"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



20/06/2025

Jurisprudência 2024 (192)


Compropriedade conjugal;
acção de divisão de coisa comum


1. O sumário de RE 10/10/2024 (150/23.5T8EVR.E1) é o seguinte:

I. O processo de divisão de coisa comum é o meio próprio para o ex-cônjuge dividir o património adquirido em compropriedade por ambos os consortes no decurso de casamento sujeito ao regime da separação de bens, entretanto dissolvido por divórcio;

II. O processo de inventário subsequente a divórcio está reservado aos casos em que o regime de bens do casamento foi o da comunhão geral ou o da comunhão de adquiridos, nos quais cada cônjuge se constitui titular de um direito de meação sobre a universalidade dos bens comuns;

III. A compropriedade de bens adquiridos pelos cônjuges na pendência do casamento é uma realidade neutra relativamente à faculdade de utilizar o processo de inventário para separação de meações, na medida em que, se por um lado não consente o recurso a tal meio processual, por outro não impede que os cônjuges o utilizem, se tiverem estado casados num regime da comunhão e houver património comum a partilhar.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Vêm os presentes recursos interpostos de decisão que absolveu a Ré da instância por considerar errada a forma de processo eleita pelo Autor – acção de divisão de coisa comum – para alcançar o objectivo de dividir o património alegadamente adquirido por ambos no decurso do casamento entre ambos, sujeito ao regime da separação de bens.
A argumentação do despacho em crise apresenta os seguintes vectores:

i. O processo de inventário é o adequado a operar a divisão dos bens em compropriedade do casal (citando para o efeito a jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 28.09.2023, proferido no âmbito do proc. n.º 611/21.0T8SSB.E1 – in www.dgsi.pt).

ii. Ainda que inexistam bens comuns do casal, a abertura do processo de inventário justifica-se, também, no caso vertente, por estar alegada a existência de créditos perante terceiros, nomeadamente, entidades bancárias, relacionados com a aquisição dos imóveis (entendimento que extrai da jurisprudência dos acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães, de 07.06.2023, proferido no âmbito do processo n.º 1702/20.0T8BRG-A.G1 e do Tribunal da Relação de Lisboa de 01.06.2010, proferido no âmbito do processo n.º 2104/09.5TBVFX-A.L1-7 – ambos in www.dgsi.pt). [...]

*
Analisemos, de seguida, cada um dos elencados fundamentos.

i. Relativamente ao primeiro ponto, a especificidade do regime da separação de bens do casamento entre Autor e Ré, não permite acompanhar o entendimento perfilhado na decisão recorrida, no sentido de que o processo de inventário é o adequado a operar a divisão dos bens titulados em compropriedade pelos elementos do ex-casal.

Vejamos porquê.

De acordo com o disposto nos artigos 1688.º, 1788.º e 1789.º, n.º 1, do Código Civil, o divórcio dissolve o casamento e faz cessar as relações patrimoniais entre os cônjuges, retrotraindo-se os seus efeitos, quanto às relações patrimoniais, à data da propositura da acção ou da separação de facto fixada na sentença.

Após o divórcio, procede-se à partilha dos bens comuns, o que pode ocorrer extrajudicialmente, por acordo dos interessados, ou judicialmente, na falta de acordo, em processo de inventário (artigos 2102.º, n.º 1, do CC e 1133.º da actual redacção do CPC). [...]

O património integrado na comunhão conjugal confere a cada um dos cônjuges um direito de meação que se não confunde com o direito de compropriedade.

Na proposta de Rita Lobo Xavier (Rita Lobo Xavier, “Divórcio, o Regime de Bens e a Partilha do Património Conjugal”, in III Jornadas de Direito da Família e das Crianças Diálogo Teórico-Prático, e-book da Ordem dos Advogados e do CEJ): “A perspetiva do património coletivo considera a situação de contitularidade. Os bens comuns constituem um património coletivo na medida em que cada um dos cônjuges é contitular de um direito sobre a massa dos bens comuns, como um todo, não sendo contitular de um direito não sobre cada uma das coisas nela integradas. Cada um dos cônjuges é titular do direito a metade do mesmo (direito de meação), direito de que não podem dispor antes da dissolução do casamento, da separação de pessoas e bens ou da separação judicial de bens. (…) e que tem muitas similitudes com a que existe na situação de indivisão hereditária”.

