"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/02/2018

Jurisprudência (785)


Matéria de facto; julgamento;
"factos conclusivos"


1. O sumário de STJ 28/9/2017 (659/12.6TVLSB.L1.S1) é o seguinte: 

I - À Relação cabe, por princípio, a última decisão no domínio do facto; no entanto, no juízo fáctico que lhe compete formular, com base em convicção própria firmada nos meios de prova disponíveis no processo, não pode deixar de considerar que se move, exclusivamente, no campo da matéria de facto, estando-lhe vedado o recurso a conceitos de direito e a juízos valorativos ou conclusivos.

II - Tendo o recurso de revista por objecto saber se um determinado facto julgado provado pelo tribunal da Relação, ao abrigo dos seus poderes decisórios previstos no art. 662.º do CPC, contém matéria conclusiva e deve, por tal razão, ser eliminado do elenco dos factos provados, nenhum obstáculo legal existe quanto à admissibilidade do recurso de revista por estar em causa uma questão de direito.

III - Tendo o tribunal da Relação com base no relatório do Laboratório da Polícia Científica dado como provada matéria relativa à disparidade entre assinaturas em confronto, fazendo constar da matéria de facto os adjectivos «numerosas» e «escassas» referindo-se, respectivamente, às diferenças e às semelhanças que as assinaturas apresentadas para exame pericial apresentavam, no contexto em questão, tais adjectivos não se reconduzem a puros conceitos normativos.

IV - Ao invés, tais adjectivos, se devidamente, interpretados, densificam e concretizam uma realidade de facto, de acordo com a qual as diferenças entre as assinaturas superam as semelhanças, pelo que não sendo tal matéria susceptível de quantificação nem exigível que se proceda à descrição da concreta análise comparativa das assinaturas submetidas à perícia, não exorbitou a Relação os poderes que a lei lhe confere relativamente ao julgamento da matéria de facto. 

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

1. [...] A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça no domínio do facto está reservada ao campo da designada prova tarifada ou vinculada, ou seja, aos casos em que a lei exige determinado tipo de prova para demonstração de certas circunstâncias factuais ou atribui específica força probatória a determinado meio probatório (artigo 674º nº 3).

Saber se um concreto facto integra um conceito de direito ou assume feição conclusiva ou valorativa constitui questão de direito, porquanto não envolve um juízo sobre a idoneidade da prova produzida para a demonstração ou não desse mesmo facto enquanto realidade da vida. Como se observou no Acórdão deste Supremo Tribunal de 10.01.2017 (proc. 761/13.7TVPRT.P1.S1), em tal caso este Tribunal não está a interferir na apreciação dos factos, não está a corrigir, indevidamente, um eventual erro na apreciação das instâncias, mas antes a proceder à sua qualificação como tal de acordo com as regras de direito aplicáveis. Neste sentido também se pronunciaram, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18.02.2016 e de 28.06.2012 (proc. nº 1320/05.3TBCBR.C1.S1; proc. nº 3728/07.0TVLSB.L1.S1, respectivamente).

O que está aqui em causa não é determinar se ocorreu ou não um concreto facto, ou seja, sindicar a convicção formada pelo tribunal com base nas provas produzidas e de livre apreciação, mas avaliar se matéria considerada como um facto provado reflecte, indevidamente, uma apreciação de direito por envolver uma “qualquer valoração segundo a interpretação ou aplicação da lei, ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica” (Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil, Lex, 1997, pág. 312).

E, nesta situação, fazer actuar, sendo caso disso, o mecanismo anteriormente previsto no artigo 646º nº 4 do Código de Processo Civil revisto, que se mantém na nossa ordem jurídica, apesar de não figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no artigo 607º nº 4 do actual Código de Processo Civil, devem constar da fundamentação da sentença os factos – e apenas os factos – julgados provados e não provados, o que significa que deve ser suprimida toda a matéria deles constante susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, juízos de valor ou conclusivos.

Logo, tendo o presente recurso de revista por objecto saber se um determinado facto julgado provado pelo Tribunal da Relação contém matéria conclusiva e deve, por tal razão, ser eliminados do elenco dos factos provados, nenhum obstáculo legal existe à admissibilidade do presente recurso de revista por estar em causa uma questão de direito.

2. Posto isto, cumpre apreciar se o acórdão recorrido considerou como provada matéria de índole conclusiva e, por isso, insusceptível de figurar no âmbito dos factos provados, e deve, consequentemente, repristinar-se a decisão de facto e de direito proferida na 1ª instância.

Conhecendo da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, decidiu o Tribunal da Relação não poderem subsistir os factos consignados na sentença da 1ª instância enunciados sob os nºs 10 e 11, cujo teor era o seguinte:

«10. A assinatura efectuada por EE, ou a seu mando, constante no lugar destinado ao nome do sacador é semelhante aquela de DD que consta da ficha de assinaturas do banco, quanto às características de aspecto geral, no grau de evolução, na orientação e na regularidade da linha e base.

11. O funcionário que efectuou a análise do cheque é pessoa qualificada para a função em causa e tinha cerca anos 10 anos de experiência na mesma, nomeadamente na conferência de assinaturas por semelhança
».

