"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



08/02/2018

Jurisprudência (787)



Impugnação de assinatura; ónus da prova;
prova pericial; livre apreciação


1. O sumário de RL 17/10/2017 (171/10.8TBIDN-A.C1) é o seguinte: 

I – Sendo impugnada pelo executado – no âmbito da oposição que vem deduzir à execução – a autoria e a correspondente subscrição do título de crédito em que se fundamenta a execução, cabe ao exequente o ónus de provar a veracidade da assinatura que consta do título e que é imputada ao executado.

II – Porque a análise e comparação de letras e assinaturas é matéria que exige conhecimentos técnicos específicos – não se bastando, por regra, com uma visualização e análise feita por um leigo na matéria a olho nu – e porque tais conhecimentos não são inerentes às funções do juiz ao ponto de se dever presumir que qualquer juiz pode e deve ter tais conhecimentos e habilitações, não será, por regra, admissível que o julgador fundamente a sua convicção num juízo técnico e valorativo por ele efectuado que, divergindo do juízo pericial, não encontra apoio em qualquer outro elemento probatório.

III – Assim, ainda que existam razões objectivas para pôr em causa a credibilidade da perícia e duvidar da validade das respectivas conclusões, não deverá o juiz substituir-se ao perito para emitir, ele próprio, um juízo valorativo e técnico divergente daquele e nele fundar a sua convicção e decisão; o que se justificará, nessas circunstâncias, é o esclarecimento da perícia ou, se necessário, a realização de segunda perícia.
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"[...] os embargos deduzidos à execução fundamentavam-se na alegação de que a assinatura constante da livrança que era imputada à Embargante não lhe pertencia uma vez que não havia sido feita pelo seu punho.

A sentença recorrida julgou os embargos improcedentes, dizendo que – e passamos a citar – “…do acervo fáctico dado como provado não resultam dúvidas que a livrança subscrita para garantia do cumprimento do contrato de mútuo n.º 164638 foi subscrita pelos Executados B... e C... , que a assinaram pelo seu punho”.

É certo, porém, que essa afirmação não é verdadeira, uma vez que não resulta da matéria de facto dada como provada que a assinatura constante da livrança em questão tivesse sido efectuada pelo punho da Embargante, ora Apelante. Apenas se julgou provado que foi ali aposta uma assinatura com o nome de “ CC... ”, mas em lugar algum da matéria de facto se julgou provado que tal assinatura foi efectuada pelo punho da Embargante e que, nessa medida, a livrança tenha sido por si subscrita.

Mas, ainda que ao nível da fundamentação jurídica não seja possível encontrar na sentença recorrida o apoio lógico e necessário para a decisão que veio a ser proferida – uma vez que, ao nível da fundamentação jurídica, apenas se invoca, no essencial, a circunstância de ter ficado provado que a assinatura em questão havia sido feita pelo punho da Embargante, o que já vimos não ser verdadeiro – é possível perceber pela fundamentação da decisão de facto que, na realidade, aquela decisão terá assentado em duas circunstâncias:

• Considerou-se que recaía sobre a Embargante o ónus de provar que a assinatura em questão não lhe pertencia (ainda que esta questão não tivesse sido referida e analisada ao nível da fundamentação jurídica como seria apropriado);

• Considerou-se que estaria provado que aquela assinatura foi escrita pelo punho da Embargante – como se depreende, designadamente, do seguinte excerto: “…não restando qualquer dúvida para este Tribunal que as assinaturas constantes do contrato de mútuo e da livrança dada à execução foram escritas pelo próprio punho da Embargante” – ainda que esse facto não tenha sido incluído na matéria de facto que se julgou provada, como seria suposto acontecer em face da convicção formada acerca desse facto.

Assim sendo, a primeira questão que se coloca é a de saber a quem pertence o ónus de prova do aludido facto.

A sentença recorrida considerou que era a Embargante que tinha o ónus de provar que a assinatura em questão não lhe pertencia (ainda que – reafirma-se – não tenha sido esse o fundamento utilizado para a improcedência dos embargos, uma vez que – como se referiu – essa improcedência terá assentado na afirmação de que estaria provado que aquela assinatura havia sido feita pelo punho da Embargante, apesar de – repetimos – esse facto não constar da matéria de facto que se julgou provada).

Sustenta, no entanto, a Apelante que era a Embargada quem tinha o ónus de provar a veracidade daquela assinatura.

E, na nossa perspectiva, a razão está com a Apelante.

