"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/02/2018

Jurisprudência (793)



Investigação da paternidade; prazo; caducidade;
prova; dever de colaboração; ónus da prova; inversão


I. O sumário de STJ 3/10/2017 (737/13.4TBMDL.G1.S1) é o seguinte:

1. Tem sido reconhecida a conformidade constitucional do regime previsto no art. 1817º do CC (na redacção introduzida pela Lei 14/2009, de 1/4) respeitante aos prazos de caducidade da acção de investigação de paternidade; quer da sujeição dessa acção a prazos de caducidade, quer dos prazos concretamente fixados na lei para esse efeito.  

2. No nº 3 prevê-se um prazo especial de três anos para a propositura da acção, depois de já ter expirado o prazo regra de 10 anos fixado no nº 1; tem por objecto situações que, pela sua particularidade, justificam objectivamente a investigação com vista ao estabelecimento da paternidade. 

3. Esse prazo de três anos não funciona propriamente como contra excepção da caducidade, face ao decurso do prazo regra previsto no nº 1; não diz respeito, nem estende ou prorroga este prazo, sendo autónomo dele, constituindo antes um prazo especial que depende de certos pressupostos próprios. 

4. Nesse caso, ao autor incumbe demonstrar a existência do facto ou circunstância que justifica a investigação; ao réu, por seu turno, compete provar que o autor teve conhecimento desse facto ou circunstância há mais de três anos, antes da propositura da acção. 

5. Se o réu, investigado, com a sua recusa ilegítima – de se submeter a exame laboratorial susceptível de fornecer prova directa da filiação biológica – inviabiliza a prova desta filiação, face à falência da prova indirecta através de testemunhas, deve, por aplicação do art. 344º, nº 2, do CC, inverter-se o ónus da prova, passando aquele, que impossibilitou a prova, a ficar onerado com a demonstração da não verificação daquele facto, isto é, que o autor não é fruto de relações de sexo entre o réu e a mãe do autor e, assim, que este não é filho daquele. 

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"3. Afirma-se no acórdão recorrido que, a concluir-se em sentido diferente do que aí se decidiu sobre a excepção da caducidade, deveria então "ser negado o direito peticionado pelo autor por não se ter provado que é fruto das relações sexuais que o réu manteve com a sua mãe nos 120 dias dos 300 que precederam o seu nascimento".

Esta posição tem por pressuposto, como aliás aí se refere expressamente, que era sobre o autor que impendia o ónus da prova dos fundamentos da acção, entendendo-se que não havia fundamento para a inversão do ónus da prova, nos termos do art.  344º, nº 2, do CC; entendimento que se manteve, apesar da rectificação a que se procedeu, no acórdão complementar, aos factos nºs 5, 6, 10, 16 e 18, acima indicados.

É manifesto, parece-nos, que não se decidiu bem, dificilmente se compreendendo a irrelevância atribuída no acórdão complementar à referida rectificação.

Dispõe o art. 519º, nº 2, do CPC que, "aqueles que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no nº 2 do artigo 344º do Código Civil."

Segundo esta disposição, há também inversão do ónus da prova quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado (...).

Diz-nos Lebre de Freitas [Código de Processo Civil Anotado, Vol.2º, 2ª ed., 440. Também em Código Civil Anotado (coordenação de Ana Prata), Vol. I, 427 e 428] que "o comportamento do recusante pode, mais drasticamente, determinar, quando verificado o condicionalismo do art. 344-2 do CC, a inversão do ónus da prova. Tal acontece quando a recusa impossibilita a prova do facto a provar, a cargo da contraparte, por não ser possível consegui-la com outros meios de prova, já por a lei o impedir (exs.: art. 313-1CC; art. 364 CC), já por concretamente não bastarem para tanto os outros meios produzidos".

E, reportando-se concretamente às acções relativas à filiação, acrescenta:

"Tido em conta o dever de colaboração, não é legítima a recusa à realização dos exames hematológicos (art. 1801º CC); mas, tida em conta a tutela dos direitos de personalidade, não é admissível a execução coerciva desses exames, sem prejuízo de a recusa dever ser valorada em termos de prova, podendo mesmo, designadamente quando implique a impossibilidade de o autor fazer prova da filiação biológica, dar lugar à inversão do ónus da prova".

É idêntica a posição assumida por Lopes do Rego [Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2ª ed., 454], referindo, no que toca à problemática dos exames hematológicos em acções de reconhecimento de paternidade:

"Para além da condenação em multa, se o exame se configurava como absolutamente essencial à determinação da filiação biológica – implicando, consequentemente, a recusa do pretenso pai a verdadeira impossibilidade de o autor fazer prova da invocada filiação biológica (por exemplo, em consequência de, no caso concreto, inexistirem meios probatórios que a possam demonstrar indirectamente) – deverá aplicar-se o preceituado no nº 2 do art. 344º, presumindo-se a paternidade e passando a incumbir ao recusante o ónus de criar «dúvidas sérias» sobre ela".

