Matéria de facto; julgamento;
"factos conclusivos"
1. O sumário de STJ 28/9/2017 (809/10.7TBLMG.C1.S1) é o seguinte:
I - A questão de saber se um concreto facto integra um conceito de direito ou assume feição conclusiva ou valorativa constitui questão de direito de que cumpre ao STJ conhecer, porquanto a sua apreciação não envolve um juízo sobre a idoneidade da prova produzida para a demonstração ou não desse facto enquanto realidade da vida ou sobre o acerto ou desacerto da decisão que o teve por provado ou não provado.
II - Muito embora o art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no art. 607.º, n.º 4, do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos.
III - Estando em causa na acção saber se a construção realizada pela ré ocupa uma parte do terreno pertencente às autoras, não podem manter-se na matéria de facto provada as expressões «parcialmente implantada na estrema do prédio das autoras» e «retirando ao quintal do prédio das autoras parte da sua área», porquanto estes segmentos encerram matéria de índole conclusiva cuja afirmação é susceptível de conduzir, só por si, ao desfecho da acção.
IV - Já não será assim, em relação à expressão «o prédio das autoras confronta a poente com a Quelha do Montepio» na medida em que o está em causa é determinar os limites materiais do terreno das autoras – que integra o conteúdo do seu direito de propriedade – e tal constitui matéria de facto passível de ser demonstrada com recurso aos meios de prova admissíveis, nomeadamente, documentais e testemunhais.
V - As presunções registrais emergentes do art. 7.º do CRgP não abrangem factores descritivos, como as áreas, limites ou confrontações, cingindo-se apenas à existência do direito e que o mesmo pertence às pessoas em cujo nome se encontra inscrito, exorbitando do seu âmbito tudo o que se relacione com os elementos identificadores do prédio.
I - A questão de saber se um concreto facto integra um conceito de direito ou assume feição conclusiva ou valorativa constitui questão de direito de que cumpre ao STJ conhecer, porquanto a sua apreciação não envolve um juízo sobre a idoneidade da prova produzida para a demonstração ou não desse facto enquanto realidade da vida ou sobre o acerto ou desacerto da decisão que o teve por provado ou não provado.
II - Muito embora o art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no art. 607.º, n.º 4, do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos.
III - Estando em causa na acção saber se a construção realizada pela ré ocupa uma parte do terreno pertencente às autoras, não podem manter-se na matéria de facto provada as expressões «parcialmente implantada na estrema do prédio das autoras» e «retirando ao quintal do prédio das autoras parte da sua área», porquanto estes segmentos encerram matéria de índole conclusiva cuja afirmação é susceptível de conduzir, só por si, ao desfecho da acção.
IV - Já não será assim, em relação à expressão «o prédio das autoras confronta a poente com a Quelha do Montepio» na medida em que o está em causa é determinar os limites materiais do terreno das autoras – que integra o conteúdo do seu direito de propriedade – e tal constitui matéria de facto passível de ser demonstrada com recurso aos meios de prova admissíveis, nomeadamente, documentais e testemunhais.
V - As presunções registrais emergentes do art. 7.º do CRgP não abrangem factores descritivos, como as áreas, limites ou confrontações, cingindo-se apenas à existência do direito e que o mesmo pertence às pessoas em cujo nome se encontra inscrito, exorbitando do seu âmbito tudo o que se relacione com os elementos identificadores do prédio.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"No que tange aos pontos nºs 3 e 4 da matéria de facto, julgou a sentença da 1ª instância provado que:
«3. O prédio das autoras confronta a poente com a Quelha ….
4. Em finais de 2008/início de 2009, a ré retirou a rede divisória do jardim, que estava apodrecida, e levantou uma construção com cerca de 40 m2, com o aspecto de uma pequena casa, parcialmente implantada na estrema do prédio das autoras, eliminando a abertura (portão) que dava acesso à Quelha …, e retirando ao quintal do prédio das autoras parte da sua área».
Louvou-se para tanto na seguinte fundamentação:
«A prova pessoal produzida em julgamento foi muito exígua: Por um lado, em declarações de parte a autora BB confirmou que a casa de autoras e das rés, que são geminadas, foram separadas nos anos 60, e entre o logradouro de ambas colocada uma vedação, fazendo uma espécie de corredor junto à casa das rés; que a sua casa sempre confrontou com a Quelha …, até que verificou, em finais de 2008 ou 2009, que havia sido erigida a construção em causa nos autos.
