"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



28/02/2018

Jurisprudência (801)


Oposição à execução; cheque;
relação subjacente; excepções


1. O sumário de RC 21/11/2017 (50/16.5T8GVA-A.C1) é o seguinte:

I – De acordo com a definição que nos é dada pelo art.º 1º da LUCh, o cheque é uma ordem escrita sobre um banco para que pague ao emitente ou à pessoa inscrita como último beneficiário uma certa importância em dinheiro, com base em fundos disponíveis para o efeito, que contém o mandato puro e simples de pagar uma quantia determinada, o nome da pessoa a quem ou à ordem de quem deve ser paga, a assinatura de quem a passa e a indicação da data em que e o lugar onde é passada.

II - Assim, o direito de crédito cambiário está consubstanciado no docu­mento, o conteúdo da obrigação cambiária é o que ele revela e é independente da respectiva causa debendi.

III - Os princípios da literalidade e da abstracção são instrumentais em relação à independência do direito cambiário face à causa que esteve na origem da sua constituição.

IV - No entanto, a plena relevância das aludidas características da literalidade e abstracção depende do cheque entrar em circulação, ou seja, de passar à titularidade de terceiros.

V - Deste modo, é de todo o interesse, nas relações cambiárias distinguir-se entre as imediatas, que se estabelecem entre os sujeitos seus intervenientes directos, sem intermediação de outrem, como é o caso, por exemplo, do sacador e do acei­tante, e as mediatas, em que o portador é estranho às relações extracartulares, o que ocorre quando os cheques são endossadas a um terceiro, que, por via desse endosso, passa a integrar a cadeia de sujeitos cambiários.

VI - A inoponibilidade das excepções causais a terceiros não reside na abstracção dos títulos de crédito, fundamento que não explicaria a possibilidade dessa defesa já poder valer nas relações imediatas, antes tendo explicação no princípio
res inter alii neque nocere neque processe potest.

VII – Diz-se que o cheque está no domínio das relações mediatas quando o portador é uma pessoa estranha à convenção extracartular subjacente.

VIII - Ora, no presente caso, apesar de o cheque ter sido emitido pelo devedor a favor de terceira pessoa que o endossou à exequente, a relação subjacente à sua emissão tem como sujeitos precisamente o devedor e a sua atual portadora, pelo que esta não é uma pessoa estranha à relação extracartular, não tendo aqui aplicação o princípio
res inter alios acta, não havendo por isso qualquer razão que justifique a existência do impedimento previsto no art.º 22º da LUCh.

IX - Se o cheque dado à execução foi emitido para pagamento de parte do preço acordado num contrato de empreitada celebrado entre a exequente e o executado, não há qualquer justificação para que o executado - o sacador do cheque - não possa opor à exequente – a actual portadora do cheque - defesa com base nas relações estabelecidas pelo contrato de empreitada, uma vez que esta não é estranha a essas relações, pelo que não tem aqui aplicação o disposto no art.º 22º da LUCh.
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"A Recorrente coloca em crise que a defesa usada pelo Executado como fundamento dos embargos deduzidos seja admissível atenta a posição que ambos detêm no cheque dado à execução.

A oposição à execução é uma fase eventual da acção executiva que assume a estrutura de acção declarativa do tipo de contra-acção tendente a obstar aos efeitos da execução por via da afectação dos efeitos normais do título executivo, em que o executado pode invocar factos de impugnação e/ou de excepção. 

Na acção executiva a que foi deduzida esta oposição o título é um cheque, em que o exequente figura como portador em consequência de endosso e o executado como sacador.

De acordo com a definição que nos é dada pelo art.º 1º da LUCh, o cheque é uma ordem escrita sobre um banco para que pague ao emitente ou à pessoa inscrita como último beneficiário uma certa importância em dinheiro, com base em fundos disponíveis para o efeito, que contém o mandato puro e simples de pagar uma quantia determinada, o nome da pessoa a quem ou à ordem de quem deve ser paga, a assinatura de quem a passa e a indicação da data em que e o lugar onde é passada.

É um título de crédito à ordem, de natureza formal, pelo qual uma pessoa se compromete, para com outra, a pagar-lhe determinada importância, em certa data e é envolvido, sob a motivação de facilitar a sua circulação como tal e de salvaguar­dar os interesses de terceiros de boa-fé, das características da incorporação, da literalidade, da abstracção, da independência recíproca das obrigações nele assumi­das e da autonomia do direito do portador.

