"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



20/02/2018

Jurisprudência (795)


Causa de pedir; factos complementares;
factos instrumentais


1. O sumário de RC 7/11/2017 (1335/13.8TBCBR.C1) é o seguinte:

I - Os factos complementares ou concretizadores dos essenciais que compõem a causa de pedir nos termos do art. 5º do CPC, para poderem ser tomados em consideração pelo tribunal têm que ser considerados como provados na sentença e previamente a tal ser dado conhecimento às partes que irão ser acrescentados.

II - Para que se possam dar como provados os factos complementares ou concretizadores é necessário que os factos essenciais de que eles sejam complemento ou concretização tenham ficado provados, não sendo de admitir que não sendo provados esses factos essenciais da causa de pedir, se julgue a acção procedente com base nos ditos complementares ou concretizadores mas que afinal substituam os da causa de pedir que não se tenham provado.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"No CPC anterior o art. 264 nº1 autorizava o juiz a fundar a decisão não apenas nos factos alegados pelas partes mas também nos “instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa”, e autorizava ainda no seu nº2 a utilizar os factos complementares que fossem complemento ou concretização de outros articulados e resultassem da instrução e discussão da causa, isto desde que a parte interessada manifestasse vontade deles se aproveitar e à parte contrária fosse dada a possibilidade de contraditório.

Por sua vez, no CPC de 2013 - art. 5 - mantém o sentido daquelas anteriores disposições, salvo que o juiz não precisa agora de perguntar pelo assentimento da parte interessada quanto à introdução dos factos no processo.

A alteração existente de um para outro diploma pretende,“ tanto quanto se possa perceber, enfatizar que apenas os factos essenciais têm se ser alegados na petição inicial, deixando clara a regra, que já existia, que os factos instrumentais podem ser mais tarde adquiridos no processo” [Mariana França Gouveia, in O princípio dispositivo e a alegação de factos em processo civil: a incessante procura da flexibilidade processual, p. 604].

Ainda que se tenha deixado de fazer referência no CPC de 2013 ao princípio do dispositivo, ele encontra-se na liberdade das partes da decisão sobre a propositura da acção, sobre os exactos limites do seu objecto (tanto quanto à causa de pedir e pedidos, como quanto às excepções peremptórias) e sobre o termo do processo (na medida em que podem transaccionar) [José Lebre de Freitas, introdução ao Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra, editora, p. 136 e Mariana França Gouveia, op. e loc . cit].

Os factos não principais dividem-se, na terminologia do Código, em factos instrumentais, concretizadores e complementares.

Esta última categoria foi incluída no texto do Código em 95/96 (no então n.º 3 do art. 264.º), mantendo-se agora com uma ligeira alteração. Antes eram designados como “factos essenciais à procedência das pretensões formuladas ou das exceções deduzidas que sejam complemento ou concretização de outras que as partes hajam oportunamente alegado”, hoje “factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado”. A diferença está no desaparecimento do qualificativo essenciais.

Na noção de Castro Mendes [Direito Processual Civil, II, p. 208], factos instrumentais são os que interessam indirectamente à solução do pleito por servirem para demonstrar a verdade ou falsidade dos actos pertinentes e, para Teixeira de Sousa [Introdução ao Processo Civil, p. 52], são aqueles que indiciam os factos essenciais. Por outras palavras, são factos secundários, não essenciais, mas que permitem aferir a ocorrência e a consistência dos factos principais.

Numa distinção clara, Lopes do Rego [Comentário ao CPC, p. 201] escreve que “factos instrumentais definem-se, por contraposição aos factos essenciais, como sendo aqueles que nada têm a ver com substanciação da acção e da defesa e, por isso mesmo, não carecem de ser incluídos na base instrutória, podendo ser livremente investigados pelo juiz no âmbito dos seus poderes inquisitórios de descoberta da verdade material”, enquanto que “factos essenciais, por sua vez, são aqueles de que depende a procedência da pretensão formulada pelo autor e da excepção ou da reconvenção deduzidas pelo réu”.

