Destituição de titulares de órgãos sociais;
suspensão; carácter cautelar; contraditório
I - O processo especial de suspensão e destituição de titulares de órgãos sociais (gerente) previsto no art. 1055º do CPC comporta dois procedimentos autónomos e independentes entre si: - um procedimento de natureza cautelar, decretado a título provisório e antecipatório, que tem por objecto a pretensão de suspensão de funções do gerente; - um procedimento ou acção, sujeita às regras dos processos de jurisdição voluntária, que tem por objecto a pretensão principal de destituição do cargo de gerente.
II - Entre ambos os procedimentos existe a relação que intercede, nos termos gerais, entre uma decisão cautelar e a posterior decisão da acção principal, com a particularidade de o procedimento cautelar correr termos e ser decidido, autonomamente, no próprio (e único) processo principal.
III - Decretada, sem a prévia audição do requerido, a imediata suspensão das suas funções de gerente, ao requerido assiste o direito de reverter essa decisão cautelar por meio de recurso, em particular se o mesmo não foi citado para os efeitos previstos no art. 372º, n.º 1 al. b) do CPC, aplicável, em termos subsidiários, ao procedimento cautelar de suspensão de gerente.
IV - No âmbito dos procedimentos de natureza cautelar, o legislador sempre que pretendeu afastar a regra do contraditório prévio do requerido, nos termos do art. 366º, n.º 1 do CPC, fê-lo de forma expressa e inequívoca.
V - A especialidade do procedimento cautelar de suspensão de gerente ou o seu carácter de procedimento urgente não constituem, de per si, razões bastantes para o afastamento do princípio estruturante do processo civil (e com expressão constitucional ao nível do princípio do Estado de Direito) do princípio do contraditório prévio ao decretamento da providência.
VI - A expressão “imediatamente” empregue pelo legislador na redacção do n.º 2 do art. 1055º do CPC [oriunda do art. 1484º-B, n.º 2 do CPC, na versão introduzida pelo DL n.º 329-A/95] não traduz uma vontade inequívoca no sentido do estabelecimento da regra absoluta de exclusão da audiência prévia do requerido em procedimento de suspensão de funções de gerente, antes pretendendo enfatizar o carácter urgente do procedimento e a circunstância de o mesmo ser decidido autonomamente e em momento anterior à decisão do pedido principal de destituição.
VII - Não excluindo o legislador o contraditório do requerido, o juiz apenas pode afastar a audiência prévia do requerido se a sua audição colocar «em risco sério o fim ou a eficácia da providência», nos termos consignados no art. 366º, n.º 1 do CPC.
VIII - Por conseguinte, afastando o juiz a audição prévia do requerido mediante despacho que não contenha qualquer fundamentação ao nível do aludido critério legal, não só o respectivo despacho está ferido de nulidade, em conformidade com o disposto no art. 615º, n.º 1 al. b) do CPC, como, ainda, a própria decisão de decretamento da suspensão é nula por a inobservância do formalismo legal (audição prévia do requerido) ter manifesta influência na decisão da causa, em conformidade com o disposto no art. 195º, n.º 1 do CPC.
IX - Para efeitos de justa causa de suspensão e/ou destituição não é bastante a simples violação de deveres de conduta impostos ao gerente ou o impedimento, por razões de doença, do exercício das suas funções, sendo mister que essa violação ou impedimento assumam foros de gravidade que comprometam a confiança dos sócios no gerente, tornando inexigível à sociedade ou aos demais sócios a permanência do gerente no seu cargo.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"B. Do incidente cautelar de suspensão do cargo de gerente e da violação do princípio do contraditório.
O actual processo de suspensão e destituição de titulares de órgãos sociais previsto no art. 1055º do CPC corresponde, como já referido, sem alterações, ao anterior art. 1484º-B do CPC 1961, revogado pela Lei n.º 41/2013 de 26.06 que aprovou o novo Código de Processo Civil.
Por outro lado, como também já se salientou, e é posição pacífica da doutrina e da jurisprudência, o processo previsto no citado art. 1055º sob a aparência formal de um único processo desdobra-se, de facto, em dois processos distintos, com tramitação própria e, ainda, com duas decisões de natureza e objecto diversos.
Como se refere no Acórdão desta Relação de 30.10.2012, tirado sob o domínio do art. 1484º-B do CPC 1961, sob a aparência de uma única acção, o processo de destituição e suspensão de titular de órgão social compreende dois pedidos que seguem distinta tramitação: o de suspensão do cargo gerente, que é um incidente cautelar semelhante ao procedimento cautelar comum previsto nos arts. 381º a 392º do CPC; e o de destituição de gerência, que é uma acção declarativa com as especificidades dos processos de jurisdição voluntária. [...]
