requerida.Todo este circunstancialismo fáctico, a envolver a pessoa colectiva da Requerida – protelação no tempo do pagamento a que se obrigou perante a Requerente, desconhecimento de bens e/ou rendimentos para além dos bens identificados, elevado valor do crédito a favor da Requerente – legitima o receio fundado da Requerente de perda da garantia patrimonial do crédito.Por conseguinte, mostram-se preenchidos os pressupostos de que depende o decretamento do arresto.»
Porém, acrescentou:
«Cumpre, porém, apreciar a questão do arresto do bem imóvel, na medida em que o Requerente já beneficia da garantia especial dada pela hipoteca voluntária.Com efeito, se o efeito útil do arresto é tornar ineficazes, em relação ao credor, potenciais actos de disposição dos bens, de acordo com as regras próprias da penhora (art. 622 Cód. Civil), existindo hipoteca sobre o bem a arrestar, nenhum efeito útil se alcança se pensarmos que a hipoteca acompanhará sempre o bem no caso de alienação. Por outras palavras, o efeito pretendido ou a garantia existe desde logo na hipoteca e não no arresto, e este não acrescenta mais à garantia hipotecária. Acresce dizer que o bem imóvel, por força da hipoteca registada a favor do Requerente, já está afecto especialmente ao pagamento do crédito em causa – cfr. artigo 752.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil e artigo 697.º do Cód. Civil – e que, por força da hipoteca, o Requerente terá o direito de ser pago pelo valor daquele bem com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo – cfr. artigo 686.º, n.º 1, do Cód. Civil.Assim, é manifesta a falta de interesse no arresto que incida sobre bens que constituem a garantia real do próprio credor requerente, considerando que em nada viria reforçar a preservação da garantia patrimonial, pois, de acordo com o disposto pelo artigo 752.º, n.º 1, do CPC, existindo garantia real, a penhora deve incidir desde logo sobre esses bens – cfr. Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, IV Vol., 3ª edição revista e actualizada, Almedina, p. 195, apud Ac. TRL de 05.03.2024, P. 14867/23.0T8LSB.L1-7, disponível em www.dgsi.pt.Não obstante esta garantia especial de que já goza o Requerente, quanto às quotas que o 2.º Requerido detém sobre a 1.ª Requerida, não se afigura o respectivo arresto desmesurado face ao elevado montante do crédito em causa.Em conclusão, deverá o presente procedimento cautelar proceder quanto ao arresto das quotas societárias de que é titular o 2.ª Requerido, devendo improceder quanto ao mais.»
É contra este entendimento que se insurge o Apelante, alegando, em suma, que a hipoteca não cobre todo o valor em dívida e encontrando-se o imóvel onerado com outras hipotecas e penhora, anteriores à do Recorrente, o princípio da proporcionalidade e as regras do bom senso determinam a aplicação da medida preventiva de arresto sobre o imóvel.
Vejamos, então, se assim será.
O arresto preventivo, enquanto providência cautelar conservatória da garantia patrimonial de obrigações civis e comerciais, encontra-se regulado nos artigos 619.º a 622.º do Código Civil (CC) e artigos 391.º a 396.º do Código de Processo Civil (CPC).
O arresto, tal como os restantes procedimentos cautelares, exerce uma função instrumental relativamente ao processo declarativo ou executivo, assegurando que os bens arrestados se irão manter na esfera jurídica do devedor até que seja obtida coativamente a realização do direito do credor.
Visa, pois, impedir que o perigo da demora inevitável do processo (periculum in mora) impeça a total ou parcial eficácia da sentença favorável ao Requerente da providência.
Assim, estipula o artigo 619.º, n.º 1, do CC: «O credor que tenha justo receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor, nos termos da lei do processo», redação que, com exceção do segmento final, é reproduzida no artigo 391.º, n.º 1 do CPC.
De acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 391.º do CPC: «O arresto consiste numa apreensão judicial de bens, à qual são aplicáveis as disposições relativas à penhora, em tudo quanto não contrariar o preceituado nesta secção.»
Compete ao Requerente do arresto alegar e provar de forma sumária «(…) os factos que tornam provável a existência do crédito e justificam o receio invocado, relacionando os bens que devem ser apreendidos, com todas as indicações necessárias à realização da diligência», conforme prescreve o artigo 392.º, n. º1, do CPC.
O arresto será decretado, sem audiência da parte contrária, após serem «Examinadas as provas produzidas (…) desde que se mostrem preenchidos os requisitos legais» (artigo 393.º, n.º 1, do CPC).