Considerou na respectiva fundamentação resultar expressis verbis do relatório do Laboratório de Policia Científica, de 27/9/2010, no qual a sentença da 1ª instância se fundamentou, que «os resultados nele indicados não se baseiam na comparação entre a assinatura aposta no cheque e constante no lugar destinado ao nome do sacador e a assinatura de DD que consta da ficha de assinaturas do banco, mas antes [o que é substancialmente diferente] na comparação da escrita constante do preenchimento e assinatura do cheque de fls. 121 (...), com a dos autógrafos de EE», insuficiente, por isso, para alicerçar a convicção firmada quanto a tal facto.

Mais considerou o acórdão recorrido resultar do relatório do Laboratório de Policia Científica, de 30/6/2015 [...] ter sido realizada a comparação de escritas/assinaturas «entre as constantes do cheque da Caixa CC e as assinaturas de DD, apostas em fichas de assinaturas da Caixa CC» e, perante esta constatação (serem comparadas as escritas atribuíveis à mesma pessoa).

E, dando prevalência a este último relatório pericial, formou, com base nele, a sua convicção e transpôs o essencial dos resultados obtidos através da análise comparativa que resulta do relatório do Laboratório da Policia Científica de 30/6/2015 nos seguintes termos: «comparando a escrita aposta no cheque com a dos autógrafos de DD, observam- se numerosas diferenças e escassas semelhanças de reduzido valor».

Assim, julgou provado que:

10. A assinatura efectuada por EE, ou a seu mando, constante no lugar destinado ao nome do sacador contém numerosas diferenças e escassas semelhanças de reduzido valor, com aquela de DD que consta da ficha de assinaturas do banco. 


Insurge-se a recorrente contra a modificação introduzida neste ponto de facto por entender que o Tribunal da Relação, tendo poderes para alterar a matéria de facto, já os não tem para formular juízos conclusivos que encerrem o próprio thema decidendum, consubstanciando, em seu entender, a alteração introduzida violação do disposto no artigo 662º do Código de Processo Civil.

Consequentemente, pugna pela manutenção daquele concreto ponto de facto com a redacção que lhe foi dada pela 1ª instância, conformando-se com o decidido quanto ao ponto nº 11 dos factos provados.

Os poderes decisórios da Relação no âmbito da apreciação da decisão fáctica encontram expressão no mencionado artigo 662º. Nele se dispõe que deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto caso os factos considerados assentes, a prova produzida ou um documento superveniente imponham decisão diversa.

À Relação cabe, por princípio, a última decisão no domínio do facto. No entanto, no juízo fáctico que lhe compete formular, com base em convicção própria firmada nos meios de prova disponíveis no processo, não pode deixar de considerar que se move, exclusivamente, no campo da matéria de facto, estando-lhe vedado o recurso a conceitos de direito e a juízos valorativos ou conclusivos.

No caso vertente, poderia, à primeira vista, entender-se que os adjectivos «numerosas» e «escassas» contidos no ponto de facto em causa assumem carácter conclusivo, mas não é assim. Estes adjectivos reportam-se, respectivamente, às diferenças e às semelhanças que as assinaturas em confronto, apresentadas para exame pericial, apresentavam e querem significar que são poucas as semelhanças e muitas as diferenças encontradas entre ambas.

Trata-se de matéria que não é susceptível de quantificação e não é exigível que se proceda à descrição da concreta análise comparativa das assinaturas submetidas à perícia do Laboratório de Polícia Científica.

O Tribunal da Relação serviu-se da adjectivação utilizada no relatório pericial para ilustrar a disparidade entre as semelhanças e dissemelhanças encontradas no cotejo das assinaturas em confronto, que não são mensuráveis.

No seu contexto os adjectivos em questão não se reconduzem a puros conceitos normativos. Se devidamente interpretados, densificam e concretizam uma realidade de facto, revelam que as diferenças superam as semelhanças. Com base nesta realidade fáctica, conjugada com os demais factos provados, se extraiu, na subsunção dos factos provados ao direito, a conclusão de que a assinatura aposta no cheque pago pela ré atribuída a DD não é da sua autoria.

O Tribunal da Relação actuou em conformidade com os poderes que a lei lhe confere relativamente ao julgamento de facto, não os tendo exorbitado.

Nenhum reparo merece, por conseguinte, o acórdão recorrido, o qual procedeu a um correcto enquadramento jurídico da facticidade provada ao concluir pela verificação dos pressupostos legais da responsabilidade contratual da ré, aqui recorrente, nos termos do disposto nos artigos 798º e 800º do Código Civil, cuja culpa, aliás, a lei presume no nº 1 artigo 799º do mesmo código, presunção legal que a mesma não logrou ilidir, demonstrando que actuou com o zelo e diligência que as circunstâncias lhe impunham antes de proceder ao pagamento do cheque (artigo 344º nº 1 do Código Civil)."


3. [Comentário] O acórdão trata da mesma matéria analisada em Jurisprudência (784). Remete-se para o comentário que consta deste post.


MTS