"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



09/02/2018

Jurisprudência (788)

 
Investigação da paternidade; prazo;
caducidade; ónus da prova
 

1. O sumário de RC 17/10/2017 (850/14.0TBCBR.C1) é o seguinte:
 
I - Com as alterações operadas pela Lei 14/2009, de 1 de Abril, ao art.º 1817º do C. Civil, apesar da manutenção da estrutura desta disposição fazer parecer que continuamos a estar perante um prazo geral de caducidade, agora mais alargado, estabelecido no n.º 1, e diversos prazos especiais previstos nos números seguintes, uma análise dos diferentes prazos estabelecidos, desinserida da estrutura organizativa deste preceito, revela-nos uma previsão que segue um outro figurino.

II – Na verdade, ao estabelecer-se na alínea b) do n.º 3 que a ação de reconhecimento da paternidade pode ser intentada, após o decurso do prazo previsto no n.º 1, nos três anos posteriores ao conhecimento pelo investigante de factos ou circunstâncias que justifiquem a investigação, designadamente quando cesse o tratamento como filho pela pretensa mãe, define-se um prazo geral de caducidade aplicável, por regra, a todas as ações deste tipo, assumindo-se os prazos previstos no n.º 2 e n.º 3, a), como prazos especiais face àquele prazo geral e funcionando o prazo estabelecido no n.º 1 como a delimitação de um período durante o qual não opera qualquer prazo de caducidade.

III - Neste novo figurino perde qualquer sentido dizer-se que o prazo de caducidade previsto no art.º 1817º, n.º 3, b), processualmente, integra uma contra-excepção, ou facto impeditivo da caducidade prevista no n.º 1, do mesmo artigo, pelo que é indiscutível a aplicação do disposto no art.º 343º, n.º 2, do C. Civil, no que respeita à distribuição do ónus da prova quanto ao decurso desse prazo de três anos.

IV - Não consignando a lei, neste caso, uma diferente forma de distribuição do ónus da prova, nos termos do artigo 343º, n.º 2, do C. Civil compete ao pretenso pai demonstrar que a investigante, quando propôs a ação, além de já ter decorrido o prazo previsto no n.º 1, já tinha conhecimento há mais de 3 anos de factos ou circunstâncias que justificavam a propositura da ação, para que se possa considerar caducado o direito ao reconhecimento judicial da paternidade.

V – Aliás, perante as dúvidas que vem suscitando a constitucionalidade da existência de qualquer prazo de caducidade neste tipo de ações, uma solução que ainda faça recair sobre o investigante o ónus da prova sobre os factos que afastem a aplicabilidade desses prazos, dificultando ainda mais o exercício do direito ao conhecimento da filiação, arriscará uma reprovação numa apreciação da sua conformidade constitucional.
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte: 
 
"A sentença recorrida, após verificar que à data da propositura da presente acção já tinham decorrido 10 anos após a Autora ter atingido a maioridade, uma vez que esta nasceu em 1977, face à não demonstração pela Autora de que só dois anos antes da instauração da acção a sua mãe lhe havia dito quem era o seu pai, considerou que o direito ao reconhecimento da paternidade tinha caducado, nos termos do artigo 1817º, n.º 1, do C. Civil, pelo que absolveu o Réu do pedido.

A Autora defende que não recai sobre ela o ónus da prova do tempo em que conheceu os factos e circunstâncias que justificam a propositura da acção de reconhecimento da paternidade, competindo antes ao Réu provar que quando a acção foi proposta não só já tinha decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 1817º, mas também o prazo previsto no n.º 3, b), do mesmo artigo.

O debate sobre o ónus da prova dos factos relativos à caducidade do di­reito à investigação da paternidade é uma discussão datada, tendo-se reacendido com a recente alteração do sistema de prazos de propositura deste tipo de acções promo­vida pela Lei 14/2009, de 1 de Abril.