Assim, o direito de crédito cambiário está consubstanciado no docu­mento, o conteúdo da obrigação cambiária é o que ele revela e é independente da respectiva causa debendi

Os princípios da literalidade e da abstracção são instrumentais em relação à independência do direito cambiário face à causa que esteve na origem da sua constituição.

Por via da relação jurídica cambiária decorrente do cheque que à execução serve de título executivo, está o sacador/embargante, em princípio, juridicamente vinculado a pagar ao exequente a quantia exequenda.

No entanto, a plena relevância das aludidas características da literalidade e abstracção depende do cheque entrar em circulação, ou seja, de passar à titularidade de terceiros.

Deste modo, é de todo o interesse, nas relações cambiárias distinguir-se entre as imediatas, que se estabelecem entre os sujeitos seus intervenientes directos, sem intermediação de outrem, como é o caso, por exemplo, do sacador e do acei­tante, e as mediatas, em que o portador é estranho às relações extracartulares, o que ocorre quando os cheques são endossadas a um terceiro, que, por via desse endosso, passa a integrar a cadeia de sujeitos cambiários.

O cheque em causa está emitido a favor de pessoa diversa do exe­quente que é o seu portador e pelo executado na posição jurídica de sacador, pelo que não estamos no plano das relações imediatas, não podendo, em princípio discutir-se, nesta fase declarativa de oposição à execução, a origem da constituição da obrigação jurídica cambiária, por via da análise do conteúdo da respectiva relação jurídica subjacente, conforme resulta do art.º 22º da LUch, que não permite à pessoa accionada em virtude de um cheque que nas relações mediatas possa opor ao portador as excepções fundadas sobre as relações pessoais delas consigo ou com portadores anteriores a não ser quando o portador ao adquirir o cheque tiver procedido conscientemente em detrimento do devedor.

Dos factos que resultaram provados resulta inequívoco que a Recorrente e Recorrido não se encontram nas relações imediatas.

O art.º 22º da LUCh reproduz o disposto no artigo 17.º da L.U.L.L. para as letras e livranças.

A inoponibilidade das excepções causais a terceiros não reside na abstracção dos títulos de crédito, fundamento que não explicaria a possibilidade dessa defesa já poder valer nas relações imediatas, antes tendo explicação no princípio res inter alii neque nocere neque processe potest [Carolina Cunha, in Letras e Livranças. Paradigmas actuais e recompreensão de um regime, pág. 244 e seg., Almedina, 2012].

Na verdade, conforme dispõe o art.º 406º do C. Civil, quando a relação obrigacional tem na sua origem um contrato, em regra o negócio não têm eficácia externa, só produzindo efeitos relativamente a terceiros nos casos previstos na lei.

Ora, quer o referido art.º 17º da LULL, quer o art.º 22º da LUCh, reforçam aquela regra geral nos títulos de crédito, supondo, tipicamente, situações geradas pela circulação do título, em cujo contexto se reafirma a impossibilidade de o devedor-demandado se defender, invocando excepções emergentes da relação causal da emissão do título às quais o credor-demandante é alheio.

Daí que se diga que o cheque está no domínio das relações mediatas quando o portador é uma pessoa estranha à convenção extracartular subjacente [Cfr. Abel Pereira Delgado, in Lei Uniforme sobre o cheque anotada, pág. 107, da 3.ª ed., Livraria Petrony].

Ora, no presente caso, apesar de o cheque ter sido emitido pelo devedor a favor de terceira pessoa que o endossou à exequente, a relação subjacente à sua emissão tem como sujeitos precisamente o devedor e a sua atual portadora, pelo que esta não é uma pessoa estranha à relação extracartular, não tendo aqui aplicação o princípio res inter alios acta, não havendo por isso qualquer razão que justifique a existência do impedimento previsto no art.º 22º da LUCh.

Se o cheque dado à execução foi emitido para pagamento de parte do preço acordado num contrato de empreitada celebrado entre a exequente e o executado, não há qualquer justificação para que o executado - o sacador do cheque - não possa opor à exequente – a actual portadora do cheque - defesa com base nas relações estabelecidas pelo contrato de empreitada, uma vez que esta não é estranha a essas relações, pelo que não tem aqui aplicação o disposto no art.º 22º da LUCh, conforma decidiu a sentença recorrida, embora com diferentes fundamentos."
 
[MTS]