Decorre, assim, dos preceitos referenciados que são requisitos cumulativos da procedência deste procedimento cautelar:
(i) A probabilidade séria da existência do direito de crédito invocado pelo Requerente (fumus boni iuris);
(ii) O justo receio de perda de garantia patrimonial do seu crédito (periculum in mora). [...]
No caso sub judice, e sem que o ora Recorrente expresse qualquer crítica, a decisão recorrida considerou indiciariamente provada a existência do crédito da Requerente resultante da entrega do valor mutuado, do incumprimento por parte dos Requeridos da sentença condenatória nos termos supra alegados e documentados nos autos (cfr. ponto 7 dos factos indiciariamente provados).
Efetivamente, também se nos afigura que se encontra perfunctoriamente demonstrada a existência do crédito não obstante ainda não existir decisão a rever e a confirmar a sentença estrangeira que condenou os ora Requeridos.
Como se refere no sumário do Acórdão desta Relação de Évora proferido em 17-10-2013 [Proferido no proc. n.º 1366/12.5TBLGS-A.E1 (Francisco Xavier), em www.dgsi.pt]: «I. A sentença arbitral estrangeira que condena o requerido no pagamento de determinada quantia ao requerente de arresto revela séria probabilidade da existência do direito de crédito por ela titulado, mesmo que ainda não tenha sido revista e confirmada em Portugal.»
A razão de ser de tal entendimento radica no facto de, em sede cautelar, também para «(…) o arresto funciona o padrão de verosimilhança que rege os demais procedimentos cautelares, bastando a verificação de uma séria probabilidade quanto à existência do crédito, ainda que a relação creditícia não tenha sido objecto de pronunciamento judicial (cf., entre outros, Abrantes Geraldes, ob. cit. pág. 196, e Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, pág. 124).»
Resta, assim, aferir do seguindo requisito (justo receio de perda de garantia patrimonial do seu crédito - periculum in mora), ou seja, no caso em apreciação, o fundado receio de que a demora na obtenção de decisão revidenda perca o seu efeito útil por durante a pendência da ação de revisão e confirmação de sentença estrangeira a situação de facto venha a alterar-se de tal modo que a sentença condenatória revidenda perca, na prática, a sua eficácia ainda que venha a ser revista e confirmada para produzir efeitos na ordem jurídica portuguesa.
O arresto ao consistir numa preensão judicial de bens é capaz de antecipar os efeitos derivados da sentença condenatória revidenda no ordenamento jurídico português, sendo, por isso, um meio de conservação da garantia patrimonial do credor. [ANTÓNIO ABRANTES GERALDES, Temas da Reforma do Processo Civil, Almedina, IV Volume, Janeiro de 2003, p. 170.]
Ora, a questão que se coloca é se beneficiando o Requerente de uma hipoteca registada sobre o imóvel pretendido arrestar, o arresto tem algum efeito útil em relação ao justo receio de perda de garantia patrimonial do crédito.
Importando, para o efeito, considerar que o arresto tem como efeito, nos termos do artigo 622.º do CC, tornar «ineficazes em relação ao requerente do arresto», os atos de disposição dos bens arrestado, de acordo com as regras próprias da penhora.
Mas, por outro lado, apesar da hipoteca não impedir a alienação do bem hipotecado, é uma garantia real que incide sobre coisas imóveis ou equiparadas do devedor ou de terceiro, conferindo ao credor o direito de ser pago pelo valor de tais coisas imóveis, ou equiparadas, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo (artigo 686.º, n.º 1, do CC).
Ou seja, o referido efeito útil do arresto já se encontra assegurado pela função da garantia real que decorre da hipoteca.
Efetivamente, constituindo o arresto um meio conservatório de garantia geral e patrimonial do credor de natureza creditícia, ainda que dentro da universalidade dos bens que constituem o património do devedor tenha a função de individualizar os que são objeto de arresto e que no momento da execução vão servir para a satisfação do crédito do arrestante (à semelhança do que sucede com os bens penhorados) constituindo-se como uma penhora antecipada, tal não invalida que, por força da hipoteca registada a favor do Requerente, o imóvel em causa já esteja afeto especialmente ao pagamento do crédito do Requerente (artigo 752.º, n.º 1, do CPC e artigo 697.º do CC).
