"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



22/02/2018

Jurisprudência (797)


Injunção para pagamento europeia;
oposição


1. O sumário de RP 9/11/2017 (226/17.8T8PRT.P1) é o seguinte:

I - Nos termos do Regulamento (CE) n.º 1896/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de Dezembro de 2006 (Regulamento PEIP – Procedimento Europeu de Injunção Europeia) a oposição do requerido basta-se com a declaração de que contesta o crédito do requerente, não sendo necessário expor as razões que fundamentam a oposição. 
 
II - Essa declaração de oposição pode ser apresentada usando o formulário F do Regulamento mas os tribunais deverão ter em conta qualquer outra forma escrita de oposição, desde que esteja formulada claramente, onde se inclui, designadamente um articulado de contestação comum no ordenamento processual português.
 
III - O artigo 26.º do Regulamento remete para a lei nacional as questões processuais não reguladas expressamente pelo regulamento, pelo que por aplicação do disposto no artigo 193.º, n.º 3, do Código de Processo Civil sempre seria possível aproveitar a contestação como declaração de oposição.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A questão que está suscitada nos autos encontra resposta expressa e simples nas normas europeias que regem o caso, pelo que urge remediar a patente falta de atenção ou deficiência de compreensão das referidas normas que gerou o resultado que se observa nos autos.

A União Europeia entende que a cobrança rápida e eficaz de dívidas pendentes juridicamente não controvertidas é de importância capital para os operadores económicos na União Europeia, dado que os atrasos de pagamento representam uma das principais causas de falência que ameaçam a sobrevivência das empresas, em especial das pequenas e médias empresas, e provocam a perda de inúmeros postos de trabalho.

O Regulamento (CE) n.º 1896/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de Dezembro de 2006 (conhecido como Regulamento PEIP) foi aprovado com o objectivo, em especial, de simplificar, acelerar e reduzir os custos dos processos judiciais em casos transfronteiriços de créditos pecuniários não contestados [artigo 1.º, n.º 1, alínea a)], através da criação de um procedimento europeu de injunção de pagamento. Com as suas disposições o Regulamento procura conciliar a rapidez e a eficácia de um processo judiciário com o respeito dos direitos da defesa nos litígios transfronteiriços relativos a créditos pecuniários incontestados (cf. Acórdão do Tribunal de Justiça de 10 de Março de 2016, no processo n.º C‑94/14). [...]

Nos respectivos considerandos, que como é sabido contêm a fundamentação do dispositivo (articulado) do acto e por isso constituem fontes particularmente autorizadas de interpretação do sentido e objecto da disposição, o Regulamento n.º 1896/2006 refere entre outras coisas o seguinte:

«(11) O procedimento deverá ter por base, tanto quanto possível, a utilização de formulários normalizados para todas as comunicações entre o tribunal e as partes, a fim de facilitar a sua administração e permitir o recurso ao tratamento automático de dados.

(23) O requerido poderá apresentar a sua declaração de oposição utilizando o formulário normalizado que consta do presente regulamento. No entanto, os tribunais deverão ter em conta qualquer outra forma escrita de oposição, caso esteja formulada claramente.

(24) Uma declaração de oposição apresentada no prazo fixado deverá pôr termo ao procedimento europeu de injunção de pagamento e implicar a passagem automática da acção para uma forma de processo civil comum, a não ser que o requerente tenha solicitado expressamente o termo do processo nessa eventualidade. Para efeitos do presente regulamento, o conceito de processo civil comum não deverá necessariamente ser interpretado na acepção do direito interno.

(25) Após o termo do prazo para apresentar a declaração de oposição, o requerido deverá ter, em certos casos excepcionais, o direito de pedir a reapreciação da injunção de pagamento europeia. A reapreciação em casos excepcionais não deverá significar a concessão ao requerido de uma segunda oportunidade para deduzir oposição. Durante o procedimento de reapreciação, o mérito do pedido não deverá ser apreciado para além dos fundamentos decorrentes das circunstâncias excepcionais invocadas pelo requerido. As outras circunstâncias excepcionais poderão incluir os casos em que a injunção de pagamento europeia tenha por base informações falsas fornecidas no formulário de requerimento.»

De acordo com os artigos 2.º, n.º 1, e 3.º, n.º 1, lidos conjuntamente, o Regulamento aplica-se a matéria civil e comercial, em casos nos quais pelo menos uma das partes tenha domicílio ou residência habitual num Estado-Membro distinto do Estado-Membro do tribunal demandado.

O artigo 4.º cria o procedimento europeu de injunção de pagamento «para a cobrança de créditos pecuniários líquidos exigíveis na data em que é apresentado o requerimento de injunção de pagamento europeia». Contudo, um requerente não está impedido de reclamar tal crédito através da instauração de outro procedimento previsto no direito nacional ou no direito da UE (artigo 1.º, n.º 2).