Num mesmo registo de clareza tomamos a escrita de Teixeira de Sousa ao alertar para que “(…) nunca se entendeu o (agora) disposto no art. 590.º, n.º 2, al. b), e 4, nCPC como permitindo suprir a inexistência ou insuficiência da causa de pedir; logo, não se pode admitir que os factos complementares que sejam alegados na sequência do convite ao aperfeiçoamento sejam factos integrantes da causa de pedir. Esta causa petendi tem de constar da petição inicial, sob pena de ineptidão deste articulado (art. 186.º, n.º 2, al. a), nCPC); assim, se a petição não é inepta por conter uma causa de pedir, nenhum facto que seja adquirido durante a tramitação da causa pode integrar essa mesma a causa de pedir. O que já está completo na petição inicial não pode ser completado por nenhum outro facto.” [In Blog do IIPC, https://blogippc.blogspot.pt/2014/07/factos-complementares-e-causa-de-pedir.html]

São assim factos principais aqueles que integram o facto ou factos jurídicos que servem de base à acção ou à excepção os quais se podem dividir em essenciais ou complementares (ou concretização dos que as partes alegado), sendo os primeiros aqueles que constituem os elementos típicos do direito que se pretende fazer actuar em juízo, e os segundos aqueles que, de harmonia com a lei, lhes dão a eficácia jurídica necessária para fazer essa actuação [AC STJ de 18-05-2004 proc. n.º 1570/04, in dgsi.pt], deixando-se registado que se são complemento ou concretização dos essenciais, em boa verdade e rigor lógico não se podem provar os segundos sem que os primeiros o estejam.

Ora, tudo o que se deixa exposto, serve para que concluamos que a circunstância de na sentença se ter feito alusão, descriminando negativamente, a existência de papéis e serpentinas no chão, não releva para que se possa reclamar (e só implicitamente e não de forma expressa a apelante o parece fazer) que a existência de papéis e ou serpentinas no chão se traduzia num facto complementar ou concretizador dos que a autora houvesse alegado, admissível mesmo que não alegado. E isto por duas ordens de razões. A primeira, mais evidente, porque o tribunal não considerou esse facto provado e como tal não o associou à discussão nos autos. A segunda, porque nenhuma das partes, por maioria de razão a autora, o assinalou ou fez questão de o inscrever no acervo dos que pretendia discutir e sobre o qual pretendia definição de prova, como provado ou não provado, nem o julgador comunicou nos termos do art. 5 nº2 al.b) do CPC às partes a alusão a esse facto (que não declarou provado) para que elas se pudessem pronunciar.

Além do mais, num juízo que nos parece substancialmente definitivo, nunca esse facto se poderia ter como complementar ou concretizador dos essenciais (e menos ainda instrumental) uma vez que ele, a pretender-se que tivesse ficado provado e fosse tomado em consideração na decisão a proferir seria sempre um “facto alternativo” ou “substitutivo” da causa de pedir não alegado, e por isso não admissível.

Como escrito antes, a autora articulou na petição inicial que a sua queda se deveu ao facto de o chão estar escorregadio, fosse porque estava molhado, fosse porque tinha restos de comida, Neste âmbito, a discussão da prova desses factos e do seu nexo de causalidade circunscrevia-se à observação da cerificação de um piso molhado (ou não seco) em resultado dessas circunstâncias (líquidos e/ou comida).

Ora, o querer-se introduzir (se tivesse sido dado como provado e não foi) que a queda existente teria resultado, não do chão estar molhado mas sim da existência de papéis e serpentinas no chão, deslocaria a causa de pedir e o nexo de causalidade de uns factos para outros, diferentes, alternativos e substitutivos e por isso, não complementares nem concretizadores.

Podemos discutir se seria ou não complementar e concretizador, caso se tivesse provado que o chão estava escorregadio, quaisquer factos que embora não alegados tivessem resultado demonstrados da discussão em julgamento no sentido de o chão estar molhado (não por haver nele comida ou bebida) mas outro motivo qualquer (v.g. desde a condensação até à queda no chão de alguém que com a transpiração o pudesse tornar escorregadio como acontece nos recintos desportivos). Neste caso a alegação do chão estar molhado, com a prova desse facto essencial alegado que era o chão estar escorregadio, poder-se-ia questionar se se inseria numa mesma linha de concretização e complementaridade.[...]

No caso, repete-se, mesmo que o tribunal tivesse dado como provado (e não deu por tal não constar nos factos descriminados na sentença) que havia papéis e serpentinas no chão no momento da queda da autora, de forma alguma se podia pretender que esse facto era complementar ou concretizador do antes alegado, uma vez que, então, teria de admitir-se o inadmissível e que era, que não se tendo provado os factos essenciais da causa de pedir, se poderiam substituir estes por outros, provados sem alegação no decurso da audiência, e que não eram complementares, concretizadores ou mesmos instrumentais de nenhuns outros já que os essenciais teriam sido julgados não provados.[...]"

[MTS]