"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



21/02/2018

Jurisprudência (796)


Procedimento especial de despejo;
oposição; caução
 

1. O sumário de RP 26/10/2017 (2214/17.5YLPRT.P1) é o seguinte:


I - A compressão do direito de defesa resultante da regra do nº 4 do art. 15º-F do NRAU, exigindo a prestação de uma caução pelo valor das rendas em dívida como condição da dedução de oposição em procedimento especial de despejo fundado na falta de pagamento de rendas, não resulta numa solução de indefesa ou sequer de profunda restrição ao direito de tutela judiciária.
 
II - A referido compressão revela-se adequada e proporcional, enquanto contraponto do grau limitado de protecção conferido ao direito de propriedade do senhorio, num contexto integrado já pela aparência de violação da mais básica obrigação contratual do inquilino - a do pagamento das rendas contratadas- prevenindo que o exercício do direito de defesa possa constituir um expediente dilatório, em resultado do qual, com o retardamento da devolução do locado, se agrave ou frustre a realização do direito do senhorio.
 
III - Por não constituir limitação intolerável ao direito de defesa do inquilino, o regime constante do nº 4 do art. 15º-F do NRAU é compatível com os princípios e normas constitucionais de proporcionalidade e de proibição de indefesa, designadamente os arts. 18º e 20º da CRP.
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"[...] quanto à substância da decisão, vem a apelante arguir a inaceitabilidade, à luz de preceitos e princípios constitucionais, do regime legal em causa, por constituir uma solução de indefesa, sem justificação e desproporcionada. [...]

O resultado da conjugação dos valores em presença é óbvio: sendo o fundamento da resolução do contrato uma relevante violação dos interesses económicos do senhorio, pretende-se prevenir que a demora na resolução do litígio - inevitável efeito da dedução de uma oposição àquela pretensão deduzida em procedimento especial de despejo - possa redundar num agravamento irreversível e na eventual frustração daqueles interesses. Isso foi conseguido através da compressão, até certo ponto, do direito à dedução da defesa. Esta compressão opera condicionando o exercício desse direito à prestação de um caução de um valor que poderá não corresponder à totalidade do direito invocado pelo senhorio, mas atingindo um limite tido por razoável: o equivalente ao valor de seis das rendas contratadas.

Antes de prosseguirmos, impõe-se salientar que, no caso sub judice, não está em causa um arrendamento para fins habitacionais, mas sim para o exercício de uma actividade económica, cujo valor é, no mínimo, tão relevante como o inerente à actividade económica dos próprios senhorios, aqui requerentes/apelados. E, bem assim, que diferentemente de outros casos que surgem recorrentemente no sistema judiciário no quadro destes interesses, não estamos perante uma omissão de prestação de caução por dificuldade económica, motivadora, paralelamente, da concessão de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de custas, mas de uma simples e injustificada inobservância daquele ónus processual.

Sem prejuízo, conhecem-se as reservas a que se expõe o regime legal em causa, por constituir, sem dúvida, um condicionamento ao exercício do direito de defesa do inquilino, designadamente no contexto de um regime em que já se deslocalizou para ele aquilo Elizabeth Fernandez (cfr. cit. infra) designou por “iniciativa do contencioso”: é ao inquilino que cabe a iniciativa de, em sede judicial, impedir a formação de um título executivo determinante da entrega do locado, e não ao senhorio que cabe demonstrar os pressupostos necessários à obtenção desse título.

Refere ELIZABETH FERNANDEZ, O Procedimento Especial de Despejo (Revisitando o Interesse Processual e Testando a Compatibilidade Constitucional), JULGAR - N.º 19 – 2013: “Em primeiro lugar, e no que se refere ao incidente da oposição (destinado a evitar a formação do título de desocupação e assim indirectamente a por em crise a cessação comunicada por via extrajudicial) devemos dizer que nos preocupa que a possibilidade de dedução eficaz de oposição esteja condicionada ao caucionamento das rendas em atraso até ao valor de 6 rendas. No fundo do que se trata é de dificultar ou mesmo impedir ao sujeito para o qual o contencioso foi deslocalizado (invertido) a possibilidade de o introduzir e de o exercer. O seu direito de acção (evitar que se forme o título através da impugnação dos fundamentos da anunciada cessação) está dependente da possibilidade de inquilino poder caucionar as rendas despesas ou encargos em atraso até ao valor máximo correspondente a seis rendas. Sabemos que o ónus de caucionamento não existe para os casos em que ao requerido tiver sido concedido o apoio judiciário (artigo 15.º-F, n.º 3). 

