"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



18/06/2025

Jurisprudência 2024 (190)


Incidente de habilitação;
extemporaneidade do incidente; ónus da prova


1. O sumário de RP 11/12/2024 (288/20.0T8ILH.P1) é o seguinte:

I - À luz do disposto no art. 351º, nº 3 do CPC, numa acção proposta depois de falecido o autor e pretendendo sustentar-se que o processo se não extinga numa das hipóteses previstas no art. 1175º do C. Civil, haverá o advogado que exerceu o mandato depois do falecimento do mandante alegar que o fez sem que soubesse desse falecimento, ou as razões pelas quais, sabendo-o, propôs a acção, em ordem a prevenir prejuízos para os respectivos herdeiros. E de tudo o que alegar deve oferecer a respectiva prova, assim se processando o incidente.

II - O incumprimento do ónus de formulação de requerimento probatório não é susceptível de ser ignorado e superado por via de um convite a aperfeiçoamento.

III - Perante um requerimento instrutório, num incidente de habilitação de herdeiros, em que apenas é oferecida prova sobre a qualidade dos sucessores da parte falecida, mas nada é requerido quanto à verificação de uma excepção apta a permitir a continuidade de uma acção proposta depois do falecimento da autora, excepção esta impugnada pela parte contrária, não cabe ao tribunal convidar o respectivo Il. Mandatário a vir indicar a prova dessa excepção (o seu conhecimento tardio daquele falecimento). Isso constituiria puro atropelo do regime estabelecido no art. 293º do CPC, não legitimado, nem pelo princípio da cooperação (art. 7º), nem pelo princípio do inquisitório (art. 411º).


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas nas conclusões, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC - é nelas que deve identificar-se o objecto do recurso.

No caso, as conclusões oferecidas são prolixas, repetitivas e prejudiciais para a identificação das questões em razão das quais os recorrentes entendem dever ser revogada a decisão de absolvição da instância.

Surpreendem-se ali, todavia, as seguintes questões a decidir:

1 – Se, nas circunstâncias do caso, a Il. Mandatária alegou devidamente o desconhecimento da morte da autora/mandante, o que impede a ocorrência da caducidade do mandato ao tempo da propositura da acção.
2 – Se não era condição, para esse efeito, a alegação de factos aptos a justificar o desconhecimento da morte do mandante, ao tempo da propositura da acção;
3 – Se, caso se conclua pela necessidade dessa alegação, deveria o tribunal ter convidado ao aperfeiçoamento do requerimento;
4 – Se o mandato não caducou por morte da mandante, porque daí adviriam prejuízos para os seus herdeiros;
5- Se a situação em apreço não configura a propositura de uma acção com falta de procuração, o que obsta à condenação da Il. Mandatária em custas.
6 – Se foi omitido um necessário convite à sanação da falta de procuração, o que determina a nulidade da decisão de condenação em custas.
*
Para a discussão das questões apontadas, é útil ter presente, além dos elementos processuais anteriormente mencionados, o requerimento apresentada em 26/1/2024, em que a Il. Mandatária dá conta do falecimento da autora. Consta do seguinte:

“FF, Mandatária da Autora AA, vem expor e requerer a V. Exa, o seguinte:
1º - A aqui Signatária, ao ser notificada do despacho saneador proferido nos presentes autos tentou contactar a aqui Autora,
2º - Tendo tomado conhecimento, através da sobrinha da Autora, que a Autora havia falecido.
3º - Pelo que se requer a junção aos autos da sua certidão de óbito -
4° - Mais se requer que se declare suspensa a instância nos termos do art. 269°, n°1 a) do C.P.C., informando-se, desde já, que irá ser suscitando o competente incidente de habilitação de herdeiros.”

Em 29/1/2024 foi apresentado tal requerimento de habilitação de herdeiros, por BB e EE, que o tribunal determinou haver de ser processado nos próprios autos, e não por apenso.

Seguidamente, após oposição ao incidente de habilitação, foi apresentado requerimento, subscrito pela Il. Mandatária dos apelantes, onde se destaca a seguinte alegação (descartando-se a argumentação de direito):

