"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/02/2018

Jurisprudência (799)


Penhora de vencimentos;
salário mínimo; Região Autónoma dos Açores
 

1. O sumário de RL 2/11/2017 (191/08.2TBPDL-A-2) é o seguinte:

Na Região Autónoma dos Açores, o limite mínimo da impenhorabilidade dos vencimentos é o valor que resulta do acréscimo regional ao salário mínimo nacional. Ou seja, a norma do art. 738/3 do CPC, e outras de teor idêntico, devem ler-se como referindo-se também ao “salário mínimo regional” se o executado viver nessa RA.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Ao contrário do decidido, a pretensão do executado não é manifestamente improcedente.

Antes pelo contrário: o art. 738/3 do CPC estabelece o limite mínimo da impenhorabilidade no salário mínimo nacional (que é de 557€ em 2017, por força do DL 86-B/2016, de 29/12), quando o executado não tenha outros rendimentos, sendo que esse salário mínimo nacional, na RAA, é acrescido de 5%, segundo decisão dos órgãos legislativos constitucionalmente competentes (nos termos dos arts. 227/1-a da CRP e do art. 31/1-c do Estatuto Político-Administrativo da Região), por se considerar que aí é superior o custo de vida.

Com efeito, do preâmbulo daquele DLR [alterado pelo DLR 22/2007/A, de 23/10, mas sem influência na questão] citado pelo executado, diz-se: “Em 2000 foram criados, na RAA, os regimes jurídicos da atribuição do acréscimo regional ao salário mínimo no valor de 5% […] A criação destes regimes […] visa, por um lado, atenuar a diferença do nível do custo de vida nos Açores em relação ao continente, designadamente os derivados dos custos da insularidade, e, por outro, diminuir as desigualdades resultantes do baixo valor das remunerações ou pensões auferidas por uma faixa da população residente nos Açores, traduzindo-se numa medida de justiça social.”

Conforme tem vindo a ser dito pelo Tribunal Constitucional (por exemplo, acórdão 96/2004, de 11/02/2004, publicado no DR, II série, de 04/04/2004): (…) “o salário mínimo nacional contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como ‘o mínimo dos mínimos’ não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo” (…)” (no mesmo sentido, o acórdão 318/1999, publicados no sítio do TC na internet; e, por último, o ac. do STJ de 02/02/2016 [...]: V - Em regra, o salário mínimo nacional é o limite mínimo de exclusão dos rendimentos, no contexto da cessão de rendimentos pelo insolvente a quem foi concedida a exoneração do passivo restante, ou seja, nenhum devedor pode ser privado de valor igual ao salário mínimo nacional, sob pena de não dispor de condições mínimas para desfrutar uma vida digna).
Ora, o acréscimo regional representa, também, a concretização, na Região Autónoma dos Açores, do valor que se considera corresponder a esse mínimo dos mínimos, tendo em conta “a diferença do nível do custo de vida nos Açores em relação ao continente, designadamente os derivados dos custos da insularidade […].

Pelo que o limite mínimo de impenhorabilidade de vencimentos, na RAA, é o “SMR” de 584,85€, excepto se estiver provado que o executado tem outros rendimentos, o que não é o caso (como se diz no acórdão do TRP de 23/02/2012, proc. 1218/08.3TJVNF.P1: Na falta de prova de que existem outros rendimentos ou bens, parte-se do princípio de que o executado só tem esse salário ou essa pensão.”) Neste sentido, por exemplo, no caso de que trata o ac. do TRL de 23/04/2015, proc. 3376/14.9T8FNC-A.L1-6, decidiu-se: “b) Apreender os saldos bancários de contas tituladas pelos requeridos, em valor superior ao salário mínimo regional.”

Neste sentido, veja-se a fundamentação do acórdão n.º 268/88 do TC, de 29/11/1988, (com votos de vencido mas que não têm a ver com este ponto), sobre as normas das Resoluções n.ºs 42/87, de 15/01, e 5/88, de 28 de Janeiro, do Governo Regional dos Açores, que estabeleciam “salários mínimos regionais”:
 
"[…] com a fixação do salário mínimo nacional - o que aconteceu pela primeira vez, na ordem jurídica portuguesa, com o Decreto-Lei n.º 217/74, de 27 de Maio -, pretendeu-se assegurar aos trabalhadores das categorias inferiores dos diversos sectores da economia uma remuneração laboral que lhes consentisse, ao cabo e ao resto, um nível de vida acima do nível de sobrevivência. Vê-se assim que existe uma íntima conexão entre o montante do salário mínimo e o custo de vida, pois que quanto maiores forem os preços das mercadorias e dos serviços necessários à existência maior haverá de ser o salário mínimo.

Mais tarde, ao constitucionalizar-se tal instituto, determinou-se no artigo 60/2-a da CRP que os órgãos legislativos da República, ao fixarem o salário mínimo nacional, haveriam fatalmente de ter em conta os seguintes factores: 1) necessidades dos trabalhadores; 2) aumento do custo de vida; 3) nível de desenvolvimento das forças produtivas; 4) exigências da estabilidade económica e financeira; 5) acumulação para o desenvolvimento.

Entre esses factores não será de somenos importância o que tem a ver com o custo dos produtos e serviços indispensáveis à vida, factor este que logo de início se destacou.

Ora, esse factor, agora especificamente assinalado, difere claramente do continente para os Açores.

De facto, o trabalhador continental, porque os preços dos bens e serviços essenciais, no seu conjunto, são, no continente, inferiores aos dos Açores, tem de despender com eles menos dinheiro que o trabalhador açoriano.
E é precisamente a premência deste factor, factor da maior importância na delineação do salário mínimo, que paralelamente veio criar uma nova questão no espaço insular açoriano: a da complementação do salário mínimo nacional para que ao trabalhador ilhéu das categorias mais baixas dos sectores primário, secundário e terciário da economia seja garantido um nível de vida um patamar acima do nível de sobrevivência, ou seja, ao nível do seu homólogo do continente, esse recebedor apenas do salário mínimo nacional.

Assim, nos Açores, o limite mínimo de impenhorabilidade tem de ser o valor resultante da soma do acréscimo salarial ao SMN, sob pena de se violar o princípio da igualdade (art. 13/1 da CRP), pois que a penhora que abrangesse o acréscimo regional representaria tirar a um residente na RAA aquilo que, aí, representa o mínimo dos mínimos, que, no continente, já seria deixado intocado.
 
[MTS]