Diga-se, desde já, que o S.T.J., nos acórdãos mais recentes, parece preferir a tese de que compete ao investigante alegar e demonstrar que apenas conheceu os factos e circunstâncias que justificam a propositura da acção de paternidade no prazo de 3 anos que antecedeu essa propositura, sob pena de se considerar que o seu direito caducou.

Por conter uma mais completa argumentação desta posição transcreve-se a fundamentação do Acórdão do S.T.J. de 4.5.2017 [...], sobre esta questão:

Cuida, assim, este normativo (artigo 1817º, n.º 3, b), do C. Civil) do co­nhecimento superveniente que se verifique depois de integralmente decorrido o prazo objectivo de dez anos previstos no n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil. Contudo, a mencionada previsão normativa não se basta com todo e qualquer facto ou circuns­tância, mister se exigindo, para que a mesma se tenha por preenchida, que o dito conhecimento se reporte a factos ou circunstâncias que justifiquem que apenas nesse momento (e não antes, isto é, dentro do prazo geral de dez anos após a maioridade ou emancipação) o investigante tenha lançado mão da acção com vista a exercer o seu direito de ver estabelecida a paternidade.
 
No que concerne ao ónus da prova dos ditos factos e conforme sublinha Alberto Amorim Pereira (em “A preclusão do direito de accionar nas acções de investigação de paternidade – Alguns problemas” in R.O.A., Lisboa, Ano 48, 1988, p. 143 e ss., que aqui se segue de perto), importa reter que mesmo que tenham sido carreados para o processo factos integradores da tempestividade e da caducidade da acção, respectivamente pelo autor e pelo réu, a distribuição do ónus da prova assume importância capital para o caso de non liquet acerca da matéria de facto: o ónus da prova significará a situação da parte contra quem o tribunal dará como assente um facto, sempre que o juiz se não convença da realidade dele.

Com efeito, no sistema português, em que o ónus da prova reveste um ca­rácter marcadamente objectivo, que só por via reflexa atinge a actividade probatória das partes, a regra do ónus da prova reconduz-se a uma regra de decisão. Na dúvida, o juiz resolverá o
non liquet num liquet desfavorável à parte que tem o ónus. [...]

[...] embora seja indubitável que a caducidade é um facto extintivo do di­reito que o autor pretende fazer valer, a verdade é que, de acordo com a que se julga ser a melhor doutrina – que, por isso, aqui se sufraga – a classificação dos factos jurídicos como constitutivos ou extintivos não tem um valor absoluto, antes depen­dendo, em cada caso concreto, da função que o facto desempenha no mecanismo do processo, atenta a posição das partes e o efeito jurídico que cada uma delas pretende obter (vejam-se, neste sentido, Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. III, p. 282; e Rosenberg citado por Antunes Varela in R.L.J, ano 117.º, p. 30).
 
Em consequência, será à luz da interpretação da norma contida nas alí­neas b) e c) do n.º 3 do artigo 1817.º do Código Civil que se deverá fixar se o momento em que o investigante teve conhecimento dos factos ou circunstâncias que justificam a investigação é constitutivo do seu direito ou se, pelo contrário, repre­senta um facto impeditivo ou extintivo do mesmo.
 
Neste particular, o que se vem entendendo, face à forma como está estru­turado o normativo em análise e aos efeitos deles decorrentes, é que é sobre o investigante que recai o ónus de alegar os factos positivos que, uma vez demonstra­dos, permitam aferir se foram esses mesmos factos, tardiamente conhecidos, que possibilitaram e justificaram que a investigação apenas fosse levada a cabo nesse momento e não antes.
 
No fundo, será tal alegação e prova que colocará o investigante a coberto da previsão legal de que se pretende prevalecer com vista a exercer o seu direito para além do prazo geral de que disporia para esse efeito.

Os ditos factos devem, assim, ser entendidos como constitutivos da contra excepção de caducidade enunciada na previsão das alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 1817.º do Código Civil precisamente por alongarem o prazo geral de dez anos contado a partir da maioridade ou da emancipação previsto no n.º 1 do referido normativo.

