Nulidade processual;
poder jurisdicional do juiz*
I. O sumário de RG 10/10/2024 (2451/22.0T8VRL.G1) é o seguinte:
1. Quando está a decorrer o prazo para apresentação da réplica, e por lapso é aberta conclusão ao Juiz e este profere logo sentença, sem se aperceber desse prazo, estamos perante uma nulidade processual, a ser arguida nos termos gerais, que é prévia e separada da sentença.
2. A solução é a declaração da existência dessa nulidade e a anulação da sentença proferida, e o retomar da instância no ponto onde tinha sido incorrectamente interrompida.
3. O despacho que assim decida não sofre de qualquer nulidade e muito menos de esgotamento do poder jurisdicional.
4. É eficaz nos termos do art. 9º,1,2 NRAU para levar ao conhecimento do inquilino a intenção de não renovar o contrato de arrendamento no fim do prazo do mesmo, a comunicação feita por notificação judicial avulsa, que constitui uma forma de comunicação mais solene, mais segura, e mais eficaz do que a ali prevista.
II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"1. A primeira questão que os recorrentes colocam é a de saber se o despacho de 29.06.2023 que revogou o saneador-sentença de 5.6.2023 é nulo por violação do art. 615º, 1, 2 CPC, uma vez que se tinha esgotado o poder jurisdicional do juiz.
A resposta é simples. E negativa.
E repare-se que os próprios recorrentes começam por referir que “é manifesto que, quanto à nulidade, assistiu razão aos AA porquanto tratou-se de um lapso do Tribunal uma vez que quando foi proferido o saneador/sentença estava a decorrer o prazo para a apresentação da réplica”.
Não obstante este reconhecimento do que é óbvio, terminam o seu recurso pedindo que “seja declarado integralmente válido o despacho saneador/sentença proferido em 09.06.2023 e devidamente transitado em julgado por não interposição de recurso por parte dos AA/recorridos”.
Daqui podemos retirar que é pacífico para as duas partes, para o Tribunal recorrido, e para esta Relação, que a sentença de 9.6.2023 não devia ter sido proferida, e só o foi por mero lapso do Tribunal que não se apercebeu que ainda estava em curso o prazo para apresentação da réplica.
Apesar disso os recorrentes querem que essa sentença fique a valer como a decisão final da causa.
Dito isto, vamos então apreciar mais ao pormenor.
O despacho em crise considerou que ao proferir a sentença tinha sido praticado um acto não admissível e omitida uma formalidade essencial idónea a influir no mérito da causa. Isto porque houve um erro na contagem dos prazos, e quando foi proferida a sentença ainda estava a decorrer o prazo para exercício do contraditório. Daí considerou que a sentença estava ferida de nulidade, nos termos do art. 195º, 1 CPC, por não ter sido respeitado o prazo da réplica.
O sentido da decisão é correcto, no sentido de que a sentença não se podia manter, e devia ser apagada da ordem jurídica. O que se pode discutir, do ponto de vista processual, é o caminho para lá chegar.
Dispõe com efeito o art. 195º, 1 CPC que “fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.
Ora, foi praticado um acto que a lei não admitia (a prolação de sentença quando ainda estava em curso o prazo para apresentação da réplica), e é por demais óbvio que essa irregularidade, porque atingia directamente o contraditório, não só podia influir na decisão da causa, como o fez efectivamente.
Estamos pois, sem margem para dúvidas, perante uma nulidade processual.
A mesma foi arguida tempestivamente pela parte interessada.
E o Tribunal fez o que era obrigado a fazer por força do disposto no art. 200º, 3 CPC, e que era apreciar essa arguição de nulidade.
E verificando que assistia razão ao arguente da nulidade, fez mais uma vez o que tinha de fazer: declarou essa nulidade, e como tal considerou sem efeito a sentença proferida, e desencadeou o retomar da instância no ponto onde tinha sido incorrectamente interrompida.
Tudo isto é linear.
Porém, os recorrentes vêm dizer que o despacho que conheceu da nulidade é ele próprio nulo por violação do art. 615º, 1, 2 CPC, uma vez que se tinha esgotado o poder jurisdicional do juiz.
Ora, lendo o art. 615º,1,2 CPC, que elenca causas de nulidade da sentença (e despachos), a única que poderia dar uma aparência de substância à pretensão dos recorrentes é a prevista na alínea d) do nº 1: ocorre nulidade quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Só que, como acabámos de ver, o Juiz era mesmo obrigado a conhecer da nulidade suscitada (art. 200º,3 CPC). Se o não tivesse feito, aí sim, é que haveria nulidade.
E o que dizer quanto ao argumento do esgotamento do poder jurisdicional ?
Dispõe o art. 613º, 1 CPC que “proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa”.
