"1. - Do que pode retirar-se destes autos, trata-se – como invoca a própria Reclamante – de processo de inventário, em que, determinada a realização da conferência de interessados, foi requerida (pela própria Cabeça de casal e aqui Reclamante) a avaliação de bens (cfr. art.º 1114.º do NCPCiv.).
Ou seja, foi determinado, a requerimento, que se procedesse à avaliação de determinados bens a partilhar, dispondo assim o art.º 1114.º do NCPCiv.:
«1 - Até à abertura das licitações, qualquer interessado pode requerer a avaliação de bens, devendo indicar aqueles sobre os quais pretende que recaia a avaliação e as razões da não aceitação do valor que lhes é atribuído.
2 - O deferimento do requerimento de avaliação suspende as licitações até à fixação definitiva do valor dos bens.
3 - A avaliação dos bens é, em regra, realizada por um único perito, nomeado pelo tribunal, salvo se:
a) O juiz entender necessário, face à complexidade da diligência, a realização de perícia colegial;
b) Os interessados requererem perícia colegial e indicarem, por unanimidade, os outros dois peritos que vão realizar a avaliação dos bens.
4 - A avaliação dos bens deve ser realizada no prazo de 30 dias, salvo se o juiz considerar adequada a fixação de prazo diverso.».
Deferida, então, a avaliação/perícia, foi nomeada perita, com vista à sua realização (avaliação de imóveis), com o que foi admitida tal prova pericial.
E é no decurso das diligências de avaliação (Em que, segundo referido pelo Tribunal a quo, a Sr.ª Avaliadora “informou, em 14 de março de 2024, ter procedido à avaliação de quatro dos seis imóveis a avaliar”.) que surgem as divergências, com a ora Reclamante a invocar vários vícios, que considera geradores de nulidade processual.
Por isso, arguida a nulidade, decidiu o Tribunal (despacho recorrido, referente à prova pericial em curso) que «Inexiste (…) qualquer falta de representação ou de notificação que invalide qualquer ato processual praticado no processo, improcedendo as nulidades e irregularidades arguidas.» [---]
2. - Dúvidas não restam, pois, de não ter sido a perícia/avaliação indeferida/rejeitada, o que logo afastaria a possibilidade de apelação autónoma à luz do art.º 644.º, n.º 2, al.ª d), do NCPCiv..
Porém, não foi esse o fundamento normativo recursório invocado, posto a Recorrente ter convocado, expressamente, o disposto na al.ª i) do mesmo art.º 644.º, que se reporta aos “demais casos especialmente previstos na lei”, como é o caso da norma do art.º «1123.º, n.ºs 1 e 2, alínea b)» (que a Recorrente também convocou), importando aqui – por ser esse o segmento visado – as “decisões de saneamento do processo” (embora a norma também aluda às decisões “de determinação dos bens a partilhar e da forma da partilha”).
3. - Sobre o que sejam “decisões de saneamento do processo” importa começar por consultar o art.º 1110.º do NCPCiv., com a epígrafe “saneamento do processo e marcação da conferência de interessados”.
Dispõe este preceito legal:
«1 - Depois de realizadas as diligências instrutórias necessárias, o juiz profere despacho de saneamento do processo em que:
a) Resolve todas as questões suscetíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar;
b) Ordena a notificação dos interessados e do Ministério Público que tenha intervenção principal para, no prazo de 20 dias, proporem a forma da partilha.
2 - Findo o prazo estabelecido no número anterior, o juiz:
a) Profere despacho sobre o modo como deve ser organizada a partilha, definindo as quotas ideais de cada um dos interessados;
b) Designa o dia para a realização da conferência de interessados.
(…).» [...]
Na sistemática do processo de inventário, segue-se a conferência de interessados (art.º 1111.º do NCPCiv.), com possibilidade de licitações entre os interessados (art.º 1113.º do mesmo Cód.), onde ainda pode ser requerida a avaliação de bens, como permite o art.º 1114.º do NCPCiv., dispositivo este com a seguinte redação aplicável:
«1 - Até à abertura das licitações, qualquer interessado pode requerer a avaliação de bens, devendo indicar aqueles sobre os quais pretende que recaia a avaliação e as razões da não aceitação do valor que lhes é atribuído.
2 - O deferimento do requerimento de avaliação suspende as licitações até à fixação definitiva do valor dos bens.
3 - A avaliação dos bens é, em regra, realizada por um único perito, nomeado pelo tribunal, salvo se: (…).
4 - A avaliação dos bens deve ser realizada no prazo de 30 dias, salvo se o juiz considerar adequada a fixação de prazo diverso.».
