"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



07/02/2018

Jurisprudência (786)


Contrato-promessa; direito de retenção;
jurisprudência uniformizada; aplicação no tempo


1. O sumário de RP 11/10/2017 (8892/13.7TBVNG-B.P1) é o seguinte:
 
I – No âmbito de um processo de insolvência, o cumprimento de contrato promessa com tradição do imóvel a que se refere o contrato prometido por parte do Administrador de Insolvência, de harmonia com o disposto no artigo 106º do CIRE, não implica, necessariamente, que este deva proceder ao distrate dos ónus e encargos que incidem sobre o imóvel prometido vender.
 
II – Doutro modo, seria posta em causa a função basilar da hipoteca de conferir ao credor o direito a ser pago pelo valor da coisa hipotecada, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou prioridade no registo, conforme decorre do art.º 686.º, n.º 1 do Código Civil.
 
III - O Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2014, de 20.3.2014 (proc. 92/05.6TYVNG-M.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt.) apenas confere o gozo do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil ao promitente-comprador que tenha a qualidade de consumidor entendida esta no sentido de estarmos perante um utilizador final que utiliza o imóvel prometido comprar para uso próprio e não com escopo de revenda.
 
IV - Em tese geral, os acórdãos de uniformização de jurisprudência não devem ser usados quando da sua aplicação decorra uma objectiva frustração de expectativas das partes; não pode, portanto, essa aplicação constituir uma “decisão-surpresa” frustradora dessas expectativas.
 
V – Um qualquer acórdão uniformizador decorre, necessariamente, de uma prévia querela jurisprudencial sobre o “thema decidendum”; donde não constitui decisão-surpresa a aplicação de um dado acórdão uniformizador relativamente aos efeitos de um dado contrato exarado numa data em que tal polémica jurisprudencial já era objectivamente patente.
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"A [...] questão em litígio prende-se com a graduação do crédito do apelante defendendo este que o seu crédito de €: 331.700,00 beneficia de garantia real e prevalece sobre a hipoteca constituída a favor do credor hipotecário.

Argumenta, para tanto, em síntese que lhe deveria ter sido reconhecido o direito de retenção sobre o imóvel nos termos do disposto no art. 755º, nº 1, al. f) do Código Civil.

A recusa de tal reconhecimento pelo tribunal “a quo” decorreu de não poder o impugnante ser considerado consumidor, o que o apelante não aceita quer porque dos factos não resulta que o Apelante seja ou não “consumidor”, discussão essa que não foi suscitada pelas partes e como tal não pode ser apreciada, quer porque a jurisprudência uniformizada do STJ que restringiu a aplicação do art. 755º, nº 1, al. f), do CC, no sentido de que o direito de retenção aí previsto apenas abrange o promitente-comprador que seja consumidor, não deverá ser aplicada ao presente caso.

Vejamos. “Prima facie” entendemos que o tribunal apelado podia, e devia, apreciar de que modo o crédito do impugnante deveria ser graduado, designadamente apurando se goza de garantia legal. Tal apreciação pressupõe a aferição da existência, ou não, do direito de retenção e esta, por sua vez, exige a ponderação dos pressupostos respectivos nos quais, por força da uniformização jurisprudencial encetada nesta matéria, se inclui a qualidade de consumidor deste credor; donde, não existe qualquer obstáculo à actuação do tribunal apelado neste contexto
.
Cumpre, pois, apreciar a questão de fundo.

O art.º 755º, nº 1, al. f) do Cód. Civil estabelece que goza do direito de retenção «o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442º.

Por outro lado, o art.º 106º, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) diz-nos que «no caso de insolvência do promitente-vendedor, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento do contrato-promessa com eficácia real, se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador.»

Discute-se justamente se, uma vez recusado – qualquer que seja o motivo - o promitente-comprador que tenha a tradição da coisa conserva o direito de retenção que a lei civil comum lhe atribui para a defesa do seu crédito. Sobre esta questão, perante a diversidade de entendimentos, o Supremo Tribunal de Justiça através do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2014, de 20.3.2014 (proc. 92/05.6TYVNG-M.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt.) fixou jurisprudência nos seguintes termos:

“No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil.”

Temos, pois, a necessidade para que o promitente-comprador, em graduação de créditos em processo de insolvência, goze de direito de retenção que incluir este no conceito de consumidor.