Contudo, entendemos que em face da exiguidade da garantia deste apoio financeiro ainda é manifestamente desproporcional a exigência de caucionamento do valor da renda até àquele limite quando o título ainda não está formado, sendo certo que se deve ter presente que do que aqui se trata não é de exigir uma garantia para obter uma efeito suspensivo da execução ou na formação do título para desocupação. Do que aqui se trata é de exigir o caucionamento de uma quantia para exercer o direito de se opor (impugnar) à própria cessação operada, impedindo a sua transformação em título executivo para entrega de coisa certa. Com efeito, não se mostrando paga a caução (tal como sucede com a taxa) a oposição tem-se por não deduzida. (artigo 15.º-F, n.º 4).”

Porém, em divergência para com as considerações referidas, não se nos afigura desproporcional a solução consagrada no regime legal em questão, especialmente numa situação em que – como a dos autos – ambos os interesses em tensão são puramente económicos.

É, de resto, por isso mesmo que acolhemos integralmente a argumentação expendida no Ac. do TRL de 9/7/2015 (proc. nº 2684/14.3YLPRT.L1-7, disponível em dgsi.pt), que se transcreve parcialmente:

“Nos termos do disposto no art. 20º, nº1, da CRP, «A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos». (…)

O direito à justiça não pode, pois, ser prejudicado, nos termos da citada disposição legal, por insuficiência de meios económicos.

Esta insuficiência traduz uma noção relativamente indeterminada, que, como tal, permite uma larga margem de discricionariedade legislativa.

No entanto, incumbindo à lei assegurar a concretização da citada norma constitucional, não pode prever um regime de tal modo gravoso que torne insuportável o acesso aos tribunais, designadamente, condicionando-o a cauções ou outras garantias financeiras incomportáveis.

É certo que a Constituição não determina a gratuitidade dos serviços de justiça, mas é igualmente certo que proíbe que estes sejam tão onerosos que dificultem, de forma considerável, o acesso aos tribunais, sendo que, não pode deixar de haver isenções para quem os não possa suportar sem grandes sacrifícios.

Isto é, haverá que ter em atenção a condição económica das pessoas, devendo observar-se o princípio da proporcionalidade e da adequação, que são princípios básicos do Estado de direito.

Na verdade, nos termos do art.18º, nº 2, da CRP, «A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».

Note-se que há restrições não expressamente autorizadas pela Constituição, que são aquelas que são criadas por lei sem habilitação constitucional, mas que não podem deixar de admitir-se para resolver problemas de ponderação de conflitos entre bens ou direitos constitucionais.

Aliás, a restrição só é legítima, precisamente, para salvaguardar um outro direito ou interesse constitucionalmente protegido.

O que significa que o sacrifício de um direito fundamental não pode ser arbitrário e desmotivado.

Por outro lado, as medidas restritivas legalmente previstas devem revelar-se:

- como meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei, que são os da salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos (princípio da adequação ou da idoneidade);

- necessárias, na medida em que os fins visados pela lei não podiam ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias (princípio da necessidade ou da indispensabilidade);

- proporcionais em relação aos fins obtidos, assim se impedindo a adopção de medidas legais restritivas desproporcionadas e excessivas relativamente àqueles fins (princípio da proporcionalidade em sentido restrito).

Acresce que há sempre um limite absoluto para a restrição de direitos, liberdades e garantias, o qual consiste no respeito do «conteúdo essencial» dos respectivos preceitos, como resulta do disposto no nº3, in fine, do citado art.18º.

Isto é, independentemente de haver ou não excesso de restrições, há que salvaguardar sempre a extensão do núcleo essencial, tendo em conta não só a necessidade de protecção de outros bens ou direitos constitucionalmente garantidos, mas também a necessidade de manutenção de um resto substancial de direito, liberdade e garantia, que assegure a sua utilidade constitucional [...].

No caso dos autos, o outro direito substancialmente garantido a que aludem recorrente e recorrida, é o direito de propriedade privada, consagrado no art.62º, nº1, da CRP.

Assim, de harmonia com o disposto no citado artigo, «A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição».

Aquele direito não faz parte, na CRP, do elenco dos «direitos, liberdades e garantias», apesar de gozar do respectivo regime, naquilo que nele reveste natureza análoga à daqueles (cfr. o art.17º, da CRP).

E como o direito de propriedade reveste, em vários dos seus componentes, uma natureza negativa ou de defesa, possui natureza análoga aos «direitos, liberdades e garantias», pelo que compartilha do respectivo regime específico (art.17º), designadamente para efeito do regime de restrições [...].

Estas, porém, estão sujeitas aos limites das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, dado o carácter análogo do direito de propriedade.

Assim, as restrições também podem vir a revelar-se injustificadas por violação dos princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade.

Note-se que o âmbito do direito de propriedade abrange, além da liberdade de adquirir bens, de usar e fruir dos bens de que se é proprietário, de os transmitir e de não ser privado deles, o direito de reaver os bens sobre os quais se mantém direito de propriedade [...].

