Justo impedimento;
aferição
I. O sumário de RE 26/9/2024 (86/16.6T8CCH.E1) é o seguinte:
1 – O prazo para a apresentação de uma reclamação contra a não admissão de um recurso assume natureza peremptória.
2 – Considera-se justo impedimento o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários que obste à prática atempada do acto.
3 – O justo impedimento funciona como uma cláusula geral de salvaguarda contra os efeitos das omissões involuntárias, bastando assim que o facto obstaculizador da prática do acto não seja imputável à parte ou ao mandatário.
4 – Este juízo de culpa é apreciado à luz do critério geral do n.º 2 do artigo 487.º do Código Civil, de acordo com o critério da diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso.
5 – O certificado de doença que atesta a impossibilidade de exercício dos deveres profissionais, sem esclarecer a gravidade do mal, ou desacompanhado de outros meios de prova que demonstrem essa gravidade, não é suficiente para estabelecer o justo impedimento.
6 – Se é certo que o mandatário não está obrigado a diligenciar por advogado substituto, no plano reflexo, nas situações de doença prolongada, o risco de não concessão de poderes representativos a outrem poderá correr por conta daquele que, negligentemente, não prevê essa impossibilidade de praticar o acto por mão própria, quando podia tomar as devidas cautelas exigíveis no quadro da sua situação clínica.
7 – Se não são nomeadas as circunstâncias factuais do caso que permitam considerar que o evento foi imprevisto e que a parte ficou impossibilitada de praticar atempadamente o acto, ou se não foi arregimentada a prova conducente à formulação desse juízo prudencial, o Tribunal não pode reconhecer que houve justo impedimento.
8 – Mesmo nos casos de doença impeditiva, a intervenção profissional não pode ser selectiva, sendo que a partir do momento em que o destinatário de qualquer notificação acede ao sistema informático e nele prática actos processuais têm de diligenciar pela leitura das notificações que lhe foram enviadas e, se não o fizer, fica sujeito ao efeito preclusivo do decurso do prazo e, consequentemente, é afastada a integração da situação na esfera do justo impedimento.
II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"O prazo para a interposição de recurso, apresentação de uma reclamação contra a não admissão de um recurso ou qualquer um que seja estabelecido para a prática de um determinado acto assume natureza peremptória. E, nesse espectro lógico-jurídico, o decurso do mesmo por inacção do interessado ou do seu mandatário conduz à extinção do direito de praticar tal acto, em conformidade com o n.º 3 do artigo 139.º [---] do CPCivil.
Este regime preclusivo comporta duas excepções. A primeira está relacionada com a possibilidade de a parte praticar o acto fora de prazo havendo justo impedimento. E a segunda é ultrapassada nos casos em que, independentemente de justo impedimento, a parte pratique o acto num dos três dias seguintes ao seu termo, pagando a multa fixada na lei.
Considera-se «justo impedimento» o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários que obste à prática atempada do acto [---].
O efeito do justo impedimento é o de «suspender o términus ad quem desse prazo, diferindo-o para o dia imediatamente subsequente àquele que que tenha sido o último da duração do invocado impedimento» e a invocação só será atendível se ainda não decorrido o prazo normal para a prática do acto, devendo a parte, logo que cesse o impedimento, praticá-lo alegando simultaneamente o justo impedimento, não o podendo fazer em data ulterior» [Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, vol. II, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2019, pág. 61.] [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/05/2012, cuja leitura pode ser feita em www.dgsi.pt.].
O justo impedimento funciona como uma cláusula geral de salvaguarda contra os efeitos das omissões involuntárias [Paula Costa e Silva, Acto e Processo, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, pág. 314.]. E, como tal, o instituto está centrado na ideia da não culpabilidade das partes, dos seus representantes ou dos mandatários [António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2023, pág. 184.]. Basta assim que o facto obstaculizador da prática do acto não seja imputável à parte ou ao mandatário [José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, pág. 274.].
No comentário de Lopes do Rego o que deverá relevar decisivamente para a verificação do “justo impedimento” «mais do que a cabal demonstração da ocorrência de um evento totalmente imprevisível e absolutamente impeditivo da prática atempada do acto – é a inexistência de culpa da parte, seu representante ou mandatário (…) a qual deverá naturalmente ser valorada em consonância com o critério geral estabelecido no n.º 2 do artigo 487.º do Código Civil» [Lopes do Rego, in Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, Almedina, Coimbra, pág. 125.].
Porém, como adverte Teixeira de Sousa, o justo impedimento pode ser reconhecido mesmo quando não tenha ocorrido nenhum facto imprevisível. Basta, neste caso, que a omissão do acto resulte de um erro desculpável da parte, para que se deva considerar relevante o referido justo impedimento", uma vez que o que releva é «a eventual censurabilidade dessa omissão e não a ocorrência de um facto exterior à vontade da parte» [Miguel Teixeira de Sousa, in "Apreciação de alguns aspectos da «Revisão do processo civil - Projecto»", Revista da Ordem dos Advogados, vol. II, 1995, pág. 387.].
O conceito de “justo impedimento” repousa assim no critério da não imputabilidade do facto obstaculizador da prática atempada do acto à parte ou ao mandatário (ou a um auxiliar deste, por força da extensão do 800.º [---] do Código Civil), quando não existam sinais da existência de um juízo de censurabilidade na sua produção.
Este juízo de culpa é apreciado à luz do critério geral do n.º 2 do artigo 487.º [---] do Código Civil, de acordo com o critério da diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso.