A fundamentação exaustiva do Acórdão Uniformizador fornece na nota 10 elementos que permitem vislumbrar o que se quis incluir e excluir quando se inseriu o conceito de consumidor na parte da uniformização. Assim, pode ler-se: “…não sofre dúvida que o promitente-vendedor é in casu um consumidor no sentido de ser um utilizador final com o significado comum do termo, que utiliza os andares para o seu uso próprio e não com escopo de revenda”.

Neste sentido, entendemos, em consonância com o decidido em primeira instância, que os factos apurados permitem concluir, com certeza bastante, que não estamos perante um consumidor; o credor em causa alojava trabalhadores seus no imóvel e via a compra como um investimento, com o escopo de revenda.

*
 
De ponderar com mais cuidado uma outra alegação segundo a qual o tribunal recorrido não teria que apurar da qualidade de consumidor deste credor por estarem em causa situações que se verificaram em data anterior ao citado Acórdão Uniformizador apenas a partir da qual surgiu esta imposição necessidade de indagação da qualidade de utilizador final por parte daquele que promete adquirir um dado imóvel.

Neste sentido, anote-se recente Acórdão desta Relação em que a propósito de uma reclamação de créditos datada já de 2007 entendeu que, embora nesse ano fosse já reconhecida uma significativa divergência jurisprudencial quanto à concessão de direito de retenção e prevalência do crédito respetivo sobre crédito garantido por hipoteca, nos casos de incumprimento de contrato-promessa, em que houve tradição da coisa, com decisões em sentido afirmativo e negativo, a questão desse direito de retenção ser, nestes casos, concedido apenas ao promitente-comprador que tenha a qualidade de consumidor só principiou a ser mais profundamente colocada jurisprudencialmente com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.6.2011 (proc. nº 6132/08.0TABRG-J.G.A1, disponível in www.dgsi.pt.).

Nesse acórdão, porém, o motivo pelo qual esta circunstância de não estarmos perante promitentes-compradores veio a ser desconsiderada assentou, em concreto, na circunstância de não existir factualidade alegada, nem provada sobre a qualidade de consumidores dos credores reclamantes, tratando-se de uma questão que só foi suscitada, nesse outro processo, em sede de recurso. Configuraria, portanto, uma autêntica questão nova, que não é estritamente jurídica, cujo conhecimento estaria vedado ao tribunal de recurso; não ocorre tal condicionante nestes autos.

Em causa estará assim, no rigor dos princípios, a questão da aplicação no tempo dos acórdãos de uniformização de jurisprudência. Em tese geral, os acórdãos de uniformização não devem ser aplicados quando da sua aplicação decorra uma objectiva frustração de expectativas das partes; não pode, portanto, essa aplicação constituir uma “decisão-surpresa” frustradora dessas expectativas.

Não cremos, porém, que seja essa a situação em apreço. 

Note-se que a interpelação do ora apelante para cumprimento do contrato promessa de compra e venda junto do Administrador da Insolvência nomeado nos autos é de 20/08/2014 [...]  já após inclusive a prolacção do acórdão uniformizador que existe, justamente, em função de uma polémica jurisprudencial que, como vimos, delineia-se já em 2011; o próprio contrato promessa na origem do pretendido direito de retenção é de Abril de 2013. Por outra via, a questão não surge como nova aquando da instância recursal na medida em que foi previamente abordada, com detalhe, pela sentença impugnada.

Concluímos pois por uma tripla adesão ao acórdão apelado. A questão podia e devia ser dirimida pois era fulcral à luz da evolução jurídica e doutrinal existente nesta matéria, implicando uma prévia indagação factual; foi-o de modo assertivo na medida em que o apelante não tem, à luz da factologia apurada, a qualidade de comerciante; não estava o tribunal coarctado, em sede de aplicação do atinente acórdão uniformizador no tempo, na medida em que o próprio contrato que fundaria o direito de retenção data de 2013 numa altura em que já decorria a controvérsia jurisprudencial solucionada pelo dita decisão uniformizadora do STJ."
 
3. [Comentário] Já por diversas vezes se procurou sensibilizar a jurisprudência para a importância da problemática da aplicação no tempo dos acórdãos de uniformização de jurisprudência (clicar, por exemplo, aqui e aqui). O acórdão da RP confirma que os tribunais já se encontram suficientemente sensibilizados para o problema.
 
MTS