Processo de inventário;
prova pericial*
1. O sumário de RP 8/10/2024 (2004/21.0T8PRD-A.P1) é o seguinte
I - Não obstante o aditamento do artigo 1114º, nº 3 do CPC operado pelo o artigo 5º da Lei 117/2019 de 13.09), mantém-se o regime geral da prova pericial, consagrado nos artigos 487º a 489º, aplicável subsidiariamente ao processo de inventário, por força do disposto no artigo 549º do CPC.
II - A não realização de uma segunda perícia no processo de inventário não depende daquele aditamento, mas do não cumprimento das exigências do artigo 487º nº 1 do CPC.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"C) APRECIAÇÃO DA QUESTÃO EM RECURSO.
Vejamos.
Da (in)admissibilidade legal.
O recorrente enceta a discussão relativa à admissibilidade, ou não, de uma segunda perícia, no âmbito de um processo de inventário, centrando-se na controvérsia doutrinária e jurisprudencial surgida a partir de 2019 com o aditamento ao Código de Processo Civil do artigo 1114º com a epígrafe “avaliação” e que reza o seguinte: 1 - Até à abertura das licitações, qualquer interessado pode requerer a avaliação de bens, devendo indicar aqueles sobre os quais pretende que recaia a avaliação e as razões da não aceitação do valor que lhes é atribuído. 2 - O deferimento do requerimento de avaliação suspende as licitações até à fixação definitiva do valor dos bens. 3 - A avaliação dos bens é, em regra, realizada por um único perito, nomeado pelo tribunal, salvo se: a) O juiz entender necessário, face à complexidade da diligência, a realização de perícia colegial; b) Os interessados requererem perícia colegial e indicarem, por unanimidade, os outros dois peritos que vão realizar a avaliação dos bens. 4 - A avaliação dos bens deve ser realizada no prazo de 30 dias, salvo se o juiz considerar adequada a fixação de prazo diverso.”
Na verdade, após o aditamento do artigo 1114º, nº 3 do CPC operado pelo o artigo 5º da Lei 117/2019 de 13.09), surgiram, grosso modo, duas posições:
- aquela que defende que a introdução de tal artigo não afasta o regime geral da prova pericial, consagrado nos artigos 487º a 489º, aplicável subsidiariamente ao processo de inventário, por força do disposto no artigo 549º do CPC. O artigo 1114º do CPC apenas define algumas especificidades próprias da perícia realizada no processo de inventário.- aquela que entende que a introdução de tal artigo, ao tirar a remissão para os artigos 487º a 489º do CPC, nega a admissibilidade de realização de uma segunda perícia.
Assim, a título meramente exemplificativo, ver:
- Acórdão da Relação do Porto de 04 de Maio de 2022 tirado no processo 646/20.0T8VFR.P1 onde se lê “A melhor interpretação deste preceito é a de que o mesmo define algumas especificidades próprias da perícia realizada no processo de inventário, mas não afasta a aplicabilidade do estabelecido quanto a este tipo de prova no processo declarativo, o que decorre do princípio geral estabelecido no artigo 549º nº 1 do CPC (neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa e outros, “O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil”, p 115).
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.11.2019, retirado no processo 537/14.4T8FAR.E1.S1 “I Resulta do artigo 2109º, nº1 do CCivil que o valor dos bens doados é o que os mesmos tiverem à data da abertura da sucessão, mas se sobrevier um valor superior do bem por via de uma avaliação requerida por algum dos interessado é este o valor a ter em conta a não ser que os demais interessados o contestem, e se o contestarem esse valor nunca poderá ser tomado em atenção para efeitos de partilha, sem mais. II Este regime específico do processo de inventário não se coaduna com o regime geral das avaliações, nomeadamente, quanto à necessidade de requerer uma segunda avaliação no prazo de dez dias a contar da notificação do resultado da primeira avaliação, nos termos dos dispositivos aludidos nos artigos 589º a 591º do CPCivil, o que significa que a decisão que indeferiu, sem mais, aquela diligência, não se pode manter. III Tendo em atenção o disposto no artigo 1353º, nº4, alínea a) do CPCivil na redacção dada pelo DL 227/94, de 8 de Setembro aqui aplicável, é à conferência de interessados que compete deliberar das reclamações deduzidas sobre o valor atribuído aos bens relacionados e sobre a aprovação do passivo e forma de cumprimento dos legados e demais encargos da herança. IV Em tema de processo de inventário há lugar a uma segunda avaliação quando os interessados, na conferência, não acordem no valor a atribuir aos bens e requeiram a sua efectivação: este regime específico do processo de inventário não se coaduna com o regime geral das avaliações, nomeadamente, quanto à necessidade de requerer uma segunda avaliação no prazo de dez dias a contar da notificação do resultado da primeira avaliação, nos termos dos dispositivos aludidos nos artigos 589º a 591º do CPCivil.