Em função da prova produzida, o julgador tem de firmar a convicção que (i) o evento não é imputável à parte nem aos seus representantes, por não ter havido culpa (nomeadamente sob a forma de negligência) e (ii) obsta à prática tempestiva do acto.
Cumpre ao juiz apurar se o fundamento invocado reúne os requisitos legais e se ocorreu um cenário de impossibilidade absoluta de praticar directamente o acto, mesmo usando a diligência devida.
Nos Tribunais a corrente dominante aceita que a doença é um evento estranho à vontade da parte, mas entende que nem todas as patologias clínicas são imprevistas e obstam à prática atempada de um acto processual.
A invocação de doença por parte do mandatário só constituirá justo impedimento se se provar a total impossibilidade da prática do acto, o que exclui a situação de mera difficultas agendi or operandi.
Na jurisprudência é estabelecida uma linha de actuação em que é afirmado que o certificado de doença que atesta a impossibilidade de exercício dos deveres profissionais, sem esclarecer a gravidade do mal, ou desacompanhado de outros meios de prova que demonstrem essa gravidade, não é suficiente para estabelecer o justo impedimento, uma vez que não indicia que não pudesse ser encarregada outra pessoa de praticar o acto [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/05/2010, que está presente em www.dgsi.pt.].
Noutro aresto pode ler-se que, apesar de ser reconhecida a força plena da declaração constante do atestado, não se pode considerar abrangida pelo documento factualidade que não consta dessa declaração, designadamente aquela permitiria «considerar não ter havido culpa, negligência ou imprevidência do mandatário» [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/10/2015, cuja leitura pode ser realizada em www.dgsi.pt.]. Também nos Tribunais da Relação é idêntico o raciocínio do reconhecimento condicionado do justo impedimento fundamentado em doença do mandatário [Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 07/04/2011 e do Tribunal da Relação do Porto de 23/06/2014, disponibilizados em www.dgsi.pt.].
Regressando a Miguel Teixeira de Sousa, seja qual for a causa, de todo o modo, incumbe sempre à parte faltosa o ónus relativo à alegação e prova de factos que comprovem que essa causa se traduziu na impossibilidade não culposa da prática do acto [Miguel Teixeira de Sousa, "Artigo 140º", CPC on line, Lei 41/2013: artigos 130.º a 149.º, in Blog do IPPC, 2021, pág. 15.]. Ou, na concepção de Lebre de Freitas, cabe à parte que não praticou o acto alegar e provar a sua falta de culpa, isto é a ocorrência de caso fortuito ou de força maior impeditivo [José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, pág. 275.].
Podemos assim afiançar que só existe justo impedimento quando a pessoa que devia praticar o acto foi colocada na impossibilidade "absoluta" de o fazer, por si ou por mandatário, em virtude da ocorrência de um facto independente da sua vontade e que um cuidado e diligência normais não faziam prever.
No plano casuístico, as situações de doença súbita da parte ou do mandatário constituem justo impedimento quando configurem um obstáculo razoável e objectivo à prática do acto [José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, págs. 275-276.] [---].
Mesmo que exista uma protecção da intimidade e dos direitos personalidade do interessado que obstem à menção concreta da doença, devem ser mencionados os factos que viabilizem o vencimento da tese que a doença de que padeceu o advogado impediu a prática atempada do acto.
Se é certo que o mandatário não está obrigado a diligenciar por advogado substituto, no plano reflexo, nas situações de doença prolongada, o risco de não concessão de poderes representativos a outrem poderá correr por conta daquele que, negligentemente, não prevê essa impossibilidade de praticar o acto por mão própria, quando podia tomar as devidas cautelas exigíveis no quadro da sua situação clínica – recorde-se que, para além das suas sucessivas faltas a audiências de julgamento, a parte invoca que, desde a data em que foi proferido o despacho de não admissão do recurso interposto, com repercussão directa no andamento na regular tramitação do processo, se encontrou impedida de ter intervenção nos presentes autos, pelo menos, entre 08/01/2024 a 23/02/2024 e 22/05/2024 a 15/09/2024.
Por conseguinte, se não são nomeadas as circunstâncias factuais do caso que permitam considerar que o evento foi imprevisto e que a parte ficou impossibilitada de praticar atempadamente o acto, ou se não foi arregimentada a prova conducente à formulação desse juízo prudencial, o Tribunal não pode reconhecer que houve justo impedimento.
E a recorrente não conseguiu demonstrar essa impossibilidade absoluta. Mais do que isso, no caso concreto, feito um exame ao sistema Citius, o Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça evidencia que, no período entre 22/01/2024 e 22/02/2024, a ilustre advogada apresentou requerimentos em diversos processos e teve assim possibilidade de, nesse período, ter acesso à notificação remetida em 19/01/2024 (pelas 12:26:38) – desta sorte, ainda que houvesse a preterição de uma diligência probatória, a solicitação efectuada pelo Tribunal ad quem sanou essa hipotética nulidade.
Nesta ordem de ideias, independentemente da data efectiva da leitura da notificação, a consulta e a intervenção no sistema Citius não pode ser selectiva. Assim, a partir do momento em que o destinatário de qualquer notificação acede ao sistema informático e nele prática actos processuais têm de diligenciar pela leitura das notificações que lhe foram enviadas, salvo caso de força maior ou de impossibilidade que aqui não se mostra evidenciado."
[MTS]
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