Dispõe, a este propósito, o artigo 374º do CC que “Se a parte contra quem o documento é apresentado impugnar a veracidade da letra ou da assinatura…incumbe à parte que apresentar o documento a prova da sua veracidade”.

Assim, porque o documento em questão (livrança) foi apresentado pela Exequente contra a Executada e tendo esta impugnado a veracidade da assinatura que constava desse documento e que lhe era imputada, cabia à Exequente o ónus de provar a sua veracidade. [...]

Concluímos, portanto, em face do exposto, que – ao contrário do que se considerou na decisão recorrida – era a Embargada/Exequente que tinha o ónus de provar a veracidade da assinatura que constava da livrança e que era imputada à Embargante/Executada.

[...] tal como dissemos supra, não consta da matéria de facto julgada provada que aquela assinatura tivesse sido feita pelo punho da Embargante e essa circunstância conduziria, em princípio, à procedência dos embargos.

Sucede, porém, que apesar de esse facto não ter sido julgado provado, ele também não foi julgado não provado, o que significa que a sentença recorrida não emitiu sobre ele qualquer decisão expressa; a sentença apenas se pronunciou sobre o facto negativo (julgando-o não provado), sem que tivesse emitido pronúncia sobre o facto positivo quando é certo que, de acordo com as regras do ónus da prova, era este o facto relevante para a decisão.

É verdade, no entanto, que, apesar de esse facto não ter sido incluído na matéria de facto que foi enunciada como provada, resulta claramente da motivação/fundamentação da sentença que o Mº Juiz a quo formou a convicção de que o mesmo havia resultado provado e apenas não o terá mencionado expressamente como provado por ter entendido que era a Embargante que tinha o ónus de provar que não havia assinado a livrança e que, como tal, era este o facto relevante para a decisão (foi, aliás, com base nessa convicção que se julgou provado que a Embargante havia alterado a verdade dos factos na petição de embargos que apresentou em juízo, ainda que, como se verá mais adiante, este facto não possa manter-se por corresponder a mero juízo conclusivo).

Resta saber, portanto, se havia razões bastantes para a formação dessa convicção.

A Apelante entende que não, sustentando, aliás, que a prova produzida justificaria que se julgasse provado o facto contrário, ou seja, que não havia sido ela a assinar a livrança e o contrato que lhe esteve subjacente.

Refira-se, desde já, que a prova produzida nunca seria bastante para considerar demonstrado que aquelas assinaturas não tivessem sido efectuadas pela Embargante. Com efeito, a circunstância de a própria Embargante negar a autoria dessa assinatura não é, evidentemente, suficiente para fundar a nossa convicção acerca da realidade desse facto, o mesmo acontecendo com a perícia efectuada onde se concluiu ser muito pouco provável que aquelas assinaturas pertençam à Embargante. De facto, esta conclusão da perícia poderá justificar a dúvida fundada acerca da veracidade dessa assinatura, mas não seria suficiente, só por si, para fundar a convicção segura de que a assinatura não é verdadeira, até porque, de acordo com a perícia, esse resultado corresponde ainda a um grau de significância compreendido entre 15% e 30%.

Mas teremos bases bastantes para concluir desde já – como fez a sentença recorrida – que aquela assinatura foi feita pela Embargante?

Pensamos que não.

Estando em causa a autoria de uma assinatura que é negada pela pretensa autora e não existindo sequer qualquer testemunha que ateste ter presenciado a elaboração dessa assinatura, parece-nos indiscutível que só um exame pericial poderia esclarecer esse facto.

Ora, a perícia efectuada concluiu ser muito pouco provável que aquela assinatura tivesse sido feita pela Embargante, não se colhendo, portanto, nessa perícia o apoio necessário para fundar a nossa convicção acerca daquele facto.

A sentença recorrida, depois de apontar algumas deficiências e incongruências do relatório pericial, acabou por analisar e comparar os caracteres que compõem a assinatura que consta do contrato e da livrança e os que compõem a assinatura que constava do BI à data dos factos, concluindo que as assinaturas em questão pertenciam à Embargante.

