Providência cautelar;
interesses difusos
1. O sumário de 26/10/2017 (3375-16.6T8FNC.L2-6) é o seguinte:
– O procedimento cautelar comum é o meio adequado a prevenir ou a fazer cessar as infracções contra a saúde pública e contra a prevenção do ambiente e qualidade de vida conferido a todos, pessoalmente ou através de associações, pelo n.º 3 do artigo 52 da Constituição da República Portuguesa.
– Pretendendo-se com a providência tutelar interesses difusos ligados à saúde e qualidade de vida, não podem os requerentes aspirar a uma tutela egoísta e exclusiva das suas situações jurídicas individuais ou de uma dada categoria de pessoas, uma vez que os interesses a tutelar se perfilam como pertença genérica de toda a comunidade em que se inserem.
– Só em casos limite de grave e intolerável degradação da qualidade de vida, devidamente comprovados, e sem prescindir do sentimento dominante na comunidade social, será de admitir a exercitação de providências de carácter preventivo e repressivo com custos sociais desproporcionados.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"3.1. – No presente procedimento, prévio a acção popular civil, estão em causa, indiscutivelmente, “interesses difusos”, que se reconduzem à defesa da qualidade de vida da população do Funchal e de um leque de pessoas mais amplo que eventualmente frequente a Praia Formosa.
Com se pondera na sentença recorrida, os direitos fundamentais de personalidade, consagrados, desde logo, no texto constitucional – direito à integridade física e moral e ao livre desenvolvimento da personalidade (artigos 25º e 26º, nº1) - são reiterados no Código Civil, ao contemplar, no artigo 70º, a tutela geral da personalidade dos indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral – sendo óbvio e inquestionável que o direito ao bem-estar e lazer se configuram manifestamente como requisitos indispensáveis à realização do direito à saúde e à qualidade de vida, constituindo emanação do referido direito fundamental de personalidade.
No caso vertente, apresentaram-se os Recorrentes a defender o seu direito de personalidade à qualidade de vida e bem-estar (artigos 34º a 36º e 39º a 40º da petição).
E agiram ainda como actores populares para prevenção da qualidade de vida e bem-estar, direitos violados com o bloqueio do acesso ao parque de estacionamento em causa.
Ora, cabe aqui referir que concordamos plenamente com a Sra. Juiz a quo quando refere ser inquestionável “que o direito ao lazer e bem-estar, como factores condicionantes ao equilíbrio psicossomático da pessoa humana, se configuram manifestamente como requisitos indispensáveis à realização do direito à saúde e à qualidade de vida, constituindo emanação do referido direito fundamental de personalidade, já o estacionamento de veículos de forma livre e gratuita junto às zonas de passeio e lazer não se nos apresenta, em abstracto, como condição imprescindível à realização do direito à saúde e à qualidade de vida, nomeadamente na vertente dos direitos ao lazer e bem-estar e, por conseguinte, como emanação de qualquer direito de personalidade.”
Isto porque, como se refere, em concreto, da factualidade indiciariamente provada, designadamente sob os pontos os pontos 6. a 26. e 55. a 64. também não resultam circunstâncias que transvertam a utilização de um parque de estacionamento de veículos junto da Praia Formosa e “promenade” ali existente numa exigência fundamental à efectivação do direito à saúde e qualidade de vida, na perspectiva do direito ao lazer e bem estar.
É certo que a factualidade descrita sob os pontos 24. e 25. indicia que, de um modo genérico, poderá “a qualidade de vida” ser prejudicada pelo obstrução do tráfego e acrescida dificuldade de circulação automóvel, incluindo veículos de socorro, que, após o fecho do parque de estacionamento, o estacionamento de veículos nas margens das estradas e no passeio provoca para toda a zona e, nomeadamente, pelo facto de os serviços de segurança, emergência e saúde terem deixado de ali ter assegurados lugares de estacionamento.
No entanto, nessas circunstâncias, as perturbações em causa, são decorrência da actuação dos condutores e utentes das vias, que as obstruem ou estacionam as respectivas viaturas, dificultando a passagem de outras, o que não é garantido que deixasse de suceder com a reabertura do parque de estacionamento.
Tudo a concluir, como acertadamente se concluiu na decisão recorrida, que, ainda que se admita estarem os Recorrentes e os utentes e visitantes da Praia Formosa e sua “promenade” prejudicados com a perda de alguns minutos ou horas de sol, mar, passeio e actividades físicas, na procura de lugar de estacionamento das respectivas viaturas, na deslocação em transportes públicos ou a pé, bem como com a maior distância que eventualmente terão que percorrer desde o local de paragem da viatura ou do transporte público até à praia, entendemos que não ocorre afectação da qualidade de vida ou do bem-estar.
3.2. – Os Recorrentes estribaram, ainda, a respectiva pretensão de desobstrução da entrada e saída do parque de estacionamento em causa e de intimação da requerida a abster-se da prática de actos que impeçam ou dificultem o acesso e utilização de tal parque de estacionamento à população da Madeira e aos turistas, no “carácter dominial” do terreno onde foi construído o parque de estacionamento (artigos 44º a 50º do requerimento inicial).
Contudo, bem andou a Sra. Juiz em considerar improcedente tal argumentação, desde logo por ter ficado demonstrado que o terreno onde está implantado o parque de estacionamento em causa é propriedade da Recorrida (pontos n.ºs 2., 27. a 43. e 50. a 53. Dos factos provados), a qual beneficia, aliás, da presunção derivada do registo (art.º 7º do Cód. Registo Civil), presunção que não foi ilidida pelos Recorrentes.
3.3. – E também, decidiu acertadamente ao indeferir a pretensão dos Recorrentes de, em defesa do domínio público autárquico, perante a alegada inércia do município do Funchal, invocarem a aquisição, por usucapião, da parcela de terreno onde se encontra implantado o parque de estacionamento, assim como, e subsidiariamente, a aquisição da mesma parcela por acessão industrial imobiliária.
A pretensão de usucapião está naturalmente votada ao insucesso, por não terem logrado provar uma actuação do município do Funchal, através da população em geral, correspondente ao exercício do direito de propriedade (art.º 1251º do CC.
Para posse susceptível de conduzir à usucapião é necessário que, por um lado, se verifiquem actos materiais que permitam concluir por uma actuação de facto sobre o objecto em questão (corpus) e, por outro, que o agente actue com uma intenção idêntica à de um titular do direito real em causa (animus).
A comprovada utilização da parcela de terreno em causa pela população do Funchal, ao longo de cerca de 30 anos, não faz dos munícipes que utilizam esse prédio verdadeiros possuidores do mesmo, considerados quer isoladamente, quer colectivamente, já que não se provou que o tenham utilizado como titulares de qualquer direito real sobre ele.
Do elenco de factos provados apenas se retira que foram meros utilizadores (ou possuidores precários), qualidade em que fruíram das vantagens e utilidades colectivas (no sentido de satisfação de interesses colectivos ou comunitários) por ele proporcionadas.
Não se configura, assim, uma situação de posse que pudesse conduzir à usucapião da parcela de terreno aonde está implantado o parque de estacionamento em causa e, em consequência, não pode afirmar-se uma aquisição, pelo Município do Funchal, do direito de propriedade sobre tal terreno por usucapião e, por conseguinte, pela probabilidade séria da existência ou possibilidade de emergência de um direito sobre tal terreno, que legitime a respectiva utilização pública e que preencha o primeiro dos mencionados requisitos para a procedência do procedimento cautelar."
[MTS]