De acordo com o artigo 5.º, n.º 1, o Estado-Membro no qual é emitida uma injunção de pagamento europeia é o «Estado-Membro de origem», e o artigo 5.º, n.º 3, define «tribunal» como «qualquer autoridade de um Estado-Membro competente em matéria de injunções de pagamento europeias ou em quaisquer outras matérias conexas».

Nos termos do artigo 7.º, n.º 1, o requerimento de injunção de pagamento europeia deve ser apresentado utilizando o formulário normalizado constante do Anexo I. Para além dos aspectos relativos ao crédito em causa, o requerimento deve conter os fundamentos da competência judiciária. A secção 3 do formulário normalizado elenca 13 possíveis fundamentos que não exigem mais especificações, enquanto o fundamento 14 consiste em «Outros (queira especificar)». As «Instruções de preenchimento do formulário de requerimento», que constam igualmente do Anexo I, referem, inter alia: «Caso diga respeito a um crédito sobre um consumidor relativo a um contrato de consumo, o requerimento deve ser apresentado ao tribunal competente do Estado‑Membro no qual o consumidor tenha domicílio. Nos restantes casos, o requerimento deve ser apresentado ao tribunal competente nos termos do [Regulamento Bruxelas I] ([…])».

Nos termos do artigo 8.º, o tribunal ao qual seja apresentado um requerimento de injunção de pagamento europeia deve analisar, com base no formulário de requerimento, se estão preenchidos os requisitos estabelecidos, inter alia, no artigo 6.º (relativo à competência judiciária); esta análise pode assumir a forma de um «procedimento automatizado» (embora não seja dada qualquer indicação sobre o que pode constar de tal procedimento). Nos termos do artigo 11.º, se não estiverem preenchidos os requisitos, o requerimento deve ser recusado, mas tal recusa não é passível de recurso nem obsta a que sejam intentadas quaisquer outras acções judiciais com o mesmo objectivo. Contudo, de acordo com o artigo 12.º, se estiverem preenchidos todos os requisitos, deve ser emitida uma injunção de pagamento europeia e o requerido deve ser notificado dessa injunção de pagamento.

O artigo 16.º tem como epígrafe «Dedução de oposição à injunção de pagamento europeia». De acordo com o artigo 16.º, n.ºs 1 a 3, o requerido pode apresentar uma declaração de oposição junto do tribunal de origem, no prazo de 30 dias a contar da sua citação ou notificação, utilizando um formulário normalizado no qual deve indicar apenas que contesta o crédito em causa, não sendo obrigado a especificar os fundamentos da contestação.

O primeiro parágrafo do artigo 17.º, n.º 1, dispõe: «Se for apresentada declaração de oposição no prazo previsto no n.º 2 do artigo 16.º, a acção prossegue nos tribunais competentes do Estado‑Membro de origem, de acordo com as normas do processo civil comum, a menos que o requerente tenha expressamente solicitado que, nesse caso, se ponha termo ao processo» (o que pode fazer preenchendo o apêndice 2 ao formulário de requerimento). Nos termos do artigo 17.º, n.º 2, a passagem da acção para a forma de processo civil comum rege-se pela lei do Estado-Membro de origem.

Se não for apresentada uma declaração de oposição no prazo previsto, o artigo 18.º, n.º 1, determina que o tribunal de origem declare imediatamente executória a injunção de pagamento europeia.

O artigo 20.º tem como epígrafe «Reapreciação em casos excepcionais». Em especial, o artigo 20.º, n.º 2, dispõe: «Após o termo do prazo fixado no n.º 2 do artigo 16.º, o requerido tem […] o direito de pedir a reapreciação da injunção de pagamento europeia ao tribunal competentedo Estado-Membro de origem nos casos em que esta tenha sido emitida de forma claramente indevida, tendo em conta os requisitos estabelecidos no presente regulamento ou outras circunstâncias excepcionais». Nos termos do artigo 20.º, n.º 3, se o tribunal decidir que se justifica a reapreciação, a injunção de pagamento europeia é declarada nula; se decidir indeferir o pedido, a injunção de pagamento mantém-se válida.

Por fim, o artigo 26.º dispõe: «As questões processuais não reguladas expressamente pelo presente regulamento regem-se pela lei nacional.»

Decorre dos citados considerandos e disposições do Regulamentos que o requerido pode apresentar a sua declaração de oposição utilizando o formulário F do presente regulamento, mas não é obrigado a fazê-lo porquanto os tribunais nacionais deverão ter em conta qualquer outra forma escrita de oposição, caso esteja formulada claramente.