Em depoimento de parte, a ré CC declarou ter comprado a casa há 30 anos, e ter erigido uns arrumos no local onde anteriormente existia um galinheiro; negou que o quintal das autoras tivesse portão para a Quelha …, e ter alterado a rede divisória - afirmando encontrar-se o quintal no estado em que estava antes.
Finalmente, foi inquirido como testemunha EE, que foi casado com a autora BB até 2011, declarado ter-se deslocado à casa duas vezes, a primeira das quais em 2007/2008, altura em que verificou não existir qualquer construção no quintal - sendo este constituído por um rectângulo alongado, que descreveu como semelhante a um campo de futebol.
Nada se podendo extrair da prova referida quanto à questão em discussão nos autos, deslocou-se o tribunal ao local, na presença da autora BB e da ré CC. O resultado da inspecção ao local está consignado na acta, e inclui fotografias do que se visionou. Desde logo, verificou-se que a construção em causa nos autos não tem qualquer semelhança com a área de um galinheiro sendo do conhecimento comum que um qualquer galinheiro, sito em zona urbana, nunca ocuparia o espaço que a construção ocupa. Por outro lado, a construção tem aspecto recente, aceitando-se que tenha sido erigida já após a morte da arrendatária do prédio das autoras (ocorrida em Agosto de 2008, segundo o autora). Por outro lado, a partir da Quelha … é visível, no muro que separa as propriedades privadas e a rua pública, que existiram duas portas que foram tapadas, uma das quais se encontra precisamente à frente da casa das autoras, hoje confinando com a construção erigida pela ré.
Sendo visíveis as habitações e quintais vizinhos, resultou evidente que todas as casas situadas no enfiamento das habitações de autoras e rés têm quintais que se prolongam até à Quelha …, e apenas o logradouro à frente da casa das autoras não tem continuidade até à quelha, por se encontrar interrompido por uma vedação colocada já muito perto da porta das traseiras da casa das autoras, sendo visível que parte do muro que existiria entre os logradouros das duas habitações foi recentemente demolido, diminuindo a extensão do logradouro da autora (conforme se verifica nas fotografias inseridas na acta).
Estes elementos objectivos verificados no local foram ainda confrontados com a descrição do prédio das autoras constante dos documentos do prédio, onde consta a confrontação poente com a Quelha … (fls. 8-13 e 14-15), bem como com a planta de fls. 16, e documento de fls. 18-19; Da carta de fls. 24, datada de Agosto de 2010, a sobrinha da falecida inquilina das autoras refere que "estes móveis (quando foram comprados por minha tia) entraram por uma porta de serviço, existente ao fundo do seu quintal, porta essa que desapareceu, devido à construção de um anexo pertencente à proprietária da casa vizinha", razão pela qual teve de contratar uma grua para retirar os móveis da casa das autoras.
Naturalmente que o prédio das rés, conforme resulta do referido e do documento predial de fls. 142-143, confronta igualmente com a Quelha …, mas apenas na largura correspondente à respectiva casa, e não ainda na largura situada à frente da casa das autoras, conforme actualmente sucede face à colocação da rede e à construção dos arrumos.
Da conjugação destes meios de prova se concluiu que a maior parte do quintal das autoras foi ocupado pela ré CC - não fazendo parte integrante do prédio das rés, do modo alegado na contestação, factualidade que, em consonância, se deu como não provada».
O Tribunal da Relação socorreu-se do mecanismo previsto no artigo 646º nº 4 do Código de Processo Civil revisto, que se mantém na ordem jurídica apesar de não figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no artigo 607º nº 4 do Código de Processo Civil vigente, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, e expurgar-se a mesma de matéria susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos.
E considerou que:
«Quanto à matéria incluída sob os pontos 3 e 4 da matéria de facto dada como provada, respeitante à confrontação do prédio da Autora com a Quelha …, e à ocupação do prédio da autora, com a construção levada a cabo pela Ré, pressupondo o conhecimento do objecto da presente acção, não pode ela própria conter a resposta do tribunal ao litígio.