Essa conduta do recusante, sublinha o mesmo Autor, "configura-se seguramente como culposa, na medida em que o tribunal haja considerado insubsistentes as razões pretensamente invocadas para se subtrair ao exame, qualificando, deste modo, a recusa como «ilegítima» [O ónus da prova nas acções de investigação de paternidade: prova directa e indirecta do vínculo da filiação, Comemorações dos 35 Anos do Código Civil, Vol. I, 787].

Tem sido por vezes defendido que a situação descrita de recusa não é subsumível na previsão do art. 344º nº 2, uma vez que ela não impede ou preclude a demonstração indirecta do vínculo biológico, através da prova testemunhal.

Todavia, como acentua Freitas Rangel [O Ónus da Prova no Processo Civil, 301. Ainda no mesmo sentido, Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, Vol. III, 3ª ed., 81.], esse argumento não colhe, na medida em que, "com a recusa, o autor viu-se privado de recorrer à prova directa, por meios científicos, da procriação biológica que fica irremediavelmente afastada com a recusa de cooperação do réu".

Acrescenta o mesmo Autor que o regime previsto no art. 344º, nº 2, "não pressupõe que o único meio de prova idóneo para a demonstração de determinado facto seja o inviabilizado pela conduta culposa da parte. Basta que se trate de meio de prova de especial relevância, isto é, que só por si fosse idóneo para garantir a procedência da acção".

Pode, pois, concluir-se que se o investigado, com a sua recusa, ilegítima [...] – de se submeter a exame laboratorial susceptível de fornecer prova directa da filiação biológica [...] – inviabiliza a prova desta filiação, deve, por aplicação do art. 344º nº 2, inverter-se o ónus da prova, passando a parte que impossibilitou a prova a ficar onerada com a demonstração da não verificação daquele facto [...].

No caso, o réu não compareceu no IML nas várias [...] marcações efectuadas para a realização do exame hematológico, tendo justificado, por doença, apenas a primeira falta. Foram-lhe aplicadas multas e, na notificação da última marcação, foi expressamente advertido de que a falta de comparência faria "operar a inversão do ónus da prova nos termos do disposto no art. 344º, nº 2 do Código Civil".

Foi depois proferido despacho em que se concluiu:

"Face ao exposto, tendo em conta a postura do réu ao longo do tempo, impedindo que seja levado a cabo exame pericial que facilmente determinaria se é ou não o pai biológico do autor, conclui-se que o réu culposamente tornou impossível a prova ao onerado pelo ónus, o autor.

Assim, determino a inversão do ónus da prova nos termos do disposto no artigo 344º, nº2, do Código Civil, cabendo ao réu provar que não é pai do autor (…), devendo o réu provar a versão negativa da plasmada nos temas de prova, caso a prova produzida nos autos se venha a revelar insuficiente para determinar a procedência da acção".

Esta decisão não motivou qualquer reacção das partes (pelo menos, pelo que decorre do suporte físico do processo) e, tendo em conta a respectiva fundamentação, também nos parece inteiramente justificada, não merecendo qualquer censura.

Com efeito, não se descortinam razões que justifiquem a falta de comparência do réu ao exame, que, aliás, como é sabido e se fosse esse o obstáculo, nem teria de ser efectuado com base em amostras de sangue (apesar de ser suficiente uma simples picada para este efeito), podendo incidir sobre outro material biológico (unhas, cabelo, saliva) [Cfr. Paula Costa e Silva, A realização coerciva de testes de ADN em acções de estabelecimento da filiação, em Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel Magalhães Collaço, Vol. II, 577 e segs.].

Assim, a não comparência injustificada do réu ao exame é, no circunstancialismo provado, culposa e ilegítima, tenho tornado impossível a prova directa do facto da procriação biológica.

Realce-se, por outro lado, que, conforme decisão proferida pela Relação no âmbito da impugnação da decisão de facto, o autor não logrou provar a coabitação causal entre a sua mãe e o réu. Ficou, deste modo, inviabilizada a prova indirecta, através do recurso a presunções naturais ou judiciais, com base na demonstração da existência de relações de sexo entre a mãe do autor e o réu no período legal de concepção.

Neste contexto, a recusa do réu em submeter-se a exame impossibilitou a prova directa da procriação biológica, que era, em concreto, o único meio de demonstrar esse facto, face à falência da prova indirecta através de testemunhas.

Deve, pois, operar a inversão do ónus da prova, nos termos acima expostos, pelo que impendia sobre o réu a prova de que o autor não é fruto de relações de sexo entre o réu e a mãe do autor e, assim, que este não é filho daquele.

Prova que o réu não logrou efectuar, como decorre da decisão proferida sobre a matéria de facto, devendo a dúvida sobre a realidade desse facto ser resolvida contra si (art. 414º do CPC).

Esse non liquet em termos de prova deve ser resolvido por um liquet desfavorável ao réu, onerado com a prova."

III. [Comentário] O acórdão cita o "art. 519º, nº 2, do CPC", que corresponde ao vigente art. 417.º, n.º 2, CPC.

Quanto ao problema do prazo para a propositura da acção de investigação da paternidade, cf. Jurisprudência (788).

MTS