Destarte, ao juiz cabe, em sede cautelar e a título provisório, conhecer e decidir, em primeiro lugar, do pedido de suspensão imediata do gerente (se tal pedido for formulado) e, a final, nos termos aplicáveis aos processos de jurisdição voluntária, conhecer e decidir do pedido de destituição do mesmo cargo, sendo certo que a factualidade integradora da “ justa causa “ que subjaz ao decretamento da suspensão será, regra geral, a mesma que subjaz, a final, ao decretamento definitivo da suspensão.
Com efeito, como faz notar Solange Jesus [SOLANGE FERNANDA M. JESUS, [“O Processo Especial de Destituição e Suspensão dos Gerentes”, IDET, n.º 7, Almedina, 2011] pág. 187 [...]], sem prejuízo da autonomia de cada uma das decisões a proferir (de suspensão e, a final, de destituição), a condensação de ambos os pedidos num único processo tem a indiscutível vantagem de concentrar no mesmo requerimento toda a factualidade relevante; e ao impedir que a alegação quanto à suspensão ocorra num requerimento separado (como acontecia ao utilizar-se o procedimento cautelar comum, antes da introdução do anterior art. 1484º-B, n.º 2 com a reforma introduzida pelo DL n.º 329-A/95), «evita-se que a factualidade-fundamento seja apreendida de forma estanque e descontextualizada, permitindo ao julgador uma apreciação global e uma decisão mais rigorosa e concertada.» [...]
Nesta matéria, ao contrário do perfilhado na decisão recorrida [em que se considerou evidente que no procedimento de suspensão de gerente consignado no art. 1055º, n.º 2 do CPC «não há lugar à audiência prévia do requerido» - vide despacho que imediatamente precedeu a decisão de suspensão decretada] e se mostra secundado pelo Recorrido, sustenta o Recorrente que a regra terá de ser, precisamente, a oposta, ou seja a regra da prévia citação do requerido, tal como a mesma decorre do princípio aplicável ao procedimento cautelar comum (art. 366º, n.º 1 do actual CPC), ou seja de que a citação apenas não tem lugar quando «a audição do requerido puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência».
Impõe-se, pois, tomar posição sobre a questão suscitada, sendo certo que, na perspectiva do apelante, ao postergar a dita regra e a sua audição prévia a decisão recorrida enferma de nulidade pois que desconsiderou ou não atendeu a outros factos e meios probatórios que o mesmo teria carreado aos autos, assim influindo na decisão da causa.
Neste conspecto, a doutrina e uma parte da jurisprudência sustentam, como defende o Recorrido e se perfilhou na decisão recorrida – ainda que sem qualquer fundamentação -, que o procedimento cautelar de suspensão de titulares de órgãos sociais previsto no actual art. 1055º, n.º 2 do CPC [que reproduz, como já antes se salientou, o anterior art. 1484º-B, n.º 2 do CPC 1961, introduzido pelo DL n.º 329-A/95] não admite, por regra, a citação do requerido, sendo a decisão de tal incidente cautelar proferida sem a sua prévia audiência, que fica reservada para momento posterior, com a contestação para os termos da acção de destituição. [Vide, na jurisprudência, perfilhando expressamente essa posição, AC RP de 30.10.2012, antes citado, SOLANGE JESUS, op. cit., pág. 189 e, ainda, TERESA ANSELMO VAZ, “Contencioso Societário”. Liv. Petrony, 2006, pág. 174]
Por seu turno, outra parte da jurisprudência que se pronunciou de forma expressa sobre a questão ora em apreço, perfilha, precisamente, o entendimento oposto, ou seja a posição perfilhada pelo ora Recorrente, qual seja a de que no procedimento cautelar de suspensão de funções dos titulares de órgãos sociais a regra aplicável é exactamente a mesma que decorre da regra geral do procedimento cautelar comum, ou seja de que, por princípio, o requerido deve ser citado previamente à decisão cautelar do procedimento, salvo se, nos termos do n.º 1 do art. 366º do CPC (ou do art. 385º, n.º 1 do CPC 1961), «a audiência puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência.» [Neste sentido e por nós conhecidos, vide AC RP de 15.12.2010, Processo n.º 5526/09.8TBVFR-A-B.P1 (não publicado), mas constante de fls. 20-38 destes autos, disponibilizado e citado pelo apelante, e, ainda, AC RE de 23.03.2017, já citado e também invocado pelo apelante, este último disponível in www.dgsi.pt.]