Assim perspetivada a dinâmica desta fase do processo de inventário, cabe definir/delimitar o que deve entender-se por decisão de saneamento do processo (da qual cabe apelação autónoma).
Para Abrantes Geraldes e outros (Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, ps. 652 e seg.), devendo conjugar-se a norma recursiva com o aludido art.º 1110.º do NCPCiv., a formulação abrange todas as decisões – “independentemente do seu conteúdo ou do seu resultado” – “sobre questões suscetíveis de influir na partilha ou na determinação dos bens a partilhar”, aqui se incluindo “qualquer decisão que aprecie, no sentido positivo ou negativo, alguma exceção dilatória ou, mais genericamente, que proceda ao saneamento do processo, independentemente do resultado declarado”.
Mais referem os mesmos Autores (Op. cit., p. 620.) que o art.º 1110.º do NCPCiv. – à semelhança do que ocorre na ação declarativa com processo comum – “instituiu uma fase de saneamento do processo de inventário”, a qual, decorrendo anteriormente à conferência de interessados, “abarca todas as questões que ainda se mostrem controvertidas e sejam suscetíveis de influir na partilha, de modo a permitir que o processo transite, sem mais sobressaltos, para a fase ajustada à concretização da repartição do acervo hereditário” [---].
E acrescentam: «É, pois, nesta ocasião que obrigatoriamente deverão ser apreciadas eventuais exceções dilatórias que ainda não tenham sido objeto de decisão (…) e outras questões de cariz adjetivo que contendam com o prosseguimento dos autos ou ponham em causa a regularidade da tramitação (…). Aí se inscreve também a verificação da eventual falta de citação de algum interessado (…). Também assim determinadas questões que relevam do direito material sucessório que ainda subsistam e cuja resolução interfira nas posteriores operações.» (p. 621).
Tudo para concluir assim: «(…) é propósito da lei concentrar na conferência de interessados a resolução das principais operações necessárias à partilha (…), para o que se mostra necessário expurgar o processo de todas as questões prévias e incidentais que o condicionem, ficando apenas pendentes, em regra, eventuais diligências de avaliação de bens (art. 1114.º) e licitações (art. 1114.º), a deliberação sobre a forma de satisfação do passivo e cumprimento dos legados e demais encargos da herança (…), para além do incidente de inoficiosidade (…)», termos em que a “generalidade das questões de natureza material e de ordem adjetiva deverão estar resolvidas na ocasião em que se procede à conferência de interessados”, por não ser viável “passar para a subsequente fase da conferência de interessados sem que estejam resolvidas todas as questões cuja apreciação não possa ser ou não tenha sido relegada para os meios comuns (…)” (ps. 621-622).
Assim sendo, as decisões sobre o saneamento do processo de inventário, com lugar na fase anterior à da conferência de interessados, têm por objeto todas as questões, colocadas até essa fase, que possam ter influência na partilha, designadamente exceções, questões prévias ou incidentais ou nulidade de ocorrência anterior.
4. - Fora do saneamento do processo estão, pois, todas as questões que venham a colocar-se já na fase da conferência de interessados (a jusante), como as que se reportem a avaliações de bens e licitações ou à forma de satisfação do passivo, cumprimento de legados e incidente de inoficiosidade.
Assim, os incidentes – como a arguição de nulidades processuais – que ocorram no âmbito da avaliação dos bens a partilhar (decurso da prova pericial respetiva) não dizem respeito à fase do saneamento, nem podem ter-se como reportados ao saneamento do processo de inventário.
Dizem respeito – isso, sim – a uma fase posterior, a fase da concretização/realização da partilha, centrada na conferência de interessados e nas decisões ali tomadas (cfr. art.º 1111.º do NCPCiv.), com licitações e avaliação, sendo que a abertura das licitações constitui o termo final para a dedução do requerimento de avaliação de bens (Cfr. Ac. TRC de 20/09/2026, Proc. 748/06.6TBLMG.C1 (Rel. Fonte Ramos), em www.dgsi.pt (em que o aqui relator foi 2.º Adjunto).).
5. - No caso, resulta do despacho de 06/07/2023 que, «Agendada a conferência de interessados (…), veio a cabeça-de-casal adiantar a posição a tomar nessa sede, no sentido de ver avaliados os bens imóveis relacionados, argumentando que o respetivo valor real supera o valor patrimonial», âmbito em que foi deferido o requerido, tendo sido determinada, em conformidade, «a realização de avaliação, ao abrigo do disposto no artigo 1114.º do Código de Processo Civil».