“1º Efetivamente, a procuração a favor da aqui signatária foi outorgada, pela Autora AA, em 05.06.2018,
2º Sendo que, apenas em 18.06.2020 foi apresentada em juízo a petição inicial que deu origem aos presentes autos,
3° Ora, a aqui Signatária reuniu várias vezes com a Autora com vista a obter toda a informação e documentação necessária para intentar a presente acção,
4º Sendo que, a última ver quem Signatária esteve reunida com a Autora foi nesse dia 17.05.2019
5º Tendo nessa data, a aqui Signatária ficado munida de todos os documentos e de todas as informações necessárias para intentar a presente acção,
6º Não tendo, após a referida data, a aqui Signatária tido qualquer outro contacto com a Autora, nem com nenhum dos seus familiares,
7º Acontece que, devido ao excesso de trabalho no escritório da aqui Signatária e dos períodos de confinamento derivados da pandemia Covid- 19 que assolou o nosso pais e o mundo, só foi possível à aqui Signatária dar entrada do presente processo em 18.06.2020.
8° Ora, conforme requerimento junto aos presentes autos em 26.01.2024, a aqui Signatária, ao ser notificada dos despacho saneador proferido nos presentes autos em 03.01.2024, tentou contactar a aqui Autora,
9º Tendo, só nessa data, tomado conhecimento, através da sobrinha da Autora, que a Autos havia falecido,
10º Facto este que foi imediatamente comunicado aos presentes autos pela aqui Signataria e consequentemente requerida a correspondente habilitação de herdeiros.(…)”.
*
Dispõe o art. 1175º do C. Civil, no respectivo nº 2, para o que aqui interessa, que a morte do mandante só faz caducar o mandato a partir do momento em que seja conhecida do mandatário, ou quando da caducidade não possam resultar prejuízos para o mandante ou seus herdeiros.

É também pertinente, designadamente face aos argumentos dos apelantes, considerar o disposto nos nºs 1 e 3 do art. 351º do CPC, de onde resulta que, se o autor falecer depois de ter conferido mandato para a proposição da ação e antes de esta ter sido instaurada, pode promover-se a habilitação dos seus sucessores quando se verifique algum dos casos excecionais em que o mandato é suscetível de ser exercido depois da morte do constituinte.

Trata-se, neste caso, de uma “habilitação preliminar” no âmbito de um incidente de habilitação, (Geraldes, Pimenta e Pires de Sousa, CPC Anot, Vol. I, pg. 406, notas 5 e 6 ao art. 351º), na qual os requerentes devem alegar desde logo os factos demonstrativos da legitimidade dos sucessores da parte falecida.

Constata-se, assim, algum paralelismo entre a situação prevista nesse nº 3 e a do falecimento do réu que apenas se vem a conhecer em consequência das diligências tendentes à sua citação, prevista no nº 2 da mesma norma. Aí o legislador pretende assegurar o aproveitamento da instância já iniciada (Geraldes, ob e loc cit., nota 3).

Todavia, na hipótese do falecimento do autor, a instância iniciar-se-á também, mas o seu aproveitamento apenas é tido por justificado caso se verifiquem as circunstâncias que motivam que o mandato mantenha a sua eficácia mesmo depois da morte do mandante, previstas no art. 1175º do C. Civil: quando o mandato não deva ter-se por caducado por a morte do mandante não ser conhecida pelo mandatário, ao tempo do acto praticado no exercício do mandato, ou quando da caducidade possam resultar prejuízos para os herdeiros.

Como refere Alberto dos Reis (CPC Anotado, vol. I, pg. 879), se inexistir risco de tal prejuízo ou se o mandatário propuser a acção sabendo que o mandante já havia falecido, “o processo tem, em tal caso, de ficar sem efeito”. Prossegue este professor: “Verificado algum dos casos excepcionais, é ao mandatário do autor que incumbe fazer a prova de que podia fazer uso do mandato, isto é, da urgência da acção ou da ignorância da morte. (…) incumbe ao mandatário alegar e provar que à data da proposição estava na ignorância da morte do seu constituinte”. A esta mesma solução, que citam, aderem Isabel Alexandre e Lebre de Freitas, CPC Anot, vol. I, pg. 693).

Esta solução é perfeitamente consentânea com a estrutura procedimental do incidente, a que se aplicam as regras do processo comum, atento o disposto no art. 549º. Assim, tal como dispõe a al. d) do nº 1 do art. 552º do CPC, deve o requerimento em que se dá notícia do falecimento do autor, quando apresentado pelo respectivo mandatário, conter os factos essenciais que justificam que tenha exercido o mandato para além do falecimento do mandante e, em ordem ao prosseguimento da acção, sendo essa a vontade, a promoção da habilitação dos respectivos sucessores. E, bem assim, o oferecimento da prova dos factos alegados, em observância do disposto no art. 293º do próprio processo.

Como antes se referiu, havendo de sustentar-se uma pretensão contrária à extinção do processo numa das hipóteses previstas no art. 1175º do C. Civil, haverá o advogado que exerceu o mandato depois do falecimento do mandante alegar que o fez sem que soubesse desse falecimento, ou as razões pelas quais, sabendo-o, propôs a acção, em ordem a prevenir prejuízos para os respectivos herdeiros. E de tudo o que alegar deve oferecer a respectiva prova, assim se processando o incidente.