Desde logo, a própria letra da lei retira razão aos recorrentes. O poder jurisdicional que fica esgotado é o que se refere à matéria da causa. O que o Juiz não pode fazer é, na vigência da sentença que proferiu, emitir outra decisão que a contrarie no todo ou em parte. O que o despacho recorrido fez não foi pronunciar-se outra vez sobre a substância da causa: foi antes conhecer de uma questão nova que lhe foi colocada. E ao fazê-lo declarou a existência de uma nulidade, sob a forma da prática de um acto não admissível e omissão de uma formalidade essencial idónea a influir no mérito da causa.
Assim, este argumento do esgotamento do poder jurisdicional improcede integralmente.
Mas os recorrentes vêm ainda invocar em seu auxílio o Acórdão do STJ de 16 de Dezembro de 2021 (Luís Espírito Santo).
Depois de ler com atenção esse aresto, chegamos à conclusão que o mesmo não impõe solução diversa da que agora defendemos.
Vejamos porquê.
A situação processual que o STJ apreciou nesse acórdão, em resumo, era esta:
1º- A Autora instaurou acção de impugnação da resolução em benefício da massa insolvente contra a Ré.2º- A Ré impugnou, suscitando a excepção peremptória da caducidade do direito a instaurar a presente acção.3º- A Autora respondeu pugnando pela improcedência dessa excepção peremptória.4º- Em fase de saneamento dos autos, o juiz de 1ª instância agendou data para a audiência prévia, que foi adiada e reagendada várias vezes, por vários impedimentos e perspectivas goradas de acordo, até que, a certa altura, sem qualquer aviso, foi proferida sentença que julgou procedente a excepção peremptória de caducidade, com a explicação de que o estado do processo permitia, sem necessidade de mais prova, a apreciação total dos pedidos deduzidos.5º- Sucedeu ainda que a parte interessada não veio arguir a nulidade, nos termos do artigo 195º CPC, no prazo de dez dias consignado nos artigos 199º, 1 e 149º, 1 CPC.
Ora, o Supremo Tribunal de Justiça escreveu, perante isto:
“a questão jurídica essencial que se discute na presente revista tem a ver com a licitude ou ilicitude da opção assumida pelo juiz a quo, contrariando a tramitação até aí coerentemente seguida nos autos (e por si determinada enquanto seu titular) quanto à designação de audiência prévia nos termos do artigo 591º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, ao dispensar de surpresa, implicitamente, tal diligência processual, sem notificação ou aviso às partes, com o singelo fundamento de que “tendo em conta que o estado do processo permite, sem necessidade de mais prova, a apreciação total dos pedidos deduzidos, o Tribunal decide conhecer imediatamente do mérito da causa, nos termos dos artigos 591.°, n.° 1, alínea d) e 595.°, n.° 1, alínea b), do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do artigo 17.°, n.° 1, do CIRE”, passando a conhecer, em termos finais, do mérito da causa”.
Prossegue o Supremo:
“É assim inquestionável que o juiz a quo omitiu, sem qualquer tipo de justificação séria ou fundamentação adequada, a realização de uma diligência processual que estava estritamente vinculado a designar nestas circunstâncias, havendo simultaneamente procedido à (implícita) dispensa da realização da audiência prévia sem se encontrarem reunidos os requisitos processuais indispensáveis para esse efeito. Importa, portanto, apurar se tal violação das regras do processo corresponde, tal como o recorrente lhe aponta, a uma nulidade da própria sentença, que desse modo foi inquinada pelo vício formal do excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), 2ª parte do Código de Processo Civil, ou se se trata de um mera e comum nulidade processual, enquadrável na previsão genérica do artigo 195º, nº 1, do Código de Processo Civil, e invocável no prazo de dez dias sob pena de sanação (conforme entendeu o acórdão recorrido)”.
De seguida, o Acórdão do Supremo recorda que “quando está em causa o cometimento de uma nulidade processual coberta pela decisão judicial que a acolhe (in casu, o saneador-sentença recorrido), o meio adequado para invocar tal infracção às regras do processo é o recurso contra essa decisão, a apresentar junto da instância superior (se for admissível), e não a sua reclamação directamente perante o juiz a quo”.
E, mais adiante, referindo-se ao saneador / sentença proferido, diz:
“trata-se, de resto, de um exemplo perfeito e acabado de um acto ferido de nulidade que é totalmente coberto pelo despacho judicial através do qual o juiz de 1ª instância, a destempo, optou por conhecer de mérito, sem se importar com o direito especialmente conferido às partes de, previamente, alegarem de facto e de direito sobre a questão de fundo que foi determinante para a sorte da lide”.