Ou seja, se o verdadeiro e único objecto do litígio é a determinação da propriedade da parcela controvertida, que se encontra na posse da ré, não pode o tribunal, em sede de apreciação da matéria de facto, afirmar que tal parcela “pertence” ou “faz parte integrante” do prédio do autor, ou que, com determinada construção “se ocupou parcialmente” o quintal do prédio do autor, porquanto tal afirmação pressupõe que implicitamente se reconheceu que a parcela onde tal obra foi implantada faz parte do prédio do autor, quando esse constitui o cerne e a questão de direito a decidir na presente acção. (…)
Já quanto à questão de a parcela em litígio (sobre a qual foi implantada uma construção por parte da Ré) fazer, ou não, parte integrante do prédio registado a favor das autores, e uma vez que a presunção derivada do registo não abrange as respectivas confrontações ou outros elementos constantes do registo respeitantes à descrição do prédio, área, etc., não beneficiando as autoras de qualquer presunção a seu favor (ao contrário da Ré, que beneficia da presunção derivada da posse), teriam de, relativamente a tal parcela, alegar e demonstrar uma das formas de aquisição originária (usucapião ou acessão – artigo 1316º CC).
Ou seja, os pontos 3 e 4, expurgados dos conceitos de direito neles contidos, ficariam reduzidos a parte da matéria inserida no ponto 4, apenas se podendo dar como provado que, “Em finais de 2008/início de 2009, a ré retirou a rede divisória do jardim, que estava apodrecida e levantou uma construção com cerca de 40 m2, com o aspecto de uma pequena casa, eliminando um portão que dava acesso à Quelha …”». [...]
Concordamos com o acórdão recorrido quando considera que não podem manter-se no ponto de facto nº 4 as expressões «parcialmente implantada na estrema do prédio das autoras» e «retirando ao quintal do prédio das autoras parte da sua área». Estes segmentos encerram matéria de índole conclusiva; contêm afirmação susceptível de conduzir, só por si, ao desfecho da acção. Saber se a construção realizada pela ré ocupa uma parte do terreno pertencente às autoras será conclusão a extrair dos factos materiais alegados e provados.
Na verdade, aquelas expressões extravasam o juízo de facto. Contêm um juízo valorativo que há-de resultar da subsunção jurídica da globalidade dos factos apurados. Como salienta o acórdão sob recurso, o cerne do litígio radica, precisamente, na questão de saber se a construção erigida pela ré ocupa parcialmente o terreno das autoras, violando o seu direito de propriedade. Saber se as autoras são proprietárias de parte do terreno onde está implantada a construção, constitui a questão essencial ou nuclear a dirimir na presente acção.
Logo, agiu correctamente o Tribunal da Relação ao suprimir os referidos segmentos do aludido ponto 4 e, aproveitando a facticidade que nele figurava, manter como provado que: “Em finais de 2008/início de 2009, a ré retirou a rede divisória do jardim, que estava apodrecida e levantou uma construção com cerca de 40 m2, com o aspecto de uma pequena casa, eliminando um portão que dava acesso à Quelha …”»."
3. [Comentário] a) Na fundamentação do acórdão, o STJ afirma o seguinte: "O Tribunal da Relação socorreu-se do mecanismo previsto no artigo 646º nº 4 do Código de Processo Civil revisto, que se mantém na ordem jurídica apesar de não figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no artigo 607º nº 4 do Código de Processo Civil vigente, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados [...]".
Importa recordar que o art. 646.º, n.º 4, CPC/1961 estabelecia, na parte que agora é relevante, o seguinte: "Têm-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito [...]". Dado que no CPC vigente desapareceu a separação que existia no CPC/1961 ao nível da 1.ª instância entre o julgamento da matéria de facto (pelo tribunal colectivo) e o julgamento da matéria de direito (pelo juiz da causa), é com muita dificuldade que se pode aceitar a afirmação do STJ de que afinal "se mantém na ordem jurídica" um mesmo regime.