Trata-se, cumpre ter presente, de justificar uma solução excepcional, tolerada pelo legislador por razões de ordem pragmática, pois que o resultado normal da situação, isto é, da propositura de uma acção depois de falecido o autor, com a natural caducidade do mandato que era pressupostos dessa propositura, seria a da extinção da instância.

No caso em apreço, do requerimento apresentado em 26/1/2024, em que a Il. Mandatária dá conta do falecimento da autora, extrai-se não apenas a informação sobre o falecimento, mas também a afirmação de que a signatária só após ser notificada do despacho saneador é que tentou contactar a autora e que então é que tomou conhecimento, por isso lhe ter sido relatado através da sobrinha, que a mesma havia falecido. Sucessivamente, logo a 29/1, foi deduzido o incidente de habilitação de herdeiros, no qual apenas foi oferecida prova relativamente á sucessão.

Depois, na sequência da oposição oferecida ao incidente requerido pelos sucessores da falecida, a Il. Mandatária complementou o alegado sobre o seu tardio conhecimento do falecimento da autora, tratando de o justificar, mas continuando sem oferecer qualquer prova do alegado.

É, assim, fácil de constatar que a Il. Advogada não deixou de invocar, logo quando veio informar do falecimento da autora, que apenas teve conhecimento desse facto em momento ulterior à propositura da acção, designadamente após a notificação do saneador que havia sido proferido; mas também o é que não requereu logo o incidente de habilitação, embora o tenha feito no 1º dia útil seguinte (26/1: sexta-feira; 29/1: segunda-feira), bem como que não ofereceu qualquer prova sobre as circunstâncias que pudessem levar o tribunal a dar por verificado aquele pressuposto do art. 1175º, isto é, o conhecimento do falecimento em momento ulterior à propositura da acção.

Atento o regime anteriormente descrito, só pode concluir-se que o mesmo não foi estritamente cumprido."

*3. [Comentário] Salvo o devido respeito, não se acompanha a posição da RP.

A situação em análise no acórdão tem algumas semelhanças com a previsão do disposto no art. 351.º, n.º 3, CPC (e não tanto com o estabelecido no n.º 2 deste preceito). Pode efectivamente concluir-se que o que vale para a hipótese em que o falecimento do autor ocorreu antes da propositura da acção também deve valer para a hipótese em que só se tem conhecimento do falecimento do demandante antes da instauração da acção já no decurso desta.

A consequência da aplicação do n.º 3 do art. 351.º do CPC é a remessa para o disposto no art. 1175.º CC. Sendo assim, o que teria importado verificar era se, no caso concreto, ocorria algum das situações que justifica a dilação da caducidade do mandato. Em teoria, não se pode excluir que da caducidade imediata do mandato resultassem prejuízos para os herdeiros da autora, pelo que, nesta base, não havia motivo para considerar o mandato caducado antes de a acção pendente vir a terminar.

É verdade que a mandatária poderia ter invocado este argumento (e, ao certo, não se sabe se o fez). No entanto, a continuação do mandato para evitar prejuízo para os herdeiros não é matéria de facto, mas antes um critério de decisão que o tribunal poderia ter aplicado oficiosamente (art. 5.º, n.º 3, CPC). Aliás, mesmo que assim não se entendesse, o que então se poderia exigir era a prova pelos herdeiros de que têm interesse em que a acção que o de cuius ia instaurar seja agora proposta por eles mesmos.

b) A RP baseia a sua solução no não cumprimento pela mandatária de um ónus da prova: a mandatária não fez prova do conhecimento tardio da morte da autora. Para isso, baseia-se na opinião de Alberto dos Reis, esquecendo, em todo o caso, que o Mestre escreveu muito antes da vigência do art. 1175.º CC e -- principalmente -- do critério de repartição do ónus da prova que consta do art. 343.º, n.º 2, CC.

Na verdade, a RP, ao pretender que a mandatária prove que não teve conhecimento do falecimento da autora antes do momento em que a comunicou ao tribunal, está a violar a repartição do ónus da prova que consta do art. 343.º, n.º 2, CC. Se a RP entende que tem dúvidas sobre se o incidente de habilitação foi deduzido no momento adequado, era aos demandados que incumbia a prova da dedução extemporânea daquele incidente. Ao não entender assim, a RP violou o disposto no art. 343.º, n.º 2, CC.

Por fim, cabe referir que a orientação de Alberto dos Reis tem ainda um outro inconveniente: implica a prova de um facto negativo. Não se vê muito bem como é que a mandatária poderia ter provado que, antes do contacto a propósito do proferimento do despacho saneador, não tinha tido conhecimento do falecimento da autora. Será que, por exemplo, a prova de que a mandatária não esteve no funeral da autora constituiria prova convincente desse desconhecimento?
 
[MTS]