Erro de julgamento;
omissão de pronúncia; excesso de pronúncia
1. O sumário de RP 8/10/2024 (8843/22.8T8PRT.P1) é o seguinte:
I. A desconsideração pelo tribunal de factos notórios não consubstancia nulidade da sentença por omissão de pronúncia, mas um eventual erro de julgamento quanto à matéria de facto.
II. A pronúncia sobre questões de facto para as quais o tribunal não estivesse habilitado a responder por exigir conhecimentos especiais, não se tendo socorrido da prova pericial, não consubstancia nulidade da sentença por excesso de pronúncia, mas eventual erro de julgamento quanto à matéria de facto.
III. A falta de indicação nas conclusões de todos os factos impugnados no corpo das alegações não conduz à rejeição total do recurso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, apenas não serão apreciados os concretos pontos de facto que não constem das conclusões.
IV. Se não forem mencionados nas conclusões os concretos meios de prova em que se alicerça a impugnação relativamente a cada facto impugnado, nem indicadas com exactidão as passagens da gravação dos depoimentos em que se funda o recurso, mas se o tiverem sido de forma minimamente satisfatória no corpo das alegações tal bastará para se considerarem cumpridos os ónus mencionados no nº 1 al. b) e nº 2 al. a) do art. 640º do CPC.
V. Não ficando provado que a vendedora do imóvel haja realizado obras que tenham introduzido alterações nas redes prediais que só pudessem ser consideradas válidas depois da aprovação pela A..., nem que tivesse omitido alguma obrigação legal ou contratual que impusesse a actualização dessa infraestrutura, não incorre a vendedora em responsabilidade contratual, designadamente por venda de coisa defeituosa, ainda que as A... notifiquem os actuais proprietários para procederem à actualização daquela infraestrutura.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"Nulidades da sentença
Sob as Conclusões 2 a 4 os Apelantes aludiram de forma confusa à violação pelo tribunal a quo do art. 5º do CPC, de não se ter pronunciado sobre questões que deveria ter conhecido e em simultâneo de ter apreciado questões de que não podia tomar conhecimento, fazendo alusão à desconsideração de factos notórios e factos de que o tribunal tinha obrigação de conhecer em virtude do exercício das funções, bem como à questão de o tribunal não possuir conhecimentos especiais acerca de questões urbanísticas e da construção e não se ter socorrido de especialistas conforme disposto nos arts. 388º do CC e 467º nº 1 do CPC, sem contudo ter tirado qualquer consequência dessas alegações, mormente pedindo que se declarasse nula a sentença recorrida, tendo-se limitado a peticionar a revogação da sentença recorrida, substituindo-se por outra que julgue procedentes os pedidos formulados na pi.
As nulidades processuais têm de ser arguidas perante o tribunal que alegadamente as cometeu, não podendo ser objecto de conhecimento em primeira linha pelo Tribunal de 2ª Instância.
Com elas não se confundem as nulidades da sentença, taxativamente contempladas no art. 615º nº 1 do CPC, nulidades essas que não sendo de conhecimento oficioso devem ser expressamente alegadas pelo recorrente para que possam ser apreciadas.
Embora os Apelantes não tenham feito referência expressa ao art. 615º nº 1 al. d) do CPC, argumentaram que o juiz deixou de se pronunciar sobre questões que devia apreciar e simultaneamente conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento.
Adiantamos desde já que resulta, porém, evidente da leitura das conclusões de recurso que não estamos perante qualquer nulidade da sentença, estamos sim perante uma manifestação de inconformismo com a decisão sobre a matéria de facto prolatada pelo tribunal recorrido, e a invocação de erro de julgamento quanto ao mérito, erros de julgamento que foram igualmente suscitados nas demais conclusões de recurso e serão apreciados em sede própria de apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto e de julgamento de mérito.
Perante a alegação acima mencionada, embora os Apelantes não se tenham socorrido especificamente deste preceito legal, aludem ao que consta do art. 615º nº 1 al. d) do CPC, o qual tem o seguinte teor
“É nula a sentença quando:(…)d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;”
Vejamos.
Este comando normativo é consequência do princípio consagrado no art. 608º, n.º 2 do CPC, em que se prescreve que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
Segundo ensinamento de Miguel Teixeira de Sousa, o aludido princípio é um “corolário do princípio da disponibilidade objectiva (arts. 264º, n.º 1 e 664º, 2ª parte) que significa que o tribunal deve examinar toda a matéria de facto alegada pelas partes e analisar todos os pedidos formulados por elas, com excepção apenas das matérias ou pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se tornar inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta fornecida a outras questões. (…) Por isso é nula a decisão quando o tribunal deixa de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar (art. 668º nº 1 al. d) 1ª parte), ou seja, quando se verifique uma omissão de pronúncia. (…) O tribunal não tem de se pronunciar sobre todas as considerações, razões ou argumentos apresentados pelas partes, desde que não deixe de apreciar os problemas fundamentais e necessários à decisão da causa. (…) a decisão é nula quando o tribunal conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (art.668º, nº 1, al. d) 2ª parte), ou seja, quando a decisão esteja viciada por excesso de pronúncia.” [Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Código de Processo Civil, Lex, 1997, pág. 220-221.]