Os defensores da posição que afasta a regra do n.º 1 do art. 366º do CPC actual invocam em abono de tal solução, em primeiro lugar, a especialidade do procedimento cautelar em apreço face ao procedimento cautelar comum, em segundo lugar, a celeridade que o legislador processual procurou conferir ao aludido incidente em razão das necessidades de adaptação do regime societário ao regime processual civil (afastando, assim, em caso de suspensão dos gerentes a aplicação do procedimento cautelar comum, como sucedia antes da reforma introduzida pelo DL n.º 329-A/95), e, ainda, o elemento literal retirado do art. 1055º, n.º 2 [e do anterior art. 1484º-B, n.º 2 do CPC 1961], ou seja de, segundo o expresso em tal normativo, a decisão de suspensão ser “imediatamente” decretada, o que inculcaria, pois, o afastamento da audiência prévia do requerido.
A nosso ver, e salvaguardado o devido respeito por opinião oposta, nenhum dos citados argumentos é susceptível de justificar a posição perfilhada por esta outra corrente, ou seja a de, por princípio, a suspensão do titular de órgão social ser decretada sem a sua audiência prévia, antes se impondo, no nosso julgamento, a aplicação da regra que decorre do princípio geral em matéria cautelar, qual seja o de que a audiência do requerido só pode ser dispensada se o cumprimento e consequente exercício do contraditório puser em risco sério a eficácia ou o fim da providência.
Desde logo, a especialidade do procedimento de suspensão não afasta, antes pelo contrário, a sua indiscutida natureza de incidente cautelar, provisório e antecipatório, que apresenta, pois, substancial proximidade com o procedimento cautelar comum, como é, aliás, afirmado de forma reiterado pela jurisprudência; Por outro lado, do caracter expedito e célere do incidente não decorre, sem mais, que seja suposto ou exigido suprimir o estruturante (e com expressão constitucional) princípio do contraditório da parte visada na providência, sendo certo que o procedimento cautelar comum, não obstante a regra da citação prévia e a excepcionalidade da sua dispensa, não deixa de constituir e de ser um processo célere e urgente; Por último, ainda, do emprego da expressão “imediatamente”, usada pelo legislador na redacção do art. 1055º, n.º 2 do CPC, não é, a nosso ver, possível extrair, de forma unívoca e definitiva, que assim se pretendeu consagrar a regra da dispensa da citação prévia do requerido e a sua intervenção apenas em momento posterior ao decretamento da suspensão, seja porque quando o legislador assim o pretendeu fazer o fez de forma expressa e inequívoca [como sucede nas hipóteses de arresto ou de restituição provisória de posse, em que o legislador consagrou de forma expressa a regra do afastamento de tal citação - «sem citação nem audiência do esbulhador» ou «sem audiência da parte contrária» [Respectivamente, arts. 378º, n.º 1 e 393º, n.º 1, ambos do CPC]), seja, ainda, porque, como bem se faz notar no citado Acórdão da Relação de Évora de 23.03.2017, não deixaria de causar «alguma perplexidade que um princípio estruturante do nosso sistema processual como é o princípio do contraditório, enquanto emanação de matriz constitucional e que se mostra precipitado nas disposições gerais do CPC (art. 3º, n.º 3), pudesse ser desvalorizado no quadro de um específico incidente de natureza cautelar, em termos de criação de uma regra absoluta de dispensa de audição da parte contrária, quando no regime geral de procedimentos da mesma natureza (cautelar) se estabeleceu um critério oposto, adaptável às particularidades do caso concreto, segundo o qual a dispensa de audição apenas terá lugar quando a audiência «puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência» (art. 366º, n.º 1).»
Como ali se refere «uma tal regra absoluta seria desajustada face às contingências de cada caso concreto e traduziria, em muitos desses casos, um sacrifício desproporcionado do princípio do contraditório» ou, ainda, acrescentamos nós, uma protecção desproporcionada e excessiva do sócio requerente da providência, em detrimento dos interesses do requerido e até da própria sociedade. [...]
Por outro lado, é ainda de reconhecer que, para além da regra da citação prévia se não mostrar, a nosso ver, excluída pelo preceituado no art. 1055º, n.º 2 e de se mostrar mais consentânea com o princípio geral e estruturante do contraditório e com as directrizes constitucionais emergentes do princípio do Estado de Direito, ela assegura uma maior garantia de segurança e acerto da própria decisão. [...]"
[MTS]