Todavia, o direito de não se ser privado da propriedade e do seu uso, não goza de protecção constitucional em termos absolutos, já que apenas está garantido como um direito de não ser arbitrariamente privado da propriedade e de ser indemnizado no caso de desapropriação (cfr. o nº2, do citado art.62º). (…)

Segundo o recorrente, a caução normativamente exigida, além de constituir um factor inibitório do exercício do direito de oposição, para todos aqueles que se vejam em situação de insuficiência económica, apresenta-se, ainda, manifestamente desproporcional, excessiva e injustificadamente redutora da extensão e alcance do conteúdo essencial do direito fundamental albergado no art.20º, nº1, da Lei Fundamental e, por isso, em patente violação do disposto no art.18º, nºs 2 e 3, da CRP/76.

Não cremos, porém, que assim seja.

Conforme de defendeu no Acórdão nº255/07, do Tribunal Constitucional, «A propósito do direito de acesso aos tribunais, na sua vertente de proibição de denegação da justiça por insuficiência de meios económicos, tem este Tribunal seguido uma impressiva jurisprudência de acordo com a qual, conquanto a Constituição não imponha a gratuitidade daquele acesso, o que será vedado ao legislador é o estabelecimento de regras de onde resulte que os encargos que hão-de ser suportados por quem recorre aos órgãos jurisdicionais possam, na prática, constituir um entrave inultrapassável ou um acentuadamente grave ou insuportável sacrifício para desfrutarem de tal direito».

Note-se que, no caso sub judice, estamos perante uma situação de resolução do contrato pelo senhorio, fundada em mora do arrendatário no pagamento da renda, nos termos dos nºs 3 e 4, do art.1083º, do C.Civil, a qual opera por comunicação da senhoria ao arrendatário, onde fundadamente se invoque a obrigação incumprida, de harmonia com o disposto no art.1084º, nº2, do mesmo Código.

Como é sabido, o pagamento da renda ou do aluguer é a primeira e mais relevante obrigação do locatário (cfr. o art.1038º, al.a), do C.Civil).

O seu não pagamento priva o locador do conteúdo económico do seu direito e quebra a confiança no cumprimento daquela obrigação, provocando inúmeros incómodos ao locador.
Trata-se, assim, de uma situação objectiva de incumprimento grave por parte do inquilino.
Por isso que tal situação se encontra entre aquelas que justificam a utilização do procedimento especial de despejo, que é um meio processual que se destina a efectivar a cessação do arrendamento (cfr. o art.15º, do NRAU).

Assim, nos termos da al.e), do nº2, do citado art. 15º, pode servir de base àquele procedimento, em caso de resolução por comunicação, o contrato de arrendamento, acompanhado do comprovativo da comunicação prevista no nº 2, do art.1084º, do C.Civil.

E só nesse caso é que o arrendatário tem o dever de prestar uma caução no valor das rendas em atraso, mas não podendo ultrapassar o valor máximo correspondente a seis rendas, como condição para que a sua oposição possa ser apreciada (cfr. os nºs 3 e 4, do art.15º-F, do NRAU).

Estamos, pois, perante uma caução que, como tal, se destina, apenas, a garantir a posição do senhorio, pelo que, o que for despendido a esse título, não implica, necessariamente, que o arrendatário fique desapossado do respectivo valor em definitivo.

Por outro lado, se este tiver apoio judiciário, fica isento do pagamento da aludida caução.
É certo que o apoio judiciário é uma solução a utilizar, de forma excepcional, apenas pelos cidadãos economicamente carenciados ou desfavorecidos (cfr. os Acórdãos nºs 495/96 e 255/07, do Tribunal Constitucional).

Mas será que a previsão daquela caução, como condição para que a oposição à pretensão de despejo seja apreciada, torna insuportável ou inacessível para a generalidade das pessoas o acesso aos tribunais?

A nosso ver, os valores em causa (valor das rendas em atraso, num máximo de seis rendas), fixados a título de caução, nos termos atrás referidos, não se revelam manifestamente excessivos e desproporcionados, não pondo em risco o acesso à justiça.
Atente-se que tais valores nunca serão perdidos pelo caucionante, pois que, das duas uma: ou a oposição procede e os mesmos são recuperados pelo arrendatário; ou a oposição improcede e os mesmos são destinados ao senhorio, livrando-se o arrendatário, nessa medida, da respectiva obrigação de pagamento.

Não nos parece, pois, que a fixação da caução, nos termos legalmente previstos, constitua um factor inibitório do exercício do direito de oposição.”

Em conclusão de todo este conjunto de argumentos, que subscrevemos na íntegra, partilhamos igualmente a conclusão extraída no referido acórdão: “Consideramos, assim, que estamos perante norma restritiva que se revela proporcional e evidencia uma justificação racional, procurando garantir o adequado equilíbrio face, nomeadamente, ao direito de propriedade privada, constitucionalmente protegido, tal como o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva."

[MTS]