- Acórdão da Relação de Coimbra de 10.05.2022, tirado no processo 1734/20.9T8FIG-B.C1” A letra do art.º 1114º do CPC que excluiu a remissão para o "preceituado na parte geral do Código" ou para o “disposto no Código de Processo Civil quanto à prova pericial” deve ser interpretada no sentido restritivo de aplicação exclusiva do regime de uma única avaliação. Ademais, o facto de se prever que a avaliação deve ocorrer, em regra, num prazo limitado de 30 dias, constitui um elemento que converge para a ideia de que só existe uma única avaliação no processo de inventário. De harmonia com a letra da lei como do seu espírito, entendemos que não é admitida uma segunda avaliação no processo de inventário. De harmonia com a letra da lei como do seu espírito, entendemos que não é admitida uma segunda avaliação no processo de inventário.”
- Acórdão da Relação de Coimbra de 27.06.2023, tirado no processo nº 127/20.2T8FIG-A.C1” Com a reforma do processo de inventário, constante da Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, as alterações introduzidas ao regime da “avaliação” de bens, previsto no artigo 1114.º do CPC, estabelecendo uma disciplina específica e eliminando a anterior remissão que, quanto a esta matéria, era feita para a parte geral do código, leva-nos a negar a admissibilidade de realização de uma segunda “perícia”, nos termos previstos nos artigos 487.º a 489.º do CPC.
- Acórdão da Relação de Guimarães de 11.01.2024, tirado no processo 3281/21.2T8VCT-A.G1” 1. Em processo de inventário ao qual é aplicável o regime instituído pela Lei nº 117/2019, de 13 de Setembro, é admissível a realização de segunda perícia, desde que reunidos os requisitos previstos no art. 487º CPC”
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22.02.2024, tirado no processo 1621/20.0T8PVZ-A.P1:” I - A prova pericial tem por finalidade a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem. II - O direito à prova constitucionalmente reconhecido (art. 20.º da CRP) faculta às partes a possibilidade de utilizarem em seu benefício os meios de prova que considerarem mais adequados. III - Realizada a perícia e notificado o respectivo relatório às partes, o legislador estabeleceu duas formas diversas de reacção que são distintas e compatíveis: a reclamação nos termos do artigo 485.º (no caso de existirem deficiências, ou contradição ou obscuridade no relatório) e a realização da segunda perícia nos termos do artigo 487 do CPCivil. IV - A prova pericial, está sujeita, na respectiva produção, a um determinado número de regras de direito probatório formal. V - Qualquer das partes pode requerer se proceda a segunda perícia, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado (artigo 487º do CPcivil. VI - Apresentando a parte requerimento enunciando os aspectos que considera deverem ser corrigidos o tribunal deve deferir a realização da segunda perícia, independentemente de avaliar se existe fundamento valido para essa discordância, sendo que só o carácter dilatório ou sem qualquer fundamentação constitui causa de indeferimento do requerimento para realização de segunda perícia. VII - A segunda perícia tem por objeto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexatidão dos resultados desta. VIII - A reclamação deduzida quanto á prova pericial, que visa complementar ou dar coerência á perícia, será indeferida, quando não se demonstre qualquer deficiência concreta ou obscuridade ou contradição no relatório pericial, ou quando essa reclamação ultrapasse o objecto pericial e esteja apenas a ampliar ou a modificar o seu objecto fixado”
Como decidir?
Entendemos que se deve fazer uma interpretação mais ampla do artigo 1114º do Código de Processo Civil, considerando que se a lei não dispõe de forma expressa sobre a inadmissibilidade da segunda perícia, deve entender-se o aditamento do artigo 1114º como uma forma de definir algumas especificidades próprias do regime do inventário, mas que não afasta a aplicabilidade do estabelecido, quanto a este tipo de prova, no processo declarativo.
Preceitua o artigo 549.º, n.º 1 do CPC que «[o]s processos especiais regulam-se pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerais e comuns; em tudo o quanto não estiver prevenido numas e noutras, observa-se o que se acha estabelecido para o processo comum».
Tal como explicam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe de Sousa, em anotação a este último preceito, «[s]em prejuízo da adequação formal, quando necessária ou conveniente, o princípio da especialidade e da legalidade das formas processuais implica que a tramitação dos processos especiais obedeça sucessivamente à regulamentação específica, às normas gerais e às normas do processo declarativo comum».
Concordamos, inteiramente, com o que é dito no Acórdão da Relação de Guimarães de 11.01.2024, já supra citado: “De facto, os processos de inventário são daqueles em que a determinação do valor de bens reveste maior importância, sobretudo no caso de imóveis. Seria estranho que o legislador, consagrando a figura da segunda avaliação para o processo comum, viesse proscrevê-la no caso do inventário. O que está em causa, bem vistas as coisas, é a busca da verdade material. Sendo, ou podendo ser da maior importância, determinar com rigor o valor de uma determinada verba, e se a avaliação realizada deixou algumas dúvidas sobre a sua certeza e correcção, parece-nos inteiramente óbvio que o caminho a seguir poderá ser o da realização de uma segunda perícia. Não vemos por que razão se deveria excluir a priori tal solução.”