Lembre-se, a este propósito, que, enquanto no CPC/1961 se seleccionavam, no modo interrogativo (primeiro no questionário e depois da base instrutória), factos carecidos de prova, hoje enunciam-se, no modo afirmativo, temas da prova (cf. art. 596.º CPC). Tal como estes temas não têm de (e, aliás, nem podem, nem devem) ser enunciados fora de qualquer enquadramento jurídico, também a resposta do tribunal à prova realizada pela parte não tem de ser juridicamente asséptica ou neutra.
Sob pena de se cair num inaceitável formalismo, não pode constituir motivo de censura que o tribunal, depois de considerar provados determinados factos que consubstanciam a violação de deveres de cuidado, conclua que está demonstrada a negligência da parte. Estranho seria, aliás, que, constando dos temas da prova a actuação negligente da parte e, por isso, carecendo esta actuação de prova, o tribunal, ao analisar a prova produzida sobre esse tema, pudesse dizer tudo o que achasse adequado ao julgamento dessa matéria, excepto que está provada a negligência da parte.
Cabe ainda referir que, realizando-se a prova da negligência através de factos probatórios ou instrumentais (cf. art. 5.º, n.º 2, al. a), CPC), o tribunal não pode deixar de inferir a negligência do facto probatório, ou seja, não pode deixar de utilizar esse facto probatório como base de uma presunção judicial e verificar se desse facto decorre aquela negligência. Por exemplo: se ficar provado que o adulto estava distraído a falar ao telemóvel quando a criança foi brincar para a estrada, cabe ao tribunal valorar se desse facto pode inferir a negligência do adulto. A omissão desta inferência corresponde, afinal, à omissão da valoração da prova.
Aliás, esta conclusão decorre necessariamente da orientação maioritária do STJ de que as presunções judiciais são matéria de facto e, por isso, não são controláveis por aquele órgão. Se as presunções judiciais são matéria de facto, então a inferência da negligência de um facto probatório não pode deixar de ser igualmente matéria de facto e de se incluir na valoração da prova. O que não é compatibilizável é entender que a inferência da negligência através de uma presunção judicial é matéria de facto e, ao mesmo tempo, considerar que os tribunais não podem dar como provada a negligência por esta ser um conceito de direito.
b) A chamada "proibição dos factos conclusivos" não tem hoje nenhuma justificação no plano da legislação processual civil (não importando agora discutir se alguma vez teve). Se o tribunal considerar provados os factos que preenchem uma determinada previsão legal, é absolutamente irrelevante que os apresente com a qualificação que lhes é atribuída por essa previsão. Por exemplo: se o tribunal disser que a parte actuou com dolo, porque, de acordo com o depoimento de várias testemunhas, ficou provado que essa parte gizou um plano para enganar a parte contrária, não se percebe por que motivo isso há-de afectar a prova deste plano ardiloso (nem também por que razão a qualificação do plano como ardiloso há-de afectar a sua prova).
O exemplo acabado de referir também permite contrariar uma ideia comum, mas incorrecta: a de que factos juridicamente qualificados não podem constituir objecto de prova. A ideia é, efectivamente, incorrecta, porque cabe perguntar como é que sem a prova do dolo (através dos respectivos factos probatórios) se pode aplicar, por exemplo, o disposto no art. 483.º, n.º 1, CC quanto à responsabilidade por facto ilícito. É claro que o preceito só pode ser aplicado se, no caso de o dolo ser um facto controvertido, houver prova desse facto. Assim, também ao contrário do entendimento comum, há que concluir que o tema da prova não é mais do que o enunciado do objecto da prova.
A referida "proibição dos factos conclusivos" também não corresponde às modernas correntes metodológicas na Ciência do Direito, que não se cansam de referir que a distinção entre a matéria de facto e a matéria de direito é totalmente artificial, dado que, para o direito, apenas são relevantes os factos que o direito qualificar como factos jurídicos. Para o direito, não há factos, mas apenas factos jurídicos, tal como, para a física ou a biologia, não há factos, mas somente factos físicos ou biológicos. Os factos são sempre um Konstrukt, pelo que os factos jurídicos são aqueles factos que são construídos pelo direito. Em conclusão: o objecto da prova não pode deixar de ser um facto jurídico, com todas as características descritivas, qualitativas, quantitativas ou valorativas desse facto.
MTS