Dito de outro modo, competindo ao réu alegar e provar a caducidade re­lativa ao escoamento do prazo-regra de dez anos para a propositura da acção (artigos 342.º, n.º 2, e 343º, n.º 2, do Código Civil), já será sobre o investigante que recai o ónus de alegar e provar os factos da contra-excepção, isto é, de demonstrar que, não obstante aquele prazo geral estar esgotado, beneficia de uma das situações enunciadas no n.º 3 do citado normativo. 

Crê-se, pois, que esta a solução, para além de decorrer das regras vigen­tes acerca da distribuição do ónus da prova, é aquela que é consentânea com a ratio da previsão legal que se vem analisando, que visa, como é sabido, conciliar, num justo equilíbrio, o interesse do investigante em ver estabelecido o vínculo da filiação e em conhecer a sua paternidade biológica enquanto emanação do direito à sua identidade pessoal, o interesse do investigado (e da sua família mais próxima) em ser protegido de demandas respeitantes a factos da sua vida íntima ocorridos há já muito tempo, bem como o interesse público da certeza e da estabilidade das relações jurídicas.

São justamente os interesses da certeza e da estabilidade das relações ju­rídicas que a caducidade, enquanto figura extintiva de direitos, pelo seu não exercí­cio em determinado prazo, procura satisfazer, impulsionando os titulares dos direitos em jogo a exercê-los num espaço de tempo considerado razoável, sob a cominação da sua extinção (veja-se, neste sentido, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 401/2011 a que já se fez referência).

Refira-se, aliás, que ao ter salientado a possibilidade de previsão consti­tucional de uma “cláusula geral de salvaguarda”, que permitisse a propositura da acção para além do prazo “normal”, o Tribunal Constitucional sublinhou que, para tanto, seria necessário que o autor cumprisse o ónus de alegar e provar factos que tornassem a propositura tardia da acção desculpável, apontando, portanto, para a solução acima exposta no que concerne à distribuição do ónus da prova (veja-se, neste sentido, o Acórdão n.º 486/2004 a que já se fez referência).

De resto, é também este o entendimento que tem sido, recentemente, adoptado pelo Supremo Tribunal de Justiça, afirmando que cabe ao investigante o ónus de alegar os factos que demonstrem que – só após ter decorrido o prazo de 10 anos sobre a respectiva maioridade – teve conhecimento de facto ou circunstância essencial e decisiva para desencadear a propositura da acção, já que não era exigível que a tivesse proposto antes de ter adquirido conhecimento do facto – subjectivamente superveniente – invocado (cf. Acórdão de 09-03-2017, proc. n.º 759/14.8TBSTB.E1.S1, Relator Lopes do Rego, disponível em www.dgsi.pt) [...].

A lógica deste raciocínio assenta na perspectiva de que existe um prazo regra de caducidade constante do n.º 1 do art.º 1817º do C. Civil, e excepções a este prazo, consagradas nos números seguintes do mesmo artigo, as quais processual­mente funcionariam como excepções à excepção de caducidade do prazo regra, ou seja como contra-excepções, ou factos impeditivos da caducidade, recaindo, por isso, o ónus da sua prova sobre o titular do direito exercido."
 
3. [Comentário] No sumário do citado STJ 9/3/2017 (759/14.8TBSTB.E1.S1) afirma-se o seguinte:
 
"II. - Incumbe ao A., em resposta à dedução da excepção de caducidade pelo R., alegar, como matéria de contra excepção, a verificação das circunstâncias que prorrogam a possibilidade de propor ainda a acção, invocando, nomeadamente, factos ou circunstâncias que tornem justificável e admissível a propositura tardia da acção - demonstrando que, sem o respectivo conhecimento, não lhe seria possível ou exigível avançar para a proposição da acção de investigação da paternidade." 
 
[MTS]