Questões para efeito do referido preceito legal são «… todas as pretensões processuais formuladas pelas partes que requerem decisão do juiz, bem como os pressupostos processuais de ordem geral e os pressupostos específicos de qualquer acto (processual) especial, quando realmente debatidos entre as partes» [A. Varela RLJ, ano 122º, pág. 112.], não se confundindo com os argumentos, razões ou pressupostos (de facto e de direito) em que a parte funda a sua posição sobre a questão suscitada.
Diferente das questões a decidir referidas no citado art. 608.º n.º 2 do CPC, são os argumentos ou razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista.
Existe nulidade da sentença quando o juiz deixa de conhecer a questão/pretensão que devia conhecer, mas já não existe nulidade da sentença se apenas deixa de apreciar qualquer argumento ou razão jurídica suscitada pela parte em abono da sua pretensão.
Quando as partes submetem ao Tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o Tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão». [Alberto dos Reis, CPC Anotado, volume V, 1984, pág. 143.]
Este entendimento tradicional decorrente da lição do Prof. Alberto dos Reis, tem sido perfilhado pela Jurisprudência, a qual, de forma reiterada, perfilha a posição de que a não apreciação de um ou mais argumentos aduzidos pelas partes não constitui omissão de pronúncia, pois que o Juiz não está obrigado a ponderar todas as razões ou argumentos alegados nos articulados para decidir certa questão de fundo, estando apenas obrigado a pronunciar-se «sobre as questões que devesse apreciar» ou sobre as «questões de que não podia deixar de tomar conhecimento.» [AC STJ de 7.07.2016, relatora Consª. Ana Luísa Geraldes, AC STJ de 21.10.2014, relator Consº. Gregório Silva Jesus e AC STJ de 8.02.2011, relator Consº. Moreira Alves, www.dgsi.pt.]
Em suma, ao Tribunal cabe o dever de conhecer do objecto do processo, definido pelo pedido deduzido (à luz da respectiva causa de pedir) e das excepções deduzidas, devendo apreciar e decidir todas as questões trazidas aos autos pelas partes e todos os factos em que assentam, mas já não está obrigado a pronunciar-se sobre todos os argumentos esgrimidos nos autos.
Em função desse condicionalismo, torna-se evidente que a decisão recorrida não padece da referida nulidade, nem por omissão de pronúncia, nem por excesso de pronúncia, porquanto mesmo que tivesse desconsiderado factos notórios não consubstanciaria uma omissão de pronúncia mas um erro de julgamento quanto a matéria de facto e, ainda que porventura se tivesse pronunciado sobre questões de facto para as quais poderia não ter conhecimentos especiais, não se tendo socorrido da prova pericial, tal não consubstancia qualquer excesso de pronúncia mas quando muito uma insuficiência de prova a alegar como fundamento de impugnação da decisão sobre os pontos concretos da matéria de facto que porventura exigissem o recurso a esse tipo de prova.
Essa eventual insuficiente fundamentação de facto por falta de recurso a um meio de prova apenas relevaria em sede de alegação de erro quanto ao julgamento da matéria de facto, não consubstanciando qualquer questão de que o tribunal não podia tomar conhecimento, pelo contrário, contrariamente ao defendido pelos Apelantes impunha-se ao tribunal que conhecesse dos factos vertidos nos temas de prova 1, 4 e 5, socorrendo-se das provas requeridas pelas partes e, saber se a prova pericial devia ou não ter sido determinada oficiosamente pelo tribunal seria quando muito um argumento a utilizar na impugnação da decisão sobre a matéria de facto, não traduzindo qualquer nulidade da sentença por omissão de pronúncia.
Diferente das pretensões deduzidas, são os argumentos de facto e as provas utilizadas pelo tribunal a quo na decisão proferida quanto à matéria de facto por si considerada para a resolução das pretensões formuladas e que lhe incumbia decidir.
Relativamente à invocada nulidade por omissão de pronúncia, a falta de razão dos Apelantes é ainda mais evidente, porquanto aquilo que para os Apelantes parece evidente são meras asserções conclusivas, não consubstanciam factos notórios ou do conhecimento geral que devessem ser atendidos pelo tribunal a quo na sentença recorrida e ainda que o fossem, o que não concedemos, a desconsideração de factos não alegados pelas partes não traduz omissão de pronúncia sobre questão que devesse apreciar.
Contrariamente ao sustentado pelos Apelantes o error in judicando quer em matéria de facto, quer em matéria de direito não se confunde com as nulidades da sentença, nem a eventual violação do art. 607º nº 3 e 5 do CPC traduz um excesso de pronúncia que conduza à nulidade da sentença prevista no art. 615º nº 1 al d) do CPC, sendo certo que os Apelantes nem sequer concretizam essa pretensa violação.
A não apreciação de algum argumento ou razão jurídica, ou a não apreciação ou valoração de um meio de prova arrolado pela parte pode traduzir, eventualmente, um erro de julgamento, mas não traduz qualquer nulidade por omissão de pronúncia. [Neste sentido, entre outros, Ac STJ de 16.11.2021, Proc nº 2534/17.9T8STR.E2.S1.]
Os Apelantes podem discordar dos fundamentos de facto e/ou dos meios de prova em que se alicerçou a decisão recorrida, não podem é alegar que a sentença é nula por excesso ou omissão de pronúncia quando se limitam a não concordar com o sentido da pronúncia emitida pelo tribunal, porque nesse caso não se está perante uma nulidade mas uma discordância jurídica a escalpelizar em sede de mérito da decisão, a título de erro do julgamento de facto, ou erro de julgamento de direito."
[MTS]