Note-se que, no início deste acórdão, não indicámos como questão a tratar a de saber se o artigo 1114º, n.º 3 do CPC, aditado pelo artigo 5º da Lei 117/2019, de 13.09, norma que estabelece o regime legal da avaliação dos bens no processo de inventário, comporta, ou não, a segunda perícia.
Isto porque, não obstante o recorrente ter aludido a esta questão, a Sr. Juiz indeferiu a realização da segunda perícia porque a mesma era inadmissível na medida em que, no seu entender, não havia qualquer deficiência, obscuridade ou contradição no relatório pericial e as questões levantadas pelo ora recorrente não estavam devidamente fundamentadas.
De uma forma implícita, a Sr. Juiz admite a possibilidade da realização de uma segunda perícia no processo de inventário.
Este tribunal de recurso, porque comunga do mesmo entendimento, sentiu necessidade de o explicar pois, caso contrário, o recurso soçobraria, à partida, por inadmissibilidade legal da existência de uma segunda perícia no âmbito do processo de inventário.
Aqui chegados, surge, então, a questão fulcral: existe fundamento para a realização de uma segunda perícia?
Como diz a Sr.ª Juiz, de facto, o recorrente não concorda com o resultado da perícia.
Porém, ao contrário do que é afirmado no mesmo despacho, entendemos que o recorrente fundamenta as razões da sua discordância e invoca as inexactidões da perícia.
Lembremo-nos que o objecto da perícia era a avaliação das benfeitorias realizadas sobre o prédio de propriedade total, destinado a habitação, sito na Av. ..., União de Freguesias ... e ..., concelho de Lousada, realizadas pelo extinto casal.
Esta avaliação, dizemos nós, pressupõe que as benfeitorias estejam perfeitamente identificadas.
Ora, da leitura do relatório pericial, tal não resulta.
Se por um lado, parece que as benfeitorias seriam aquelas que resultaram de “obras de renovação / alteração, de acordo com projeto aprovado na Câmara Municipal no ano de 2006, ao nível do rés do chão” – cfr. Página 10 do relatório – o Sr. Perito avaliou áreas que não foram intervencionadas ao tempo desse projecto – veja-se a cave.
Impõe-se uma clarificação de quais são as benfeitorias a avaliar e, em caso de dúvida, proceder à sua avaliação, mas salvaguardando que não é pacífica entre os interessados essa qualificação, a qual terá que ser resolvida de um outro modo que extravasa a perícia.
Além disso, sem que do relatório conste que o Sr. Perito se socorreu de qualquer documento, designadamente facturas que lhe tivessem sido entregues pelas partes, ou que as tivesse solicitado, limita-se a “considerar aceitável” alguns dos valores indicados pela “autora”.
Por outro lado, concordamos com o recorrente quando entende haver uma certa ambiguidade na forma de tratamento das benfeitorias e do prédio em si. A certa altura do relatório, as realidades confundem-se.
Tudo para dizer e sem necessidade de mais considerações, que entendemos existir fundamento para a realização de uma segunda perícia."
*3. [Comentário] a) A RP decidiu indiscutivelmente bem.
O disposto no art. 1114.º, n.º 3, CPC só regula o carácter individual ou colectivo da perícia, nada tendo a ver com o restante regime da prova perícial.
b) O caso decidido pela RP ilustra o dilema com que frequentemente se debate o legislador processual civil português: o de que, em qualquer reforma legislativa, a omissão de um regime anterior vai ser entendido, a contrario sensu, no sentido da não aplicação desse regime. Ora, nem sempre é assim, porque o regime pode continuar a ser aplicado com outro fundamento e a sua referência pode ser redundante e, por isso, desnecessária.
*3. [Comentário] a) A RP decidiu indiscutivelmente bem.
O disposto no art. 1114.º, n.º 3, CPC só regula o carácter individual ou colectivo da perícia, nada tendo a ver com o restante regime da prova perícial.
b) O caso decidido pela RP ilustra o dilema com que frequentemente se debate o legislador processual civil português: o de que, em qualquer reforma legislativa, a omissão de um regime anterior vai ser entendido, a contrario sensu, no sentido da não aplicação desse regime. Ora, nem sempre é assim, porque o regime pode continuar a ser aplicado com outro fundamento e a sua referência pode ser redundante e, por isso, desnecessária.
É precisamente o caso do regime da prova pericial no processo de inventário (ou em qualquer outro processo especial). O art. 549.º, n.º 1, CPC estabelece que "[o]s processos especiais regulam-se pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerais e comuns; em tudo o quanto não estiver prevenido numas e noutras, observa-se o que se acha estabelecido para o processo comum". Isto significa que se aplica necessariamente ao processo de inventário, como processo especial, o regime da instrução que consta dos art. 410.º ss. CPC.
MTS
MTS