A distinção resulta também clara na fórmula, utilizada por Pires de Lima e Antunes Varela ( Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, volume IV, 2ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1992, pág. 449.): “os bens comuns dos cônjuges constituem objecto, não duma relação de compropriedade, mas duma propriedade colectiva…”, sendo que “…na propriedade colectiva há ainda um direito uno, enquanto na compropriedade há um aglomerado de quotas dos vários comproprietários”.

A compropriedade pressupõe um título de aquisição em que todos os comproprietários intervenham.

Diversamente do que sucede nos matrimónios sujeitos aos regimes da comunhão de adquiridos ou da comunhão geral, o casamento sujeito ao regime da separação de bens não tem a aptidão de constituir património comum do casal pois cada um dos cônjuges “…conserva o domínio e fruição de todos os seus bens presentes e futuros, podendo dispor deles livremente” (artigo 1735.º do Código Civil).

Por isso, vem sendo entendimento doutrinal e da jurisprudência dos nossos tribunais superiores que o processo de inventário subsequente a divórcio está reservado aos casos em que o casamento, por força da sujeição aos regimes da comunhão geral ou de bens adquiridos, seja apto a gerar um património comum do casal (artigos 1721.º e ss. e 1732.º e ss., ambos do Código Civil). [...]

A conclusão a que se chega partindo da exposição apresentada é a de que o processo de inventário subsequente a divórcio está reservado à partilha de bens comuns, exclusivos dos regimes de comunhão de bens que permitem a constituição de um património comum do casal e um direito de meação de cada consorte sobre a universalidade desses bens.

Como o regime da separação de bens não é passível de integrar os bens adquiridos, antes ou na pendência do casamento, num património comum do casal, não se mostra preenchido pelo casamento sujeito a tal regime (da separação) um pressuposto necessário ao uso do processo de inventário subsequente ao respectivo divórcio.

A compropriedade de bens adquiridos pelos cônjuges na pendência do casamento é uma realidade distinta do património integrado na comunhão, neutra relativamente à faculdade de utilizar o processo de inventário para separação de meações, na medida em que, se por um lado não consente o recurso a tal meio processual, por outro não impede que os cônjuges o utilizem desde que tenham estado casados no regime da comunhão (geral ou de adquiridos) e haja património comum.

Esta é, aliás, a bitola que, em linha com a orientação da jurisprudência dominante (Entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.10.2019, relatado pelo Juiz Conselheiro Abrantes Geraldes no processo número 1517/13.2TJLSB.L1.S2, cujo sumário refere: “I. No regime de comunhão de adquiridos, o imóvel que ambos os cônjuges adquiriram por compra, antes do casamento, está sujeito ao regime da compropriedade, sendo cada um titular de metade, como bem próprio. (…) III. Dissolvido o casamento, o inventário pós-divórcio requerido ainda ao abrigo do artigo 1404.º, do CPC de 1961, destina-se a realizar a partilha dos bens comuns do casal, incluindo as dívidas que são comuns. IV. Numa situação em que não existem bens comuns do casal, o processo de inventário não é adequado a que um dos cônjuges exija do outro um crédito correspondente ao pagamento de metade das prestações emergentes de um contrato de mútuo que ambos celebraram antes do casamento para aquisição do bem em regime de compropriedade. No mesmo sentido, também o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 22.02.2024, relatado pela Juíza Desembargadora Eva Almeida no processo n.º 2509/22.6T8VCT.G1. [...]

Contrastando com a interpretação realizada na decisão da 1ª instância, não é a situação de compropriedade de bens que, de acordo com os fundamentos do acórdão em apreço, permite o uso do processo de inventário, mas a circunstância de, contrariamente ao caso vertente em que Autor e Ré estiveram casados no regime da separação de bens, a situação ali versada dizer respeito a um matrimónio sujeito ao regime da comunhão de bens adquiridos, no qual para além de bens titulados em compropriedade pelos cônjuges, havia também bens comuns a partilhar.