E referiu ainda o Supremo que o facto de a parte interessada não ter arguido a nulidade dentro do prazo legal não pode sanar a gritante e manifesta ilegalidade cometida pelo juiz ao conhecer de mérito da causa na fase do saneamento, fora dos exactos limites que lhe foram legalmente impostos para o efeito, com supressão, totalmente incompreensível e arbitrária, de uma diligência judicial de realização obrigatória, que se destinaria, no fundo, à possibilidade de prévia discussão contraditória – perante o juiz em sede audiência prévia e não em qualquer outro momento processual – acerca da suficiência dos elementos reunidos para a decisão imediata da causa e das razões de direito que em todo o caso a condicionariam.
Aqui chegados, já podemos apontar as duas flagrantes diferenças entre o caso tratado por este aresto do Supremo e o caso que foi agora trazido perante esta Relação.
Primeiro, no nosso caso a parte interessada veio atempadamente arguir a nulidade (ao contrário do que sucedeu no caso que o STJ apreciou). E perante isso, podemos perguntar o que deveria o Juiz do processo ter feito: indeferido a essa arguição, quando era óbvia e ostensiva a nulidade ? Não cremos que o pudesse fazer, muito menos com o argumento de que estava esgotado o seu poder jurisdicional, o qual, é por demais óbvio, não estava, porque se tratava de decidir uma questão nova, que ainda não lhe tinha sido colocada antes.
E segundo, e talvez a principal e substantiva diferença, no nosso caso não é possível afirmar que a nulidade processual foi assumida e coberta por uma decisão judicial. No caso que o Supremo decidiu há uma óbvia e assumida atitude por parte do Juiz da primeira instância em ignorar a necessidade de marcar audiência prévia, e avançar logo com o conhecimento da substância da causa. No caso dos nossos autos, o que houve foi, pura e simplesmente, um erro na contagem de um prazo. Que levou a que fosse proferida uma decisão quando ainda não podia ser proferida, e que quando detectado, foi logo corrigido. A sentença em causa não assumiu o erro na contagem do prazo, e muito menos declarou que o mesmo já tinha decorrido. Pura e simplesmente, o Juiz da causa não se apercebeu que tal prazo ainda estava em curso. Se da leitura da sentença se pudesse retirar que o Juiz tinha ponderado que o prazo para a réplica estava esgotado, ou, dizendo melhor, que o entendimento de que o prazo estava esgotado tinha respaldo numa decisão judicial, então aí poderíamos afirmar que essa questão processual do decurso do prazo tinha sido incorporada na própria sentença, e já não estaríamos perante uma nulidade processual mas antes perante uma decisão errada, a impugnar por via de recurso. Ao invés, a sentença foi proferida porque, podemos dizer, ocorreram dois actos processuais que não deveriam ter ocorrido (a abertura de conclusão antes do prazo e a subsequente prolação de sentença). E que tiveram óbvia influência na decisão. Daí verificou-se nulidade processual, que foi arguida, conhecida, sanada, e bem.
Para nós, a melhor forma de olhar para esta situação é a de que foi de facto cometida uma nulidade processual, numa das formas que ela pode revestir. Ainda para mais, neste caso, essa nulidade atingiu em cheio o princípio do contraditório. E pode suceder que a sentença que seja proferida a seguir a essa nulidade seja absolutamente inatacável. Ou seja, que decide a substância da causa de maneira inteiramente certa, de acordo com o direito positivo, e respeitando a interpretação que deste é feita pela Jurisprudência e pela melhor Doutrina.
Se não considerarmos que a questão da nulidade processual é prévia e separada da sentença, o que sucederá será que esta, sendo inatacável em si mesma, transita em julgado, cobrindo dessa forma uma grosseira violação do contraditório.
Bem andou o Tribunal recorrido em ter conhecido da nulidade e ter daí retirado as devidas e necessárias consequências."
*III. [Comentário] a) A RG decidiu bem. É claro que não há nenhum esgotamento do poder jurisdicional do juiz quando este responde à alegação por uma das partes de uma nulidade processual.
b) O que não se acompanha é o decidido no acórdão do STJ referido na fundamentação do acórdão da RG.
Quando um tribunal profere uma decisão sobre a caducidade do direito do autor sem que a questão tenha sido previamente discutida na audiência prévia, não se pode dizer que o que "está em causa [é] o cometimento de uma nulidade processual coberta pela decisão judicial que a acolhe (in casu, o saneador-sentença recorrido)". Salvo o devido respeito, não é assim: o tribunal não decidiu que, antes de decidir, não tinha de ouvir as partes sobre a invocada caducidade; o que o tribunal fez foi apreciar a caducidade sem que estivessem reunidas as condições para tal.
Aliás, a seguir-se a orientação do STJ, um tribunal deixaria de cometer uma nulidade processual a partir do momento em que, depois de omitir um acto devido ou praticar um acto proibido, proferisse uma decisão. Mesmo que o tribunal omitisse um acto devido ou praticasse um acto proibido, a nulidade deixaria de existir no momento em que o tribunal proferisse, na sequência do acto omitido ou do acto praticado, uma decisão. Como se sabe, não é assim.
MTS