Assim sendo, e como também se concluiu no Acórdão da Relação de Lisboa de 05-03-2024 [Proferido no proc. n.º 14867/23.0T8LSB.L1-7 (Cristina Silva Maximiano), em www.dgsi.pt (também citado na decisão recorrida). [...]] perante um circunstancialismo semelhante ao dos presentes autos em que se pedia o arresto de bens imóveis hipotecados a favor do arrestante, «(…) por manifesta falta de interesse, o arresto não pode incidir sobre os próprios bens que constituem a garantia real, considerando que a medida em nada viria reforçar a preservação da garantia patrimonial que esta providência visa alcançar, uma vez que, de acordo com o disposto no art.º 752º, nº 1, existindo garantia real, a penhora deve incidir desde logo sobre esses bens – cfr. Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, IV Vol., 3ª edição revista e actualizada, Almedina, p. 195.», lendo-se no sumário deste aresto:
«Não é de decretar o arresto relativamente a bens que já se encontram hipotecados a favor da Requerente.»
Ora, o Apelante contrapõe a esta argumentação que o valor do crédito garantido pela hipoteca é inferior ao valor em dívida e que existem duas hipotecas e uma penhora anteriores ao registo da sua hipoteca, pelo que o arresto do imóvel sempre se justificaria, tanto mais que o valor das quotas arrestadas «pouco garante o crédito do Recorrente», em relação ao remanescente do montante garantido pela hipoteca.
Afigura-se-nos, salvo o devido respeito, que a questão que o Apelante coloca não contradiz a falta de efeito útil do arresto do imóvel pela razões sobreditas, mas apenas evidencia que os bens dos devedores (imóvel e quotas societárias) são insuficientes para a satisfação integral do seu crédito.
Situação que não se altera caso seja decretado o arresto do imóvel, porquanto a insuficiência invocada decorre da situação jurídica já previamente existente, traduzida, desde logo, no valor do imóvel, no valor máximo garantido pela hipoteca a favor do Requerente e por existirem duas hipotecas e uma penhora anteriores que beneficiarão de prioridade no pagamento.
Por outro lado, iniciando-se a penhora sempre pelos bens hipotecados como estipula o artigo 752.º, n.º 1, do CPC, no caso improvável, atento o valor dos créditos [---], do valor da venda do imóvel exceder a totalidade dos créditos garantidos e satisfeitos em sede executiva, sem esquecer a precipuidade das custas (artigo 541.º do CPC), o remanescente do crédito não coberto pela hipoteca sempre seria pago, nessa parte, como crédito comum, uma vez que a penhora constitui um meio de obter o cumprimento coercivo da obrigação, consistindo na apreensão do bem em ordem à conservação da garantia geral relativamente aos bens penhorados, procedendo o tribunal através da venda ou adjudicação à satisfação do crédito em substituição do executado que incumpriu a sua obrigação (artigo 822.º do CC).
Mesmo levando em conta que do n.º 2 do artigo 822.º do CC conjugado com o artigo 762.º do CPC resulta que o arresto é convertido em penhora retroagindo a data da penhora à data do arresto, só se justificaria decretar o arresto com esse fundamento, prevenindo o periculum in mora resultante da delonga processual da tramitação da ação de revisão e confirmação da sentença estrangeira, se o Requerente tivesse alegado e perfunctoriamente demonstrado que existia a probabilidade séria de ser satisfeito por via do referido remanescente do valor da venda e/ou adjudicação e que se perfilavam outros credores comuns que viessem a beneficiar da anterioridade da penhora em relação à data da conversão do arresto em penhora na execução que o Requerente venha a instaurar.
Ora, nem essa alegação existiu, nem existem nos autos elementos que permitam inferir como minimamente plausíveis as referidas circunstâncias.
Bem pelo contrário, como o próprio Apelante reconhece ao invocar a insuficiência do valor do imóvel (mesmo acrescentando o valor das quotas penhoradas) para satisfação do seu crédito.
Em face de todo o exposto, improcede a apelação, confirmando-se a decisão recorrida."
*III. [Comentário] A RE decidiu bem.
Como se refere no acórdão, não é possível tornar inoponível ao arrestante, através da aplicação do disposto no art. 622.º, n.º 1, CC, a alienação voluntária de bens que, na altura do arresto, já se encontram hipotecados.
Em contrapartida, a hipoteca posterior de bens que já se encontram arrestados não obsta a que seja efectivamente inoponível ao arrestante qualquer alienação voluntária desses mesmos bens.
MTS
Como se refere no acórdão, não é possível tornar inoponível ao arrestante, através da aplicação do disposto no art. 622.º, n.º 1, CC, a alienação voluntária de bens que, na altura do arresto, já se encontram hipotecados.
Em contrapartida, a hipoteca posterior de bens que já se encontram arrestados não obsta a que seja efectivamente inoponível ao arrestante qualquer alienação voluntária desses mesmos bens.
MTS