Sendo o inventário o meio próprio para a alcançar a partilha daqueles bens comuns, bem se compreende que tenha sido admitida a possibilidade de numa única acção de inventário a correr por apenso ao processo de divórcio, nos termos do artigo 1404.º do Código de Processo Civil, se proceder à divisão ou partilha de todos os bens.

Esta posição inscreve-se na já apontada neutralidade ou irrelevância da compropriedade de bens adquiridos pelos cônjuges na pendência do casamento para o recurso ao meio processual de inventário subsequente a divórcio, pois se não constitui fundamento bastante (este é conferido pela existência da meação do cônjuge nos bens comuns), também não é circunstância impeditiva se o pressuposto do casamento no regime da comunhão se verificar.

ii. Apreciemos agora o segundo argumento apontado pela decisão em recurso, no sentido de que o uso do processo de inventário se justifica por estar alegada a existência de créditos perante terceiros, nomeadamente, entidades bancárias, relacionados com a aquisição dos imóveis em compropriedade.

Nos termos previstos pelo artigo 1412.º, n.º 1, do Código Civil, “…nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão, salvo quando se houver convencionado que a coisa se conserve indivisa”.

O direito de exigir a divisão de coisa comum é potestativo, tem por escopo a dissolução da compropriedade que pode realizar-se através da divisão em substância da coisa ou da partilha do seu valor ou preço.

Pela via judicial (artigo 1413.º do CCivil), o processo de divisão de coisa comum obedece a uma forma especial (artigo 925.º e ss. do CPC) que prevê duas fases distintas:

- a primeira, visa apurar e fixar os quinhões de cada comproprietário e, bem assim, aferir da divisibilidade do bem (artigo 926.º, n.ºs 4 e 5, do CPC);
- a segunda tem como objectivo: a divisão do bem em substância com a adjudicação das partes, caso se conclua que tal é possível na primeira fase do processo (artigos 927.º, n.º 1 e 929.º, n.º 1, ambos do CPC); ou a adjudicação da totalidade / venda a terceiros, com divisão do produto da venda em função dos quinhões de cada um, caso se conclua que o bem é indivisível (artigos 928.º e 929.º, n.ºs 2 e 3, ambos do mesmo diploma legal).

Trata-se de um processo dirigido contra todos os consortes, através do qual o primeiro momento, de pendor declarativo, visa confirmar o direito de cada um à respectiva quota e o segundo, de cariz mais executivo, realiza a repartição material do(s) bem(ns) indiviso(s) ou a atribuição patrimonial correspondente a cada direito individual.

O credor hipotecário, titular de hipoteca sobre a totalidade do prédio objecto da acção de divisão de coisa comum, não vê o seu direto afectado pela definição dos direitos realizada na fase declarativa do processo, porque a sua garantia real se mantém sobre a totalidade das quotas.

É na segunda fase do processo, de pendor executivo, que a adjudicação a um dos interessados ou a venda a terceiros do imóvel hipotecado impõe a prévia intervenção do credor hipotecário, a fim de aí reclamar o seu crédito e fazê-lo valer, sendo citado nos termos previstos pelo artigo 786º, n.º 1, alínea b), ex vi do artigo 549.º, n.º 2, ambos do CPC, para reclamar, pelo produto destes, o pagamento dos respectivos créditos, nos termos do artigo 788.º do mesmo diploma legal.

Deste modo, a utilização da forma especial do processo de divisão de coisa comum não comporta qualquer prejuízo, ou preterição dos direitos do credor hipotecário.

Não há, por isso, fundamento para sustentar que o uso do processo de inventário se justifica por, na situação em juízo, estar alegada a existência de créditos perante terceiros, nomeadamente, entidades bancárias, relacionados com a aquisição dos imóveis em compropriedade.

Note-se que a aceitação deste argumento para franquear o uso do processo de inventário aos comproprietários de bem(ns) indiviso(s), abriria a porta deste processo especial com pendor marcadamente sucessório e conjugal, a um conjunto de outras situações de constituição do direito de compropriedade, não apenas por ex-cônjuges, mas também por pessoas que não estiveram ligadas pelo vínculo do matrimónio."

[MTS]