Ainda que por razões de agilização e tratamento informático o procedimento de injunção tenha por base formulários destinados a uniformizar o respectivo conteúdo e facilitar a sua elaboração nas diversas línguas da união europeia e reconhecimento pelos diversos Estados-Membros, o que é obrigatório é apenas que a oposição seja apresentada por escrito e que a vontade de se opor à injunção esteja claramente expostanesse escrito.

Note-se que a oposição não necessita de ser fundamentada, isto é, não necessita de ser acompanhada pela indicação das razões de facto ou de direito pelas quais o requerido considera que não deve ser emitida a injunção, é suficiente que o requerido manifeste que se opõe à injunção.

Com efeito, nos termos do n.º 3 do artigo 16.º do Regulamento na declaração de oposição o requerido só tem de afirmar que contesta o crédito em causa, não sendo obrigado a especificar os fundamentos da contestação. Isso é assim porque nos termos do artigo 1.º o procedimento de injunção visa facilitar a cobrança de «créditos pecuniários não contestados».

Conforme se assinala no ponto 40 do Acórdão do Tribunal de Justiça de 13.06.2013 no processo C‑144/12, EU:C:2013:393, «uma interpretação segundo a qual uma oposição acompanhada de alegações sobre o mérito da causa deve ser considerada como a primeira defesa iria, além disso, contra o objectivo pretendido pela oposição à injunção de pagamento europeia» pois que «nenhuma disposição do Regulamento n.º 1896/2006, e nomeadamente o artigo 16.º, n.º 3, deste regulamento, exige que o requerido precise os fundamentos da sua oposição, de forma que esta não se destina a servir de enquadramento com vista a uma defesa de mérito, mas … a permitir ao requerido contestar o crédito».

Por esse motivo, havendo oposição, nos termos do artigo 17.º e do Considerando 24 do Regulamento o procedimento especial de injunção enquanto tal termina, passando automaticamente o expediente a acção judicial de acordo com as normas do processo civil comum, a menos que o requerente tenha expressamente solicitado que, nesse caso, se ponha termo ao processo caso em que não se dá essa conversão do procedimento em processo judicial comum (no sentido de que o procedimento especial regido pelo Regulamento n.º 1896/2006 e os objectivos que este prossegue não são aplicáveis quando os créditos que deram origem à injunção de pagamento são contestados através da oposição prevista no artigo 16.° deste regulamento cf. Acórdãos do Tribunal de Justiça de 04.09.2014 nos processos C‑119/13 e 120/13, EU:014:2144).

Ora se basta que o requerido declare que contesta o crédito em causa e por isso se opõe à injunção, e se para assinalar essa declaração o formulário F previsto no Regulamento apenas contém a expressão «declaro opor-se à injunção de pagamento europeia emitida em”, não havendo no formulário qualquer espaço para justificar ou fundamentar essa posição, não faria qualquer sentido impedir o requerido de, por excesso desnecessário, apresentar uma exposição escrita deixando claramente expostas as razões pelas quais entende que o crédito reclamado pelo requerente não existe ou não é devido. Quod abundat non nocet!

Se dúvidas houvesse quanto a esse aproveitamento (e a consequência da rejeição da oposição apenas por não ser apresentada através de um formulário obrigava a ter dúvidas e a procurar resposta para as mesmas), as mesmas tinham de se considerar ultrapassadas na nossa ordem jurídica através da remissão do artigo 26.º do Regulamento para a lei nacional no que concerne «às questões processuais não reguladas expressamente» pelo regulamento.

Com efeito, caso se entendesse que o uso do formulário era obrigatório e que o requerido não se opôs usando o meio processual adequado havia que lançar mão do disposto no artigo 193.º, n.º 3, do Código de Processo Civil e aproveitar a contestação apresentada como verdadeira oposição, ainda que, se necessário, declarando não escrito tudo quanto nela exceda a mera manifestação da declaração de oposição.

Nesta medida e sem necessidade de mais argumentos, impõe-se concluir que o despacho recorrido que considerou não ter sido apresentada pelo requerido oposição no prazo legal fez uma desatenta e errada aplicação das normas legais aplicáveis, devendo por isso ser revogado.

Acrescente-se que a decisão de mandar desentranhar a contestação apresentada é ineficaz porquanto a apresentação da mesma (para além do suporte em papel, esse sim passível de desentranhamento) consta do sistema informático CITIUS e o seu registo informático e respectivo conteúdo não foi eliminado, razão pela qual, ainda que se entendesse que o requerido devia ter interposto recurso desse despacho (o que não fez), sempre teria de se considerar que na versão electrónica do processo que é presentemente a forma natural de existência e tramitação do processo a contestação subsiste como apresentada, levando a que tenha de se considerar errada a afirmação constante do despacho recorrido de que não foi tempestivamente apresentada oposição."


[MTS]