E já na anterior decisão de 11/01/2023 – onde foi decidido o “Incidente de reclamação à relação de bens” – se expendia estarem “Resolvidas as questões suscetíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar, ao abrigo do disposto nos artigos 547.º e 1110.º e ss. do Código de Processo Civil”, assim se determinando a passagem à “forma da partilha”, com designação da “realização de conferência de interessados”.
Ora, como a Recorrente/Reclamante expressamente refere na sua reclamação, interpôs recurso de apelação autónoma da decisão que considerou improcedentes as nulidades por si arguidas “quanto à nomeação de perita para proceder à avaliação dos bens e quanto ao acompanhamento das avaliações”.
Ou seja, tudo matéria incidental no plano da prova pericial (avaliação dos bens) admitida e em curso, após a dita resolução das “questões suscetíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar” e em plena fase da conferência de interessados, licitações e avaliação (art.ºs 1111.º a 1114.º do NCPCiv.).
Assim, inelutavelmente, já depois da fase do saneamento do processo.
A arguição de nulidade processual é, pois, posterior (em termos de invocação e de objeto) à fase do saneamento do processo, para se inserir na fase já da conferência de interessados e avaliação de bens a partilhar.
Donde que não se mostre preenchido o requisitório da norma do art.º 1123.º, n.º 2, al.ª b), do NCPCiv. – também não está em causa, logicamente, a determinação dos bens a partilhar, mas, uma vez determinados estes, a fixação do seu valor, nem a forma da partilha –, em conjugação com a al.ª i) do n.º 2 do art.º 644.º, nem sequer, por outro lado, a al.ª d) deste mesmo dispositivo legal, também do NCPCiv..
Esta pretensão – da Recorrente/Reclamante –, neste contexto processual e probatório, não passaria, noutra perspetiva, de um incidente no quadro da prova pericial já admitida em curso, visando-se, no fundo, abalar/controlar o seu valor processual e probatório.
A esta luz, pois, o despacho recorrido teria de constituir decisão respeitante a incidente suscitado no âmbito da produção da prova pericial já admitida e em produção.
E também não parece que pudéssemos estar perante decisão (a impugnada) cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil, no sentido de uma inutilidade absoluta/irreversível (Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, ps. 159-160.).
Deste modo – seguindo o mesmo Autor –, «não basta que a transferência da impugnação para um momento posterior comporte o risco de inutilização de uma parte do processado, ainda que nesta se inclua a sentença final. Mais do que isso, é necessário que imediatamente se possa antecipar que o eventual provimento do recurso não passará de uma “vitória de Pirro”, sem qualquer reflexo no resultado da ação ou na esfera jurídica do interessado» (Abrantes Geraldes, op. cit., p. 160.).
Aderindo-se aqui a este entendimento, cabe concluir que é de perspetivar que a eventual procedência recursória futura da impugnação da Recorrente – em recurso a interpor, sendo o caso, em momento ulterior – terá um impacto inutilizador limitado ao processado dos autos, podendo levar à inutilização da decisão final a proferir, mas não impedirá que, a final, se faça valer no processo a sua pretensão, se para tal houver fundamento.
Assim, o risco de inutilização corre relativamente ao processado subsequente, podendo estender-se à decisão final, mas não parece poder afetar, na sua substância, a sentença final do pleito.
Se, pois, a Reclamante/Recorrente vier a recorrer a final da decisão ora em questão (com o recurso da sentença homologatória da partilha) e vier a ser-lhe dada razão, tal apenas terá repercussões processuais, implicando a anulação de atos processuais, sem contender com os direitos e posições substantivos das partes/interessados.
Nunca ocorreria, por isso, nesta perspetiva, absoluta inutilidade da impugnação com o recurso da decisão final.
6. - Assim sendo, e salvo o devido respeito, o recurso interposto será intempestivo/prematuro (como apelação autónoma), devendo ser interposto, sendo o caso, ulteriormente, nos termos aplicáveis do disposto no n.º 5 do art.º 1123.º do NCPCiv. (com o recurso da sentença homologatória da partilha).
Em suma – e com todo o respeito devido –, a formulada reclamação não pode proceder, por o recurso interposto não ser admissível como apelação autónoma, o que logo obrigava à sua rejeição, pela 1.ª instância (como, afinal, foi feito), ou ao seu não conhecimento, pela Relação [art.ºs 652.º, n.º 1, al.ªs b) e h), e 655.º, ambos do NCPCiv.], se houvesse sido admitido pelo Tribunal a quo."
[MTS]