Mas, salvo o devido respeito, não nos parece correcto esse procedimento, uma vez que a sentença recorrida acabou por se substituir ao perito, formulando um juízo técnico que contrariou expressamente o juízo pericial, sem que dispusesse dos conhecimentos técnicos necessários para o efeito (pelo menos nada nos permite concluir pela existência desses conhecimentos). De facto, a análise e comparação de letras e assinaturas é matéria que exige conhecimentos técnicos específicos e que, por regra, não se bastará com uma visualização e análise feita a olho nu, sendo certo que as falsificações de letras e assinaturas são, por vezes, bem elaboradas sem que possam ser detectadas, com a necessária segurança, a olho nu e por quem não disponha de conhecimentos técnicos e específicos sobre essa matéria. Importa notar que é precisamente a falta desses conhecimentos especiais por parte do julgador que está subjacente à realização da perícia (cfr. art. 388º do CC) – por isso, foi determinada a sua realização – e, nessa medida, não parece que o julgador se deva substituir ao perito para emitir, ele próprio, um juízo valorativo e técnico divergente daquele que foi efectuado pelo perito.

Sendo indiscutível que, como preceitua o art. 389º do CC, a perícia está sujeita à livre apreciação do Tribunal, a verdade é que essa liberdade de apreciação do julgador está condicionada pelo facto de não dispor dos conhecimentos específicos necessários para avaliar a correcção ou incorrecção dos juízos técnicos que nela estão implicados e, nessas circunstâncias, não estando ao alcance do julgador a efectiva possibilidade de sindicar e infirmar os juízos técnicos dos peritos (porque não dispõe dos conhecimentos técnicos e científicos que para tal seriam necessários), a não-aceitação do resultado da perícia há-de radicar em quaisquer outras razões objectivas que, de algum modo e com a necessária segurança, lhe permitam contrariar ou pôr em dúvida aquele resultado, seja porque a metodologia adoptada ou a respectiva fundamentação não são suficientemente credíveis, seja porque se colhem na prova produzida outros elementos que, com a necessária segurança, permitem infirmar ou pôr em causa as conclusões da perícia ou os pressupostos que lhe estão subjacentes.

Mas, ainda que existam razões objectivas para pôr em causa a credibilidade da perícia e duvidar da validade das respectivas conclusões, não será, por regra, admissível que o julgador fundamente a sua convicção num juízo técnico e valorativo por ele efectuado que, divergindo do juízo pericial, não encontra apoio em qualquer outro elemento probatório.

Assim sendo, não nos sentimos autorizados e habilitados para formular um qualquer juízo técnico divergente daquele que foi efectuado pelo perito para concluir – com base numa análise e comparação da letra a olho nu – que aquela assinatura foi feita pela Embargante. E, se é certo que não nos sentimos habilitados a fazer essa análise e a formular qualquer juízo sobre a matéria, também não poderemos reconhecer tal competência e habilitação ao Mº Juiz a quo, uma vez que tal habilitação (ainda que, no caso, possa existir) não está comprovada (nem tinha que estar porque o juiz não teve intervenção como perito) e não é inerente às funções do juiz ao ponto de se dever presumir que qualquer juiz pode e deve ter tais conhecimentos e habilitações (sendo que, a ser assim, não se justificaria a realização da perícia).

Nessas circunstâncias e perante a conclusão do perito, não poderemos ter como demonstrado que a assinatura em questão foi efectuada pela Embargante (o relatório pericial não apoia essa conclusão e também não existe qualquer outra prova onde ela se possa fundamentar).

Mas, se não podemos contrariar o juízo técnico formulado pelo perito, poderemos, contudo, proceder à sua análise crítica e poderemos questionar – ou pôr em dúvida – a sua validade, tendo em conta a metodologia adoptada e a respectiva fundamentação. [...]

Concluindo:

- Era a Embargada/Exequente que tinha o ónus de provar a veracidade da assinatura que constava da livrança e que era imputada à Embargante/Executada e, portanto, o facto que releva para a decisão e que importa apurar é o facto (positivo) de tal assinatura ter sido aposta pela Embargante;

- Não foi proferida decisão sobre esse facto, seja no sentido de o julgar provado, seja no sentido de o julgar não provado (sendo que tal facto não consta do elenco dos factos provados, tal como não consta do elenco dos que não foram julgados provados);

- O exame pericial que foi realizado – e que é imprescindível para o apuramento daquele facto – suscita dúvidas que põem em causa a validade da respectiva conclusão, razão pela qual deverá ser objecto de esclarecimento e eventual ampliação nos termos supra mencionados;

- Assim sendo, e ao abrigo do disposto no artigo 662º, nº 2, b) e c), do CPC, importa determinar o esclarecimento e eventual ampliação da perícia e anular a decisão proferida em 1ª instância para que, em face dos resultados da perícia devidamente esclarecida/ampliada, seja proferida nova decisão que contemple o facto (positivo) supra mencionado e que (expressamente) julgue provado ou não provado que a assinatura aposta na livrança e no contrato foi aposta pelo punho da Embargante."

[MTS]